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Instalações do programa de armas biológicas do regime soviético continuam inacessíveis e hoje em dia é crime qualquer pessoa na Rússia divulgar informações sobre o assunto.
Instalações do programa de armas biológicas do regime soviético continuam inacessíveis e hoje em dia é crime qualquer pessoa na Rússia divulgar informações sobre o assunto.| Foto: Pixabay

Em 1972, os Estados Unidos, a União Soviética e outras nações assinaram a “Convenção sobre Armas Biológicas e Tóxicas”, que proibia o uso de armas biológicas. Na mesma época, porém, a própria União Soviética estava embarcando em uma expansão maciça de seu programa ofensivo de arsenal biológico, que começou na década de 1920 e continuou até os anos de 1990.

A iniciativa soviética foi a maior e mais sofisticada já realizada. Ela também era altamente secreta e foi encoberta por mentiras e má informação: em geral, arquivos oficiais são sigilosos e autoridades do governo russo não fazem declarações públicas sobre o assunto. Ou até mesmo negam a existência do programa.

“As instalações mais importantes do programa permanecem inacessíveis para pessoas de fora até hoje e tornou-se crime qualquer um na Rússia atual divulgar informações sobre o antigo programa ofensivo de armas biológicas”, dizem  Milton Leitenberg e Raymond A. Zilinskas, autores de “O Programa Soviético de Armas Biológicas: Uma História” (Harvard University Press, 2012, sem edição em português). Durante uma década, Leitenberg e Zilinskas entrevistaram ex-cientistas soviéticos envolvidos no programa de armas biológicas, juntamente com dezenas de outras fontes.

Uma pesquisa posterior de Zilinskas divide o programa soviético em duas gerações, definidas como períodos distintos em que novos tipos de armas eram desenvolvidos a partir de versões anteriores. A primeira geração do programa começou em 1928 e foi baseada em patógenos naturais que causaram epidemias devastadoras durante a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil Russa. Já a segunda teve início em 1972 e pretendia ser ainda mais devastadora: criar modificações genéticas em vírus e bactérias para torná-los mais resistentes e transformá-los em armas biológicas ainda mais mortais. [3]

Novo foco

A partir de 1972, o que antes era focado no uso comum de armas biológicas, espalhando doenças em áreas concentradas, passava a incluir também modificações biológicas nos agentes causadores de doenças para torná-las mais fortes e resistentes. Introduzindo a inovação da tecnologia do DNA recombinante, conhecida como engenharia genética, os soviéticos tentavam criar cepas bacterianas e virais que fossem mais úteis para fins militares do que as encontradas na natureza.

Com o apoio de várias instituições russas, o programa soviético pós-1972 foi então composto por quatro componentes principais. Os principais elementos foram grandes instalações nos Ministérios da Defesa, Agricultura e Saúde e na organização Biopreparat, compreendendo entre 40 e 50 instalações de pesquisa, desenvolvimento e produção, além de um campo de testes militares na Ilha Vozrozhdeniye, no Mar de Aral.

Um elemento-chave desta fase do programa era existência de sete ou oito instalações (o número real nunca chegou a ser oficializado) de produção com capacidade de mobilização. Juntas, elas eram capazes de iniciar a produção de milhares de toneladas de agentes de armas biológicas apenas um ano após o começo de uma guerra mundial. Em 1990, a União Soviética tinha 13 patógenos testados e formas de propagação específicas para cada um deles - em geral, sistemas de pulverização para bombardeiros médios e cápsulas para serem contidas em munições disparadas por via aérea.

Os projetos eram, ao mesmo tempo, ambiciosos e assustadores: em um esforço para melhorar propriedades das armas biológicas, cientistas soviéticos passaram anos trabalhando para criar uma “quimera” viral, um organismo que contém material genético de dois ou mais organismos.

Outra iniciativa incluía eliminar os epítopos na superfície dos microrganismos agentes de armas biológicas, tornando-os irreconhecíveis às técnicas de diagnóstico regulares. O objetivo seria tornar mais difícil para a população atacada identificar o patógeno causador do surto de doença e conseguir tratamento adequado. Já uma segunda iniciativa, de codinome Caçador (Okhotnik), procurou desenvolver híbridos de bactérias e vírus de uma forma que o uso de um antibiótico para matar as bactérias desencadearia a liberação do vírus.

“Ao contrário de outros programas nacionais de armas biológicas, que usavam apenas técnicas clássicas ou tradicionais de microbiologia aplicada para mobilizar agentes causadores de doenças, o programa soviético pós-1972 tinha um aspecto futurista: ao empregar manipulação genética e outras técnicas de biologia molecular, seus cientistas conseguiram romper barreiras que separam as espécies”, dizem Leitenberg e Zilinskas.

