Nas areias de Copacabana, até este escultor já percebeu que se dizer vítima de censura agrega valor à obra de arte – por pior que ela seja.| Foto: PPJ

Copacabana, domingo de sol. Quem anda pelo calçadão tem muitas coisas com as quais se distrair. Aqui e ali ambulantes vendem chapéus, toalhas, cangas e outros badulaques. Massagistas oferecem seus serviços sob tendas. Pessoas jogam vôlei, futebol e até tênis de praia. E a cada 500 metros, mais ou menos, artistas juntam montes de areia nos quais esculpem o Coliseu e as formas politicamente incorretas da mulher brasileira, trocando fotos por uma contribuição.

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Entre as esculturas de areia mais ou menos elaboradas, se destaca o trabalho de um artista anônimo. É um monte de areia protegido do sol por umas palmeiras, na qual se lê apenas “Lula Livre”. Na hora em que passo pelo lugar pela primeira vez, o artista está lá, retocando o primeiro “L” com uma régua de madeira. Não me parece ser uma escultura muito difícil.

(Como a soltura de Lula afetará o ganha-pão do artista ainda é um mistério).

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O que chama a atenção na instalação nem é a escultura em si, e sim os cartazes improvisados que a cercam. Num deles, lê-se: “CENSURA ARTE NA AREIA LULA LIVRE ARTISTA PERSSEGUIDOS (sic)”. No outro, lê-se: “ARTE CENSURADA PELO GOVERNO LULA LIVRE ARTISTA DENUCIA (sic)”. Um terceiro cartaz pede colaboração em troca do direito de se tirar fotos da obra de arte.

O artista de rua anônimo (na verdade eu me aproximei e perguntei o nome dele que, relutante em se levantar da palmeira contra a qual descansava naquela manhã de sol, pediu simplesmente para a “chefia” aqui colaborar com o “cafezinho”) entendeu como ninguém o caráter econômico dos gritos de “censura!” proferidos pela esquerda que se diz vítima de um regime fascista. Dizer-se vítima de censura é algo que agrega valor a qualquer trabalho que se considere artístico, ainda que seja apenas um monte de areia pedindo liberdade para um ex-presidente corrupto.

Historicamente, censurar uma obra de arte, seja ela o "Ulysses" de James Joyce ou a escultura de areia do artista de Copacabana sempre foi um péssimo negócio para o censor e um ótimo negócio para o censurado. Isso vale tanto para o quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbert”, que ainda hoje não pode ser exibido no Facebook, quanto para a novela “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, passando por todas aquelas músicas de protesto da MPB.

O caso mais recente a ilustrar o valor agregado que a simples sugestão de censura pode atrelar a uma obra de arte (e estou usando o termo aqui livremente) se deu durante a Bienal de Literatura do Rio de Janeiro, quando o prefeito Marcelo Crivella decidiu fiscalizar livros com conteúdo homoerótico que estariam sendo vendidos para crianças. Resultado: o livro “censurado”, na verdade uma história em quadrinhos que já estava fora de circulação, se esgotou e o YouTuber Felipe Neto conseguiu angariar mais alguns milhares de seguidores para o seu canal posando de “defensor da liberdade de expressão”.

Não é à toa, portanto, que artistas já milionários, artistas iniciantes e até artistas de rua desejam tanto um regime fascista para chamar de seu, desde que o autoritarismo venha acompanhado por medidas claras de censura política e moral (e ele inevitavelmente vem). Eles sabem do valor publicitário da palavra “censura”, uma palavra que parece magicamente capaz de conferir valor estético (e pecuniário) a qualquer coisa, desde o cancioneiro brega estridente de Odair José com sua “Pare de Tomar a Pílula” até uma escultura de areia indigna da grande tradição tonhodaluana.

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Claro que o artista anônimo não está sendo censurado nem perseguido. Até por isso ele descansa tranquilamente contra uma palmeira, sob o sol já quente da manhã. Mas as pessoas que passam pela “arte censurada” não sabem disso. Ou, se sabem, preferem acreditar no contrário. Assim, o artista apela para um público cativo, ideologicamente cego para a mentira (ou seria ficção?) que estão apoiando. São pessoas que acreditam que Lula é preso político e que há, sim, a despeito da falta de um Ato Institucional Número 5 ou de um mero decreto escrito em burocratês, uma censura institucionalizada no Brasil – até mesmo contra esculturas de areia.

Há ainda aqueles que louvam a ousadia do artista que, mesmo sob forte censura do governo federal, teve coragem para recolher algumas centenas de quilos de areia e neles escrever, na tipologia simples do lumpenproletariat, “Lula Livre”, arriscando a vida, a dignidade e até a saúde e a boa hidratação sob o sol forte da primavera carioca.

Embora eu acredite que um dia o artista anônimo ainda há de ser reconhecido, afinal a esquerda, e sobretudo os departamentos de arte das universidades, adora uma malandragem politicamente engajada dessas, todo o “esforço” até agora parece ter sido em vão. Porque, quando me aproximo do baldinho que faz as vezes de ofertório, noto que ali dentro jaz uma única moeda de 50 centavos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]