Em meio ao aumento de suicídios assistidos, Canadá discute eutanásia para menores de idade e doentes mentais| Foto: Pixabay
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Não foi por falta de aviso que, em 2015, a Suprema Corte do Canadá decidiu ignorar mais de duas décadas jurisprudência, derrubando a inconstitucionalidade na prática da eutanásia no país. No documento que promulgou a decisão, os juízes descartam explícita e conscientemente o receio de que a medida fosse abrir uma “brecha escorregadia para o homicídio” de vulneráveis - uma preocupação, segundo a Corte, amparada por “exemplos anedóticos”. No ano seguinte, o Parlamento aprovaria a legislação permitindo o suicídio assistido “apenas” para vítimas de doenças terminais cuja morte natural seria “razoavelmente previsível”.

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Como resultado, só no ano de 2017, quase dois mil canadenses fizeram uso da nova lei que, em  2021, foi alterada com a revogação do critério (arbitrário em sua origem, diga-se de passagem) de “previsibilidade” e da condição terminal do paciente. Desde o ano passado, portanto, quem quer que sofra de uma doença ou deficiência que não possa ser aliviada “em condições aceitáveis” - quaisquer sejam essas condições - está elegível para ser morto gratuitamente, com assistência médica. Seis anos após a legalização da eutanásia no país, ativistas dos direitos humanos se deram conta de que a medida representa, na verdade, um risco a deficientes, doentes mentais e, especialmente, aos mais pobres.

É irônico, afinal, que ao justificar a descriminalização do suicídio assistido a Suprema Corte canadense tenha mencionado “exemplos anedóticos”, uma vez que estes são o que não falta nos meios de comunicação quando o debate público versa sobre o tema da inviolabilidade da vida humana. Enquanto o aborto, por exemplo, ganha ares de “direito fundamental” diante de casos trágicos de adolescentes grávidas de estupradores - como se estes fossem os únicos que chegam às clínicas clandestinas -, a eutanásia se reveste de “morte digna” como se a decisão de tirar a própria vida fosse o resultado inequívoco de uma reflexão consciente, feita por pessoas que tiveram acesso a inúmeros recursos de luta pela vida, sem sucesso.

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“Condenado à morte”

Não pareceu ser este o caso do canadense Alan Nichols, hospitalizado em junho de 2019 aos 61 anos, com um histórico de depressão e outros problemas médicos. Em um mês, Nichols apresentou um pedido de eutanásia e foi morto, ainda que sua família e uma das enfermeiras envolvidas no tratamento tivessem levantado ressalvas quanto ao seu nível de consciência real diante do processo ao qual foi submetido. "Alan foi basicamente condenado à morte", argumentou o irmão, Gary Nichols. Por esta razão, a família denunciou o caso às autoridades policiais e de saúde.

Ano após ano, novos “casos isolados” chegam às autoridades: uma artigo recente da revista The Spectator narra a ocasião na qual a família de um homem deficiente de 35 anos que recorreu à eutanásia chegou a local onde o doente morava e encontrou urina e fezes no chão, inclusive ao lado da cama onde o paciente se encontrava. Como ironiza o autor do artigo, Yuan Yi Zhu, pesquisador do Nuttfield Colllege, se a lei do suicídio assistido trata de “priorizar a autonomia individual dos canadenses”; “pode-se perguntar quanta autonomia um homem deficiente deitado em sua própria imundície teve ao pesar a morte sobre a vida”.

Outros casos chamaram a atenção da imprensa internacional, como o da moradora de Ontário portadora de um tipo raro de alergia que escolheu morrer por não ter acesso a uma moradia adequada às suas necessidades de saúde. “O governo me vê como um lixo descartável”, declarou em um vídeo gravado oito dias antes de sua morte. Outra canadense recorreu à medida porque suas dívidas de tratamento da covid-19 drenaram seus recursos para pagar o tratamento que tornava suportável uma dor crônica. Vale ressaltar que, sob o governo de Justin Trudeau, estudantes universitários receberam auxílio financeiro de até 5 mil dólares durante a pandemia, enquanto deficientes receberam cerca de 600.