Um dos principais  projetos foi a criação de uma variação do antrax, resistente a uma variedade de antibióticos, incluindo penicilina, rifampicina, tetraciclina, cloranfenicol, macrolídeos e lincomicina. Além disso, essa variação libera toxinas que podem romper os glóbulos vermelhos e apodrecer o tecido humano. Os cientistas pegaram os genes de um parente próximo do antrax, o Bacillus cereus, e os adicionaram usando técnicas científicas inovadoras.

Um estudo, publicado em 2006, estimou que liberar apenas 1 kg de esporos de antrax em Washington, nos Estados Unidos, seria suficiente para infectar entre 4.000 e 50.000 pessoas. Se poucos antibióticos estivessem disponíveis, ou se os micróbios fossem resistentes, milhares de pessoas morreriam.

Sentindo na pele

O programa soviético de armas biológicas também causou destruição de forma acidental. Em 2 de abril de 1979, um acidente em uma unidade secreta liberou esporos de antrax na cidade soviética de Sverdlovsk. Levada pelo vento, a nuvem de antrax produziu uma trilha de doença e morte de 50 quilômetros entre humanos e animais. Pelo menos 66 pessoas perderam a vida.

A princípio, a União Soviética afirmou que surto havia sido causado por carne contaminada. Em 1992, uma equipe liderada pelo biólogo molecular da Universidade de Harvard, Matthew Meselson, foi autorizada a visitar a área para investigar o incidente. Em um artigo publicado dois anos depois, eles concluíram que o padrão geográfico do surto mostrou que foi causado por um aerossol que escapou de uma instalação conhecida como Composto Militar 19. “Carne ruim não viaja em linhas retas por 50 quilômetros durante muito tempo, mas o vento pode fazer isso ”, diz Meselson.

Em 1998, Dr. Kanatjan Alibekov, um desertor do programa de armas biológicas da URSS revelou que a preparação dos soviéticos para uma Terceira Guerra Mundial inclui a preparação de centenas de toneladas de bactérias de antrax e dezenas de toneladas de vírus da varíola e da peste.

Alibekov foi o segundo no comando de uma filial do programa soviético e desertou em 1992. Ele afirmou que bactérias e vírus poderiam ter sido colocados em ogivas de mísseis balísticos intercontinentais no início dos anos 80. O objetivo, segundo ele, era ter armas preparadas para atacar os Estados Unidos caso uma guerra fosse deflagrada.

"Acreditávamos fortemente que os Estados Unidos tinham um programa ofensivo", disse Alibekov, acrescentando que os oficiais envolvidos no programa esperavam que a União Soviética estivesse preparada para contra-atacar.

“Perguntei a dois oficiais de inteligência militar de alto escalão se havia informação disponível sobre essas armas ofensivas dos Estados Unidos. Eles me questionaram: 'O que você precisa?' Eu respondi: 'O nome, localização, organização, estrutura, quantidade de pessoal, quais agentes eles possuem.' Disseram-me que não tinham essa informação. Foi quando tive minhas primeiras dúvidas", contou.

Segundo Alibekov, as forças armadas russas ainda mantinham um programa de armas biológicas em 1991, um ano depois que Mikhail S. Gorbachev ordenou a suspensão do programa.

"Podemos dizer que a Rússia continua a pesquisa nessa área para manter seu potencial biológico militar. Eles mantêm seguros seus funcionários, seus conhecimentos científicos. E eles ainda têm capacidade de produção”, disse Alibekov.

Panorama atual

Hoje, a situação em relação armas biológicas na antiga União Soviética é ambígua e insatisfatória, segundo Leitenberg e Zilinskas. "Continua existindo a possibilidade de que a Rússia mantenha partes de um programa ofensivo de armas biológicas”, dizem. Por outro lado, eles admitem não saber com certeza o que está ocorrendo nas três instalações do Ministério da Defesa desde 1992.

Após o colapso da União Soviética, o presidente russo Boris Yeltsin admitiu, em maio de 1992, a existência de uma instalação de armas biológicas na cidade de Sverdlovsk, onde ocorreu o acidente com antrax em 1979 e também palco de parte do programa soviético de desenvolvimento de armas biológicas.

Desde a eleição de Vladimir Putin, porém, a posição oficial da Rússia passou a ser de que o programa soviético era estritamente defensivo e que nenhum programa ofensivo de armas biológicas existiu na União Soviética.

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