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Manifestantes participam de protesto no aniversário de um ano da morte de George Floyd, em Miami, Flórida, EUA, em 25 de maio de 2021.
Manifestantes participam de protesto no aniversário de um ano da morte de George Floyd, em Miami, Flórida, EUA, em 25 de maio de 2021.| Foto: EFE / EPA / CRISTOBAL HERRERA-ULASHKEVICH

“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”. Se a famosa frase da militante americana Angela Davis, ex-membro do Partido Comunista dos Estados Unidos na época dos movimentos pelos direitos civis, fosse apenas um apelo à identificação de comportamentos e traços culturais remanescentes em sociedades marcadas pela escravidão racial – como o Brasil e os Estados Unidos – que continuam a surtir efeitos concretos na vida dos negros, a justa luta contra o racismo talvez não estivesse imersa em tantas controvérsias.

No século XXI, contudo, o termo “antirracismo” tem menos a ver com a firme oposição à discriminação e mais com uma espécie de profissão de fé, segundo a qual o racismo é a única explicação para os mais complexos problemas sociais e pessoas brancas são invariavelmente privilegiadas e frágeis. Quem ousa discordar da premissa de que o preconceito racial é tão inato e inevitável quanto um traço genético ou simplesmente busca acrescentar nuances à discussão, é invariavelmente “cancelado” por racismo e corre o risco de ter sua reputação queimada pelos tribunais das redes. Não à toa, o linguista John McWorther, professor da Universidade de Columbia, classifica o conjunto de práticas que marcam o que chama de “Terceira Onda Antirracista” como uma nova religião.

Em seu recém lançado “Woke Racism: How a New Religion has Betrayed Black America” (“Racismo Woke: Como uma Nova Religião Traiu a América Negra”, em tradução livre), ainda sem tradução para o português, McWorther, colunista e autor best-seller do The New York Times, argumenta que a militância antirracista emergida na última década opera não nos moldes de uma causa social que beneficia seu público-alvo, mas de um credo calcado em dogmas inquestionáveis (o que faz com que seus divergentes sejam tratados como hereges) e uma seleta casta de sacerdotes cujos sermões catárticos não fazem mais do que instilar emoções primárias e conduzir rituais de expiação.

Incisivo e irônico, McWorther não tem pudores de utilizar, por exemplo, o canceladíssimo “denegrir” (“palavra cuidadosamente escolhida”, complementa) e alerta, desde o início, que muitos de seus pares o verão como um “traidor” por causa da obra, ainda que procure tratar os ativistas com generosidade em meio às alfinetadas."Não precisamos supor que todos os antirracistas façam isso cinicamente. Ouça aquele membro da família, vizinho ou colega de trabalho que você conhece e que pensa assim e pergunte a si mesmo se eles realmente dão qualquer indicação de serem desesperados pelo poder. O antirracista da Terceira Onda genuinamente odeia o racismo, como a maioria de nós”, defende. “Devemos entendê-los — em parte por compaixão e em parte para evitar que destruam nossas vidas. Isso só pode acontecer se os entendermos não como lunáticos, mas como religiosos fervorosos”.

Cabe, aqui, uma crítica às formulações do linguista: McWorther é declaradamente ateu e progressista e, embora estes atributos não invalidem seus argumentos, ao comparar o credo antirracista com a fé judaico-cristã, o autor escorrega ao colocar no mesmo balaio os dogmas do antirracismo e as “crenças inexplicáveis” dos religiosos. A comparação entre as pautas identitárias e as religiões não é inédita e é bastante fundamentada, mas McWorther se faria mais compreensível se fizesse o esforço de demarcar a diferença entre religiosos “comuns” e fanáticos, por exemplo.

A religião do antirracismo

Isto posto, a crítica aos “eleitos” feita por McWorther remete às escritas pelo economista Thomas Sowell (a quem o linguista tece elogios) em seu “Os Ungidos”: "O que uma visão pode oferecer, e o que a visão predominante do nosso tempo oferece de forma enfática, é um estado especial de graça para aqueles que acreditam nela. (...) Em outras palavras, aqueles que discordam com a visão predominante são vistos não apenas como equivocados, e sim como pecadores. Para aqueles que têm essa visão de mundo, os ungidos e os incipientes não debatem no mesmo patamar moral ou jogam pelas mesmas regras frias da lógica e das evidências".

De sua parte, McWorther enumera os paralelos: na religião do antirracismo, o “pecado original” é a “fragilidade branca”, teorizada pela “sacerdotisa” Robin DiAngelo. Ao lado dela, estão o historiador Ibram X. Kendi — eleito uma das pessoas mais influentes de 2020 pela revista Time, ainda que se recuse deliberadamente a debater mesmo com ativistas negros de esquerda que discordem de suas teses — e o escritor Ta-Nehisi Coates, que afirmou não sentir nenhuma pena dos policiais e bombeiros mortos no World Trade Center, uma vez que a polícia seria uma “ameaça da natureza”.

Novamente, o linguista se esforça para encontrar um campo comum: “sim, eu acredito que ser branco na América automaticamente inclui certos privilégios não declarados em termos de senso de pertencimento. As figuras de autoridade têm as mesmas cores que você. Você é considerado dentro do padrão. Você não está sujeito a estereótipos". O problema, diz McWorther, é o que fazer diante desta condição.

“Os eleitos devem ritualmente 'reconhecer' que possuem privilégios brancos, com a consciência de que nunca podem ser absolvidos dele. (...) Esqueça (f*da-se?) a civilidade ou mesmo a lógica — tudo gira em torno de como você se sente e, especificamente, sobre o quanto você odeia a ordem reinante", ironiza o autor, descrevendo reuniões escolares em Nova York na qual os participantes entoavam trechos de “White Fragility”, de DiAngelo, e “How to Be an Antiracist", de Kendi, “como se fossem epístolas de São Pedro". Uma cena ritualística é descrita pelo linguista: "Pense neste tipo, afirmando 'Oh, eu sei que sou um privilegiado!’ enquanto levanta suas mãos para o alto, com as palmas para fora, como um pentecostal”.

Redução da desigualdade

Ao final da obra, McWorther propõe três medidas que, segundo ele, podem beneficiar as comunidades negras nos Estados Unidos de forma concreta: a descriminalização das drogas, ensinar as crianças a ler através do método fônico de alfabetização — baseado na identificação de fonemas e comprovadamente superior ao método “global”, no qual a criança memoriza o significado da palavra inteira — e, por fim, a propagação da ideia de quem nem todos precisam entrar na faculdade para ter uma vida digna, o que fomentaria a valorização do ensino técnico e de outras portas de entrada para o mercado de trabalho.

É claro que o primeiro ponto, abraçado tanto pela esquerda quanto por libertários e algumas correntes de liberais, é passível de discussão: o fim da guerra às drogas não necessariamente leva à redução da violência em áreas pobres. Os outros dois, contudo, são de fato receitas razoavelmente simples que, longe de resolver todos os problemas oriundos da desigualdade (entre eles, o racismo), representam um passo mais relevante do que os rituais dos “eleitos”. Quer se concorde ou não com todos os pontos, Woke Racism merece ser lido e divulgado sobretudo por sua descrição precisa de uma “fé” sedutora da qual só se pode salvar mediante uma crença inabalável na realidade.

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