Santiago, capital do Chile: em 30 anos, o PIB do país quintuplicou| Foto: Pixabay

Em outubro, o Chile comemora 30 anos do plebiscito que pôs fim à ditadura de Augusto Pinochet. Dois anos depois, em 1990, o general entregaria o poder oficialmente, deixando para trás um legado ambíguo: saudado por analistas estrangeiros pelas reformas econômicas que havia embandeirado, Pinochet também havia trilhado um caminho de violações de direitos humanos, escândalos de corrupção envolvendo a sua família e um saldo de quase metade da população chilena empurrada para baixo da linha da pobreza. A economia nacional até crescia rapidamente, mas o regime militar nunca estendeu o privilégio a boa parte do país, que não via os números do PIB se refletirem em qualidade de vida.

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Quando Pinochet deixou o poder, o PIB per capita chileno, considerando a paridade do poder de compra, era inferior até mesmo ao brasileiro: 4.589 dólares anuais contra 6.686 dólares no Brasil. Três décadas depois, o valor chileno quintuplicou, tornando-se o mais alto da América Latina – o do Brasil, em ritmo muito mais lento, pouco mais que dobrou. Hoje, segundo dados do Banco Mundial, nosso PIB per capita bate em 15.153 dólares anuais, contra 23.960 dos chilenos. Não é só nisso que o país andino lidera: o Chile também possui o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Ocupa hoje o 38.º lugar mundial, à frente de membros da União Europeia como Portugal e Hungria, contra a 79.ª posição ostentada pelo Brasil, que fica atrás de países como Albânia e Azerbaijão. 

A busca dos governos democráticos por conciliar um modelo econômico de mercado com a reabertura de programas de bem-estar social ajudou a elevar a qualidade de vida dos chilenos a um patamar pouco comum no continente. Medidas fiscais responsáveis e pragmatismo na hora de usar os recursos públicos ajudam a compreender o caminho trilhado pelo Chile desde o final da ditadura. 

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Crescimento e desigualdade 

Em 11 de setembro de 1973, quando as Forças Armadas bombardearam o palácio presidencial, matando o presidente Salvador Allende e suspendendo a democracia pelos 17 anos seguintes, o Chile começou a experimentar uma abrupta inversão no modelo de país vigente. A sonhada transição democrática ao socialismo, prometida por Allende, havia se mostrado incapaz de vencer as pressões internas e externas e os erros do governo, e agora entrava em cena um regime militar. No Chile, como também nos outros países que passaram por ditaduras na época, os generais tinham tradição estatista. O projeto de Allende, porém, já previa uma participação tão grande do Estado na economia que a busca por se afastar de tudo o que dizia respeito ao governo derrubado também fez Pinochet abandonar a tradição – em poucos anos, o Chile se tornaria o grande laboratório do neoliberalismo no mundo. 

Uma colaboração de décadas entre a Faculdade de Economia da Universidade Católica de Santiago e a Universidade de Chicago fez a Junta decidir dar uma chance aos jovens discípulos de Milton Friedman que vinham se formando no país. Ao longo de toda a ditadura, os chamados “Chicago Boys” se sucederiam em importantes cargos ministeriais, encabeçando medidas radicais de abertura do mercado, flexibilização de leis trabalhistas e privatizações dos mais variados tipos – pouco a pouco, até mesmo setores considerados intocáveis, como a saúde, a educação e a exploração do cobre (principal recurso de exportação chileno, que vinha sendo progressivamente estatizado desde os anos 60) saíram das mãos do Estado ou, pelo menos, foram partilhados com investidores privados. 

O “milagre” chileno registrou crescimentos anuais do PIB na ordem de 7,8% a 9,9% ao ano entre 1977 e 1980 e, apesar da aceleração da economia, a inflação estava em queda – passando de dígitos triplos (508% em 1973) para a ordem de 30% a 40% ao ano. Com a moeda valorizada, o fim de barreiras alfandegárias e um maior poder de compra, o terço mais rico da população viveu uma explosão de consumo e importações sem precedentes. No início da década de 80, havia no Chile 65% mais carros, 186% mais aparelhos de televisão, 176% mais máquinas de lavar e 478% mais geladeiras sendo vendidas do que antes do golpe. 

