Selo romeno de 1988 retratando o ditador Nicolae Ceauşescu| Foto: Reprodução

Quando o regime do ditador Nicolae Ceaușescu caiu, em dezembro de 1989, a Romênia tinha diante de si o desafio de reverter uma série de problemas resultantes das décadas de totalitarismo comunista pelas quais o país havia passado, como o empobrecimento da população, o cerceamento da liberdade e a polarização da sociedade. O fim do regime, no entanto, deixou à vista uma monstruosidade que outros países do Leste Europeu não tinham registrado: descobriram-se mais de 170 mil crianças vivendo em 700 orfanatos nas condições mais precárias imagináveis. O caso ficou conhecido como os “órfãos da Romênia”, mas a grande maioria dessas crianças não eram órfãs: seus pais estavam vivos, mas não tinham condições de sustentá-las.

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Na época da queda do regime, fazia 23 anos que Ceaușescu havia editado o Decreto 770, uma das primeiras medidas do seu governo. Desde 1955, a taxa de fertilidade romena caía vertiginosamente e, para reverter esse quadro, o regime restringiu o aborto – que era legal sob demanda desde 1957 –, coibiu a venda e a distribuição de contraceptivos, prometeu benefícios a famílias com no mínimo cinco filhos e o status de “mãe heroína” a mulheres com pelo menos dez crianças. Mais tarde, em 1977, ao perceber que a taxa de fertilidade despencava novamente, o governo passou a cobrar taxas de casais que não tinham filhos.

Essas políticas se baseavam em uma visão nacionalista – as mães de muitos filhos eram “heroínas” por dar à pátria muitos filhos. As crianças nascidas nesse período passaram a ser apelidadas de Decreței – “decretinhos”. No entanto, a qualidade de vida da população romena, que já não era das melhores quando Ceaușescu assumiu o poder, só decrescia. No começo dos anos 1980, quando a dívida externa do país disparou, o ditador deu início a uma política de austeridade que empobreceu ainda mais a população, a fim de pagar a dívida, para diminuir a influência de organizações financeiras internacionais no país.

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Com a miséria, milhares de crianças foram deixadas por suas famílias em orfanatos, já que os pais não tinham condições de criá-las. Estima-se que meio milhão de crianças tenham vivido nos orfanatos romenos durante o regime de Ceaușescu. Como se toda essa história já não fosse trágica o suficiente, as condições dos orfanatos eram desumanas, sobretudo com o aperto de cintos que foi a política de austeridade dos anos 1980.

Alguns deles não tinham lugar para tomar banho; em outros, as crianças passavam o dia amarradas às camas. A comida era escassa e a eletricidade funcionava de forma intermitente. Havia a prática de transferir as crianças sempre que completassem três anos, e depois novamente aos seis. Maus tratos e abuso sexual eram comuns – o que desencadeava um ciclo em que crianças mais velhas frequentemente agrediam as mais novas.

Lacunas irreversíveis

Charles Nelson III, pediatra e neurocientista

No início da década de 2000, o governo romeno convidou cientistas da Universidade de Harvard para estudar a situação dos orfanatos, no intuito de ter a ciência ao seu lado na decisão de fechar as instituições. A utilidade da pesquisa, porém, acabou sendo bem mais abrangente: os pesquisadores estão entendendo melhor a diferença entre o desenvolvimento de crianças que passaram os primeiros anos de vida em instituições que não davam qualquer tipo de afeto ou atenção personalizada e o de crianças que cresceram em um ambiente familiar. A Gazeta do Povo conversou com o pediatra e neurocientista Charles Nelson III, que participou das pesquisas e esteve em Curitiba de 12 a 14 de agosto para o III Congresso Internacional de Acolhimento Familiar.

A equipe de Nelson acompanha o desenvolvimento de 136 crianças que tinham sido abandonadas e abrigadas. Metade delas foi colocada aos cuidados de uma família e a outra metade permaneceu em orfanatos. A escolha sobre quem teria a oportunidade de ter uma família não foi exatamente um dilema ético. “Só conseguimos mandar 68 crianças para o acolhimento familiar porque só conseguimos encontrar 58 famílias dispostas a recebê-las”, explica o neurocientista. “Mesmo depois de iniciado o estudo, não conseguimos encontrar mais do que 58 famílias. Do contrário, teríamos dado acolhimento familiar a todas. Então colocamos os nomes das 136 crianças num papelzinho e os sorteamos ao acaso”.