Doentes mentais e menores de idade

Atualmente, o suicídio assistido é permitido também na Bélgica, Holanda, Colômbia, Luxemburgo, Nova Zelândia e Espanha, além de diversos estados da Austrália e dos Estados Unidos. A lei canadense, contudo, é especialmente permissiva: ao contrário do que ocorre na Bélgica e na Holanda, por exemplo, o Canadá não conta com comissões responsáveis pela análise de casos potencialmente preocupantes. Também não há restrição para que médicos sugiram a eutanásia a pacientes que ainda não a solicitaram, o que é expressamente proibido em outros países.

Em meio à escalada de suicídios sob demanda, o país se prepara para dar passos ainda mais “ousados”: lideradas principalmente pelo grupo Dying With Dignity [Morrendo com Dignidade], já há discussões em curso para que “menores maduros” sejam contemplados pela legislação, além da inclusão de doentes mentais como “elegíveis” para a “morte digna”.

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"A mídia generosamente subsidiada do Canadá, com algumas honrosas exceções, expressou notavelmente pouca curiosidade sobre o assassinato social aberto de cidadãos em um dos países mais ricos do mundo”, nota Yi Zhu. “Talvez, como muitos médicos, os jornalistas tenham medo de serem acusados ​​de 'pouco progressistas' por questionarem a nova cultura da morte, acusação fatal nos círculos intelectuais”.

Pôr um fim à vida de uma criança não-nascida ou de um idoso em seus últimos dias é, em si mesmo, um mal que atenta contra a dignidade humana, uma vez que esta não pode ser condicionada a qualquer critério arbitrário, conforme explicitado nas convicções da Gazeta do Povo: “Quando falamos de dignidade do homem, referimo-nos a algo que é intrínseco: vem do próprio fato de ser humano, vem de dentro. Não é concedida – e nem retirada – por ninguém: nem pelos que nos rodeiam, nem pelo Estado, nem pela cultura, nem pelo consenso social”. Isto continua valendo “mesmo quando o exercício de sua autonomia não pode ser plenamente exercido; pensemos, por exemplo, em pessoas cuja situação as impede de realizar escolhas, como um paciente em coma ou alguém tão mergulhado nas drogas que já perdeu o controle de si mesmo. Elas não são menos dignas, menos “pessoas”, que ninguém.”

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

As severas consequências da violação destes valores, contudo, nem sempre são sentidas por igual. "Para que a democracia não se torne tirânica, a sociedade precisa se apoiar em certos princípios inegociáveis. Se estes princípios não são os direitos fundamentais das pessoas, esse vácuo é ocupado por outra coisa e, no mundo em que vivemos, a tendência é que seja ocupado pelo dinheiro. Nesta lógica, o mercado não é simplesmente livre do ponto de vista econômico: ele se torna o próprio critério da vida social. Este processo de objetificação é naturalmente muito perverso, mas não atinge a todos igualmente: a dignidade dos fracos será a primeira a ser atacada e mutilada”, explica o professor de filosofia Pedro Ribeiro, presidente do movimento político Comunhão Popular.

Por esta razão, em Portugal, onde o Parlamento acaba de aprovar a descriminalização da eutanásia, até a esquerda se opôs ao suicídio assistido — o Partido Social Democrata e o Partido Comunista Português votaram contra.

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“A oposição do PCP à eutanásia tem o seu alicerce na preservação da vida, na convocação dos avanços técnicos e científicos (incluindo na medicina) para assegurar o aumento da esperança de vida e não para a encurtar, na dignificação da vida em vida. É esta consideração do valor intrínseco da vida que deve prevalecer e não a da valoração da vida humana em função da sua utilidade, de interesses econômicos ou de discutíveis padrões de dignidade social”, diz a nota oficial do PCP. Ao que parece, trata-se de uma reflexão que escapa aos justiceiros sociais canadenses. Ou, para parte da população vulnerável, pode chegar tarde demais.