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Ansiedade e depressão

Conciliar epidemia de doenças mentais e produção é desafio no trabalho 

Os casos de ansiedade, depressão e burnout explodiram após a pandemia (Foto: Pixabay com IA)

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Ansiedade, depressão, esgotamento e estresse crítico sempre foram presenças constantes em escritórios, fábricas, lojas e praticamente qualquer local de trabalho. Desde a pandemia de Covid-19, no entanto, passaram a bater ponto diário nesses espaços. Estudos realizados em diversos países, incluindo o Brasil, revelam uma epidemia de doenças mentais relacionadas ao trabalho — os números devem ser ainda maiores, pois ainda há ampla subnotificação.

A questão central atualmente já não é mais como combater, mas sim como conviver com elas, tanto do ponto de vista das empresas quanto dos trabalhadores. É um ciclo difícil de ser quebrado e que gera prejuízo para ambos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 12 bilhões de dias úteis sejam perdidos globalmente, todos os anos, devido à depressão e ansiedade relacionados ao trabalho. Uma perda em torno de US$ 1 trilhão (R$ 5,88 trilhões) por ano.

De um lado, estão as empresas, que precisam identificar e enfrentar os problemas que desencadeiam essas doenças, e ao mesmo tempo precisam de funcionários saudáveis para maximizar lucro e produtividade. As substituições e licenças médicas impactam os negócios. 

Do outro, estão os empregados que, ao ficar doentes, e não conseguem desempenhar suas tarefas integralmente, são mais pressionados e consequentemente ficam piores. A situação desgasta sua saúde física, mental e familiar. 

Como, então, romper essa sequência e conciliar produtividade com saúde mental? 

Para especialistas do trabalho, para não sucumbir, é preciso haver mudanças reais. A boa notícia que é que elas são mais fáceis de pôr em prática do que parece, embora exijam esforços dos ambos os lados. O primeiro desafio é encarar que se trata de uma realidade sem solução paliativa. Adiar só vai aumentar os custos financeiros e humanos.  

“Não se trata apenas de garantir o bem-estar dos colaboradores, mas também uma estratégia inteligente para a sustentabilidade dos negócios, redução da rotatividade, aumento do engajamento e diminuição dos afastamentos a longo prazo”, diz Silvina Ramal, especialista em Cultura Empreendedora e Desenvolvimento de Pessoas. 

Mudanças em curso 

Nos últimos dez anos, a quantidade de benefícios concedidos por incapacidade temporária do trabalho devido a transtornos mentais saltou de 221.721, em 2014, para 472.328, em 2024, segundo o Ministério da Previdência. É mais do que o dobro.  

Em 2014, foram concedidos cerca de 82 mil benefícios devido a depressão e 32 mil por transtornos ansiosos. Em 2024, quadros de depressão totalizaram mais de 165 mil afastamentos e os de ansiedade, 141 mil. Isso sem contar as subnotificações porque muitos, por medo de preconceito ou de perder o emprego, não buscam ajuda.

O Ministério da Previdência destaca que em 2020, por causa da pandemia, os benefícios foram concedidos de forma diferenciada, o que prejudicou a elaboração das estatísticas. Por isso, os resultados desse ano devem ser analisados com cautela ou ressalvas. 

Diante deste crescimento, a Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho, que estabelece as diretrizes de saúde no ambiente do trabalho, foi atualizada para prevenir doenças ocupacionais, afastamentos e ações trabalhistas. A partir de 26 de maio, as empresas deverão identificar, avaliar e gerenciar riscos psicossociais no ambiente de trabalho — como estresse crônico, sobrecarga, assédio e outros fatores.  

José Roberto Almeida, advogado especialista em direito do Trabalho, acredita que a medida vai ajudar a conhecer melhor as dores de cada setor e avaliar o volume de trabalho, a carga horária, o ajuste de metas possíveis de serem atingidas e os canais internos de comunicação. 