Em meados de 1980, um livro do economista Joaquín Lavín, que posteriormente se tornaria um dos nomes proeminentes da direita chilena, resumia o sentimento: “Você prefere música clássica, rock latino, rock pesado, orquestra, música folclórica ou de outro tipo? Uma passagem pelas 20 rádios AM e 23 rádios FM de Santiago lhe dará qualquer uma delas. Gosta de iogurte? Natural ou com sabor? Chocolate, abacaxi, morango, framboesa? Com pedaços de fruta ou sem? Da marca Soprole, Yely ou Dannon?”, questionava Lavín em Chile: Revolução Silenciosa. O Chile, defendia, havia deixado de ser um lugar em que se devia escolher entre uma coisa e outra para se tornar uma “sociedade de opções” que o livre-mercado ajudava a criar. Em silêncio, segundo o autor, Pinochet havia conseguido fazer uma verdadeira “revolução” na vida dos chilenos. 

No outro lado da moeda, porém, estava a desigualdade. O crescimento econômico do Chile não chegava a se refletir de maneira similar para toda a população e, de fato, uma grande parcela vivia em piores condições do que antes do golpe. A porcentagem de chilenos abaixo da linha da pobreza chegava a 45% em 1987, mais do que o dobro de antes da chegada dos generais ao poder (hoje, os governos democráticos reduziram o número para 11%). Mesmo na época mais acentuada do boom econômico do final dos anos 70, o desemprego seguiu sendo uma questão que a ditadura falhava em combater: ficava sempre em torno de 18% da população economicamente ativa, o triplo da média dos anos 60 (atualmente, o desemprego voltou aos patamares pré-ditadura, em torno de 6,5%). 

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“Convivência” 

Mas não era só a economia que dividia o país em torno de Pinochet: as massivas violações de direitos humanos davam um tom ainda mais sombrio às políticas do governo ditatorial. As comissões investigadoras estabelecidas após a redemocratização documentaram mais de 3,1 mil casos de mortes e desaparecimentos forçados, pelo menos 33 mil episódios de detenção com tortura, e as estimativas mais conservadoras ainda sugerem no mínimo 100 mil exilados políticos. Em um país com 10 milhões de habitantes no momento do golpe, quase 1,5% da população havia sofrido diretamente com o regime – além dos efeitos indiretos em familiares, amigos e colegas de trabalho ou estudo das vítimas. 

Quando chegou a hora do plebiscito de 1988, um dispositivo criado pela própria Constituição escrita pela Junta Militar oito anos mais cedo, a impopularidade de Pinochet era crescente até mesmo dentro das Forças Armadas – seriam os comandantes da Força Aérea e da Marinha os responsáveis por pressionar o ditador a aceitar os resultados das urnas, que decidiriam se Pinochet continuaria no poder até 1997 (votando “sim”) ou se os militares deveriam sair de cena em até um ano e meio (votando “não”).

O sentimento de se estar diante de um governo que não apenas dava as costas à população mais pobre como a reprimia contribuiu para diluir de vez o discurso oficial de que, sem um general guiando a nação, o Chile voltaria a mergulhar no caos que marcou os meses anteriores ao golpe. 

“No fundo, a divisão do voto entre ‘sim’ e ‘não’ mascarava o grau de unidade em um ponto crucial na disputa política da memória. A ameaça de um retorno iminente à crise de 1973 [recorrente nas falas de Pinochet] havia perdido credibilidade. Até mesmo os outros generais da Junta e os eleitores dispostos a votar ‘sim’ não se convenciam pela narrativa de que haveria um ‘retorno à guerra’”, descreve o historiador Steve Stern, professor da Universidade de Wisconsin-Madison e autor de The Memory Box of Pinochet’s Chile (“A Caixa da Memória do Chile de Pinochet”, sem edição brasileira), uma trilogia sobre a ditadura chilena.