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Logo de início, os pesquisadores perceberam que as crianças que passaram seus primeiros anos de vida nos orfanatos tinham uma série de limitações. “Os problemas eram de todos os tipos: emocionais, cognitivos, de saúde mental. O cérebro delas era menor”, conta Nelson. “Havia um rumor de que Ceaușescu estava tentando fazer era uma criar uma espécie de força policial com essas crianças, controlando a juventude e criando as crianças juntas. Nunca conseguimos confirmar isso. E as crianças tinham tantos problemas que duvido que elas fossem eficientes como força policial”.

O grande achado da pesquisa foi perceber que, em certa medida, os danos causados no desenvolvimento de boa parte dessas crianças são irreversíveis. “O que descobrimos foi que, quando as crianças colocadas em abrigos no início da vida eram retiradas destes lugares e ficavam aos cuidados de famílias nos primeiros dois anos, elas demonstravam boa recuperação. Há um estudo na Inglaterra que mostra que crianças adotadas com até seis meses não têm nenhum problema. Elas são iguais a crianças que já nasceram em suas famílias”, pontua Nelson. “Mas quando se analisa crianças que passaram até os três primeiros anos internadas, a probabilidade de elas apresentarem problemas aumenta exponencialmente. E isso significa que a oportunidade de recuperação completa também é limitada”.

Lições importantes

As descobertas reforçam a importância da atenção à primeira infância, período entre zero e seis anos em que se desenrolam os principais aspectos do desenvolvimento cognitivo, socioemocional e motor. “No começo vimos efeitos devastadores nas crianças que passaram mais de dois anos numa instituição e, à medida que elas envelheceram, a situação permaneceu a mesma”, conta o neurocientista. “Constatamos um alto índice de TDAH e problemas de conduta, cérebros menores, problemas de relacionamento e altos índices de delinquência. E elas tinham dificuldades para lidar com situações de estresse. Elas não demonstram estresse, o que é muito nocivo”.

Essas constatações fazem emergir preocupações concretas a respeito do desenvolvimento das crianças durante a primeira infância. Isso diz respeito tanto àquelas que crescem em suas famílias quanto as que saem da guarda dos pais biológicos. É por razões como essas, por exemplo, que o Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que o acolhimento familiar deve ter prioridade sobre o acolhimento institucional. O acolhimento familiar constitui uma guarda provisória da criança ou adolescente, diferentemente da tutela ou da adoção.

“Se pensarmos nas casas de acolhida ao redor do mundo, elas não são muito boas. Então nossa proposta é a de que, se for para haver casas de acolhida, elas têm de ser muito boas”, sublinha Nelson. “E outra coisa a ser evitada é que a criança vá de uma casa para a outra várias vezes ao longo da vida. As mudanças são traumáticas para crianças”.

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Quanto às crianças que crescem junto a suas famílias, a lição também é clara: a criança necessita de atenção, estímulo e afeto para se desenvolver. No Brasil, programas como o Criança Feliz, do governo federal, atuam no acompanhamento de famílias em situação de vulnerabilidade, orientando os pais sobre como impulsionar o desenvolvimento de habilidades cognitivas, motoras e socioemocionais nas crianças através de ações simples. Políticas públicas e ações da iniciativa privada que contribuam para a conciliação entre trabalho e família, valorizando o tempo dos pais junto aos filhos, também colaboram nesse sentido.

A pesquisa de Nelson e seus colegas ainda não terminou. “Ainda estamos acompanhando essas crianças. Nós fizemos um estudo quando elas completaram 16 anos e acabamos de receber um financiamento para analisá-las novamente aos 21 anos. Assim, teremos dados de quando elas eram bebês até a entrada delas na vida adulta”, conta. E está nos planos do pesquisador estudar a realidade brasileira.

“Estamos começando um novo estudo em São Paulo. Vamos procurar crianças em abrigos, construir casas de acolhida para famílias que se disponham a recebê-las e comparar as crianças”, conta Nelson. “Outra intervenção que faremos é construir abrigos aperfeiçoados, instituições ainda melhores, para podermos comparar abrigos comuns, abrigos aperfeiçoados e nossas casas de acolhida. Já arrecadamentos dinheiro para financiar os dois primeiros anos de estudo e estamos contratando a equipe. Esperamos começar o estudo nos próximos anos”.