Thatiana Cappellano, mestre em Ciências Sociais e consultora da 4CO, concorda. Ela afirma que essas ações são mais fáceis de serem mensuradas e de a empresa mostrar que fez, mas ela questiona se serão de fato efetivas. Para ela, a mudança real depende de três bases: intensidade (eliminar metas abusivas e irreais), estrutura do trabalho e modelo de trabalho. 

“A empresa tem que se questionar se oferece estrutura e salário para a equipe trabalhar no nível de estresse que exige. Se não consegue mudar as metas, por exemplo, pode melhorar a remuneração e a estrutura ou oferecer modelos diferentes, com maior flexibilidade. Entendo que as empresas não conseguem dar conta de tudo ao mesmo tempo, mas pelo menos dois desses três pontos precisam estar equilibrados”, diz ela.

Do ponto de vista prático, medidas como a flexibilização de horários ou trabalho remoto, revisão de metas para torná-las mais realistas e a criação de canais abertos de comunicação são fundamentais, afirma Silvina.  

“As empresas ainda podem distribuir as tarefas de forma equitativa, garantir que os prazos sejam razoáveis, incentivar a participação dos empregados na tomada de decisões, disponibilizar acesso a serviços de apoio psicológico”, diz Almeida. 

Quando o “trabalho adoece” 

É importante entender que transtornos mentais causados por questões de trabalho não são meras dificuldades comuns ao ambiente corporativo. Devem ser tratadas como situações de exageros, abusos e outras condições que levam ao desgaste extremo do empregado e por um longo período.  

As causas que levam um profissional a adoecer são várias e geralmente estão relacionadas a um ambiente nocivo, com metas excessivas e irreais, jornadas extensas, estresse contínuo, pressão por resultados, assédio moral e sexual, conflitos interpessoais, condições precárias de trabalho, discriminação, falta de reconhecimento e de autonomia, ou de equilíbrio entre vida pessoal e profissional, lista Almeida. 

Além dos transtornos mais recorrentes como depressão, ansiedade e a síndrome de burnout, o uso de substâncias, como o alcoolismo também acende um alerta, principalmente porque é visto como tabu: “Há uma resistência a reconhecer o problema. Essa resistência é ruim, acaba estigmatizando as pessoas que passam pelo problema”, diz Silvina. 

A pandemia agravou o quadro de doenças mentais. Segundo Thatiana, neste período em que houve redução de jornada e salários nas empresas, assim como demissões, as pessoas que ficaram empregadas passaram a fazer o trabalho de dois, três colegas.

“A pessoa passou a trabalhar mais, por mais tempo e de forma mais intensa. Por um tempo, tudo bem, mas isso se tornou o ‘novo normal’: jornadas longas em cargas horárias e quantidade de atividades”, diz a pesquisadora sobre o trabalho, Thatiana. 

Somado a isso, a precarização do trabalho, como a pejotização – termo para quando o profissional é contratado com pessoa jurídica, mas com obrigações de CLT sem os direitos de tal – e com massa salarial diminuindo: as exigências são mais altas e os salários menores. Outro ponto, diz ela, é o modelo de trabalho sem flexibilidade. 

Silvina Ramal acrescenta que essa crise não começou agora. Segundo ela, remontam à Revolução Industrial, quando o trabalho humano passou a ser moldado à imagem das máquinas: repetitivo, cronometrado, sem espaço para falhas ou pausas. Hoje, diz ela, espera-se que todos estejam sempre motivados, engajados, produtivos, criativos, mas esse personagem de alta performance é insustentável.

“Quando o corpo e a mente não aguentam mais, a conta chega, no adoecimento físico, emocional e psicológico. A pandemia acelerou e escancarou esse esgotamento coletivo. Mas ela não foi a causa, foi o gatilho. Estávamos há muito tempo no limite”, diz Silvina.  

Outro agravante é a hiperconectividade do século XXI. Estar sempre conectado dá a sensação constante de estar “devendo produtividade”, uma prisão invisível, que corrói lentamente a saúde mental. “A neurociência, por exemplo, já comprova que o estresse crônico afeta diretamente funções cognitivas essenciais como criatividade, empatia e tomada de decisão”.  