Por outro lado, entende Stern, “o que eles [os opositores do regime] queriam era uma vida socioeconômica menos desigual e predatória”. 

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Pinochet foi derrotado por quase 56% dos votos válidos e, em 1990, entregou o poder a Patricio Aylwin, principal líder da campanha pelo “não” no plebiscito, que logo depois seria eleito o primeiro presidente da volta à democracia.

O período de transição seria conturbado: Pinochet seguiu uma ameaça à estabilidade política chilena, deixando a presidência mas se mantendo como comandante do Exército até 1998, forçando Aylwin a levar adiante uma política que ele próprio intitulou de “convivência”.

O primeiro governo democrático precisava encontrar um meio-termo entre manter o crescimento econômico, reduzir os mecanismos que acentuavam a desigualdade, e dar uma resposta aos clamores por justiça feitos pelas milhares de vítimas diretas e indiretas da ditadura – tudo isso sem fazer com que Pinochet aquartelasse os seus comandados e ameaçasse um novo golpe. 

“O lema de Aylwin era buscar a verdade, e então a justiça na medida do possível”, diz Stern. Com o tempo, aponta o historiador, ficaria claro que o discurso realista do presidente não era uma garantia de impunidade, mas uma luta para redefinir os limites do que era possível.

Apesar das pressões, Aylwin fez reformas sociais e econômicas imediatas, que depois seriam aprofundadas por seus sucessores (sua coalizão governaria o país ininterruptamente até 2010, e depois voltaria ao poder em 2014, com Michelle Bachelet, que entregará o cargo em março deste ano). O governo fez reestruturações tributárias visando a aumentar o investimento social e também modificou a legislação trabalhista para devolver aos trabalhadores o poder de negociação perdido com a perseguição aos sindicatos durante a ditadura. 

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No entanto, a busca por garantir condições mais justas aos empregados não significou uma burocratização maior. Pelo contrário: o Chile democrático inclusive diminuiu as regulamentações herdadas da ditadura. Segundo o Banco Mundial, hoje uma nova empresa leva em média seis dias para ser aberta no país (eram 42 em 2003). No Brasil, esse mesmo processo ocorre em uma média de 80 dias. 

Contas com o passado

Além das medidas socioeconômicas, também houve uma busca por prestar contas com o passado: Aylwin imediatamente estabeleceu uma Comissão da Verdade (conhecida como Comissão Rettig) para investigar os crimes da Junta. Em função da Lei de Anistia aprovada ainda durante a ditadura, a Comissão Rettig não tinha poderes judiciais e não permitia a abertura de processos apesar da descoberta dos fatos ao longo das investigações. 

“Que o Chile seja um exemplo no tema dos direitos humanos é uma afirmação muito difícil de sustentar”, acredita o jurista Sebastián Cox, professor da Universidade Alberto Hurtado e ex-exilado político, que, ao regressar ao Chile, montou um dos primeiros cursos dedicado aos direitos humanos no país.

“Mas houve vários esforços e conquistas em anos recentes, como a criação do INDH (Instituto Nacional de Direitos Humanos), a criação e funcionamento do Museu da Memória e dos Direitos Humanos e seu apoio aos mais de 260 memoriais existentes em todo o país”, exemplifica. 

Apesar das limitações, o Chile avançou consideravelmente nas políticas de reparação quando comparado a países como o Brasil: com o tempo, alguns militares começaram a ser condenados por crimes de lesa-humanidade e enviados ao complexo penal de Punta Peuco, construído especificamente para cumprirem suas penas, graças a uma brecha no perdão autoproclamado pela Junta: a Anistia não cobria casos de sequestro e, perante os tribunais, os milhares de desaparecidos políticos podiam ser enquadrados dessa forma. 

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O diretor da polícia política da ditadura, Manuel Contreras, foi um dos detidos graças a esse artifício. Morreu em 2015, enquanto cumpria pena acumulada de 549 anos de prisão por crimes de sequestro, homicídio e tortura. O próprio Pinochet ficaria até o final da vida, em 2006, valendo-se de diagnósticos de incapacidade mental causada pela idade para fugir dos julgamentos que o cercavam em duas frentes, tanto na dos direitos humanos quanto na da corrupção. Investigações na virada do século revelaram que o ditador possuía pelo menos 27 milhões de dólares depositados em contas-fantasma no exterior durante seus dias no poder. 

