Democracia em Vertigem: a documentarista Petra Costa acompanhou o processo de impeachment de Dilma.| Foto: Divulgação
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Ao ver os créditos de Democracia em Vertigem, sobre o ocaso de Lula, Dilma e PT, sobre o “golpe”, sobre o inescrupuloso Sergio Moro “treinado nos Estados Unidos”, sobre a ascensão do neofascismo tupiniquim, etc., a vontade que senti foi a de me juntar à Turma do Óbvio e apontar os vários equívocos do documentário. A começar pela voz soporífera da narradora, roteirista, diretora, produtora e pessoa-cheia-de-boas-intenções Petra Costa. Depois, fui tomado pelo desejo de expor toda a hipocrisia da narrativa ao retratar uma esquerda que insiste na vitimização e na exaltação de virtudes que não resistem a um escrutínio.

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Muito mais desafiador e interessante, contudo, é ver, analisar e exaltar o lado bom do documentário. E ele tem mais de um. A começar pela narrativa em primeira pessoa da própria cineasta que, com a voz mais humilde possível, tenta se passar por uma pobre filha de nobres e abnegados trabalhadores de classe média transformados em guerrilheiros e que lutaram bravamente contra a ditadura militar para que ele, o líder das massas, o imaculado Luiz Inácio, chegasse ao poder e matasse a fome de todos.

É cena, claro. Petra Costa é filha de uma multimilionária herdeira do Grupo Andrade Gutierrez, Marília Andrade, e, por consequência, neta de Gabriel Andrade, um dos fundadores da empreiteira. Marília, aliás, foi casada com Luis Favre, franco-argentino que ficou famoso por ter sido o pivô da separação de Marta e Eduardo Suplicy, mas cuja atuação na esquerda brasileira remonta aos anos 1980.

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Aqui e ali, Petra Costa acaba por confessar sua origem oligárquica, até porque não teria como escondê-la hoje em dia. Mas, como disse, a forma como ela tangencia , deturpa e intencionalmente ignora esses detalhes autobiográficos tem lá seu lado bom. Porque revela como pensam e se veem milhares de ricos militantes petistas que insistem nos velhos ideais do marxismo e que, por inércia, repetem os novos slogans desta ideologia há 150 anos revolucionária e assassina. Do conforto de seus apartamentos em Paris ou Nova York, herdeiros de conglomerados capitalistas se veem como escolhidos capazes de levar a Humanidade a um outro patamar – patamar este que eles mesmos estabelecem e que são por princípio nobres e justos, desde que não ameacem seus luxos. Para essas pessoas, a vida é uma narrativa e a sociedade é um experimento no qual o indivíduo é mero tubo de ensaio.

Não tenho nada contra o fato de Petra Costa ser rica. Muito pelo contrário. Estou entre os que defendem que não seja cobrado qualquer imposto sobre herança ou grandes fortunas, por exemplo. Apenas ressalto aqui o caráter privilegiado da cineasta-narradora para demonstrar algo que, de Mencken a Roberto Campos, passando por Rothbard, Orwell e até Millôr Fernandes, outros já demonstraram com mais talento e profundidade: o socialismo, seja como realização de um projeto seja como narrativa, é um luxo. E, no final das contas, Democracia em Vertigem nada mais é do que lamúria pelo parquinho de diversão perdido. (O parquinho, neste caso, é o Brasil).

Paz e compaixão sincera

Outro lado bom é que Democracia em Vertigem transmite certa paz ao espectador sensato. A paz de perceber que, por ser incapaz de fugir ao pensamento simplista e maniqueísta para o qual a ação humana é determinada por vilões e heróis muito bem delimitados, por não conseguir compreender a menor das nuanças e insistir em ver o mundo como uma luta entre opressores e oprimidos, a esquerda se mostra inapta a aprender com os erros e, por consequência, a reconstruir um ideal que um dia os possa levar de volta ao poder.

Por fim, o terceiro lado bom de se passar duas horas diante da televisão assistindo a Democracia em Vertigem é que o documentário é capaz de exercitar o combalido músculo da compaixão – naqueles que ainda o têm, claro. Não, não estou sendo irônico. O maior mérito do filme é, de fato, substituir no espectador a onipresente e pervasiva raiva por uma sincera compaixão.

Porque Petra Costa, com sua narrativa cheia de lugares-comuns, delírios conspiratórios e pieguice, acaba por explicar como nasce e se desenvolve e se consolida a mente petista-revolucionária. E é um processo inquestionavelmente duro e sofrido, por mais que se tenha apartamentos em Paris e por mais que se receba uma bela mesada pela iniciativa capitalista bem-sucedida do vovô.

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O processo todo começa com boas intenções catalisadas por uma ou mais tragédias. No caso de Petra, essa combinação estava nos pais, guerrilheiros marxistas que viram seus mentores serem assassinados pela ditadura. Dessa mistura nasceu a menina já com a estrela vermelha no peito, fadada ao romantismo da causa operária, inabalável em seu bom-mocismo, por mais que paredões e Mensalões provassem o contrário.

Me compadeço, sim. Porque, em Democracia em Vertigem, fica claro que Petra Costa não teve escolha. Muito antes de as redes sociais darem origem a uma legião de zumbis viciados em política, os pais da cineasta já arriscavam a vida em nome dessa coisa intangível e demoníaca, o que, evidentemente, corrompeu para sempre a visão que ela tinha de liberdade. Ela só pôde seguir os passos de seus genitores e acreditar na santidade de um líder popular – a realização de um ideal aprendido nos melhores bancos escolares, com os piores professores.

E este é o verdadeiro drama do documentário. Democracia em Vertigem talvez pretenda, como andei lendo por aí, consolidar uma narrativa mentirosa e até mesmo santificar um líder corrupto. Sem querer, contudo, o filme mostra toda uma geração corrompida por pais, professores e líderes inescrupulosos, levada a acreditar na superioridade do coletivo sobre o indivíduo, do material sobre o espiritual, da igualdade sobre a diferença, etc. Uma geração para a qual a realidade tem que se adaptar a uma história oblíqua contada por uma narradora de voz tão infantil quanto sua percepção de mundo a fim de que nessa realidade se encaixem seus sonhos e frustrações.

Uma geração verdadeiramente perdida.

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