Você sabe qual é o seu limite? 

É comum o próprio profissional ter dificuldade em reconhecer seu limite. Costumam acreditar que dão conta das demandas ou que apenas precisam de mais resiliência, na moda hoje em dia. E aqui vale um alerta: não cair em discursos de coachs de internet que promovem alta performance que nem eles mesmo seguem. 

Alguns sintomas para ficar atento são: cansaço persistente, alterações de sono, irritabilidade frequente, dificuldade de concentração ou uma sensação de estar “funcionando no automático”. Quando o trabalho deixa de ser fonte de realização e passa a ser apenas sobrevivência, afirma Silvina. 

“A pessoa perde interesse pelas coisas da vida dela, vida social, academia, sexual. Tem gente que começa a abusar de álcool e drogas. Não é só dormir. Acorda cansado. É outra forma de organismo reagir”, diz Thatiana. 

Ambas ressaltam que muitos destes sintomas aparecem aos poucos, por isso é difícil também percebê-los. E a demora em identificá-los pode levar ao burnout, que é o esgotamento total, uma condição grave de exaustão mental que demanda mais tempo de recuperação.  

“Quando se chega ao nível de um burnout, não há muito o que fazer além de se afastar temporariamente e se cuidar. É um ponto de ruptura”, diz Silvina. 

Segundo relatos de quem passou pela situação, é como se o carro fizesse um barulho aqui, outro ali, uma luz que para de funcionar, mas o motorista ignora os sinais, acreditando não ser nada importante. Um dia, o automóvel está em alta velocidade numa estrada e simplesmente dá pane geral. Para bruscamente por completo, não liga, não move. O esforço foi tão alto e por tanto tempo que agora o carro não consegue nem dar partida.  

Silvina chama a atenção para o agravamento de casos de burnout entre mulheres, por ficarem sobrecarregadas com várias funções, e entre empresários. “Quem empreende tende a se colocar em segundo plano, acreditando que segurar tudo faz parte do jogo. Entendam que cuidar de si é parte da gestão do negócio — não um luxo, mas uma necessidade estratégica”.

Expor ou não a situação na empresa? 

É ingenuidade supor que todos os lugares vão compreender a situação do funcionário, então, nem sempre vale expor o que realmente está acontecendo. O mais importante é pedir ajuda médica. O psicólogo ou psiquiatra é quem vai direcionar e saber qual o tratamento e se o afastamento das atividades profissionais é necessário, assim como definir o período.

Se for por mais de 15 dias, essa licença deve ser concedida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em 2023, o burnout e tentativa de suicídio foram incluídas na lista de doenças relacionadas ao trabalho. Os empregados têm 12 meses de estabilidade no emprego após alta médica nesses casos. Mas são comuns os relatos de pessoas demitidas após este período. O estigma ainda é alto.

Portanto, vale considerar o perfil da empresa, do gestor, se é possível conciliar demandas e a rotina da doença antes de avaliar se é melhor tentar um acordo para flexibilizar as horas, por exemplo, mudar de função, ou pedir um afastamento mesmo.  

“O ideal seria que todos os ambientes fossem seguros o suficiente para que um colaborador pudesse expressar suas dificuldades sem medo de julgamento ou retaliação. Mas nem sempre é assim, e é preciso agir com inteligência emocional e estratégia”, diz Silvina. 

Alguns pontos que orientam essa decisão, segundo ela, são: preste atenção no seu corpo, pois às vezes ele sinaliza sobrecarga por meio de dores, tensão muscular, insônia, crises de ansiedade. Proteja-se de ambientes tóxicos: se a carga estiver pesada, tente conversar com a liderança, mudar de setor, mas, se não der, considere sair, pois permanecer neste ambiente pode custar caro. Equilibre a vida profissional e pessoal e alinhe o trabalhe à motivação, seja valores ou estabilidade.

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