Correções de rumo 

Nas quase três décadas desde a redemocratização, o Chile conseguiu manter o crescimento econômico constante e a inflação controlada, reduzindo o abismo social herdado do regime militar através de um aumento dos investimentos sociais.

Desde o início dos anos 2000, o governo chileno tem se valido de uma política econômica “anticíclica”, que busca deixar os gastos públicos menos atrelados às volatilidades do mercado, especialmente em relação aos preços do cobre: dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal chilena, os gastos públicos são mantidos sem grandes alterações nos momentos em que o mercado é favorável, para que o governo tenha recursos para seguir ampliando os investimentos sociais na época de vacas magras. Isso evita que um boom eventual seja utilizado para ganhos políticos de curto prazo, gerando rombos para as administrações futuras, como ocorreu no Brasil. 

Um exemplo da caminhada chilena para contornar a desigualdade é o efeito “eletrocardiograma” do país no Coeficiente Gini, que mede a desigualdade – em uma escala que vai de zero a um (quanto mais próximo de um, maior a disparidade no país), o Chile saltou de 0,46 em 1973 para 0,57 em 1990, regressando apenas em 2015 para patamares semelhantes àqueles de antes do golpe – hoje, o Coeficiente Gini chileno é calculado em 0,48. 

“A desigualdade caiu e isso é uma boa notícia, mas não vamos dizer que o problema está solucionado”, argumenta o economista Osvaldo Larrañaga, diretor da Escola de Governo da Universidade Católica do Chile e coordenador do livro Desiguales, estudo sobre as diferenças sociais no país lançado no ano passado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). “A educação segue sendo um tema importantíssimo no combate à desigualdade. E, apesar dos avanços, segue havendo muita incerteza na população sobre o que vai passar na velhice ou em caso de uma enfermidade grave”, diz. 

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Alguns dos legados mais controversos da ditadura ainda não foram totalmente revisitados. A previdência social chilena, desde o início da década de 80, abandonou o modelo público e passou a adotar um sistema privado, em que cada trabalhador deposita o dinheiro em um fundo individual ao longo da sua carreira.

A ideia era evitar o problema dos fundos públicos, que se tornam insustentáveis conforme a idade média da população aumenta e há menos trabalhadores ativos contribuindo. No longo prazo, o excesso de informalidade no mercado de trabalho rendeu uma “poupança” que, hoje, paga aos aposentados um valor inferior ao salário mínimo nacional: segundo estudo da Fundação Sol, divulgado em 2015 com base em dados da Superintendência de Pensões do governo, quase 91% da população recebia valores inferiores a 150 mil pesos mensais (cerca de R$ 790) em um país em que o salário mínimo atualmente supera com sobras o brasileiro e chega aos 276 mil pesos (R$ 1.452). 

Outro ponto ainda debatido fortemente é a questão da educação, que teve a gratuidade abolida durante a ditadura – mesmo nas universidades públicas, hoje, a maioria dos estudantes paga mensalidades. O alto custo dos cursos tem gerado protestos estudantis há mais de uma década, exigindo maior investimento público no ensino.

Desde o final da ditadura, os governos têm trabalhado no sentido de facilitar o acesso da população mais pobre, aumentando os subsídios: entre 1990 e 2015, a porcentagem do PIB investida na educação quase dobrou, passando de 2,5% para 4,7% do orçamento anual. A medida mais importante no sentido de modificar a herança da ditadura foi tomada no último dia 24 de janeiro, quando o Congresso chileno enfim aprovou a lei que restabelece a gratuidade das universidades estatais. 

“A transição para a democracia vem sendo um processo longo e difícil”, resume Sebastián Cox. “Mas não houve retrocessos e nem retornos. Hoje, atrevo-me a afirmar que temos reservas de valor, vivemos experiências, conhecemos boas práticas e cada vez mais buscamos uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática”.

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