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A hipótese da origem da pandemia por meio de um vazamento laboratorial só alcançou atenção plena na imprensa há quase um ano, quando surgiram publicações técnicas defendendo a sua viabilidade e respondendo a tentativas apressadas de decidir a favor da origem completamente natural, em animais silvestres. A Gazeta do Povo foi pioneira na imprensa brasileira ao tratar o assunto com a seriedade que ele merece em novembro de 2020, em vez de seguir a manada decretando que a hipótese era uma “teoria da conspiração”, ou outra vertente que exagerou para o outro lado falando em “arma biológica”.
Também na ocasião falamos da possibilidade real de o vírus ter sido manipulado em laboratório em pesquisas de ganho de função (o que é mais parcimonioso que se falar em criação de arma biológica) com financiamento da organização não-governamental EcoHealth Alliance, sediada em Nova York e chefiada pelo virologista Peter Daszak. A ONG atuava como intermediária de verbas entre os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos e o Instituto de Virologia de Wuhan (IVW). Seguiu-se uma série de revelações que desvendaram mais detalhes, como pedidos de verbas da EcoHealth a agências de inteligência para fazer ganho de função em vírus e uma operação de abafamento das investigações da possibilidade de origem laboratorial em setores dessas agências. Entre elas, no entanto, o FBI considera o vazamento laboratorial mais provável que a origem zoonótica. Agora, a respeitada revista americana Vanity Fair obteve acesso a 100 mil documentos vazados sobre a EcoHealth que lançam mais luz sobre o seu envolvimento na possível origem da pandemia de COVID-19.
Atitudes suspeitas de cientistas em reunião online
Em junho de 2021, Jesse Bloom, um especialista em evolução de vírus do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson em Seattle, alertou que sequências de variantes do novo coronavírus coletadas em Wuhan haviam sumido de uma base de dados do NIH. Bloom recuperou 13 das sequências pela nuvem do buscador Google. Ele publicou um artigo pré-prelo (sem revisão por pares) fazendo análise dessas sequências e alertando para a deleção suspeita. Normalmente, as sequências só são removidas pelos NIH via solicitação dos autores. Os NIH relataram que, de fato, os depositantes chineses haviam pedido para remover as sequências em junho de 2020 e foram atendidos pois detêm os direitos sobre elas.
Bloom mandou seu artigo para o direitor dos NIH, Francis Collins, e para seu subordinado Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), parte dos NIH. Collins reagiu rapidamente marcando para 20 de junho de 2021 uma videoconferência com dois convidados seus, pedindo a Bloom que trouxesse também dois convidados. A Vanity Fair obteve registros exclusivos do que aconteceu na reunião.
Um convidado de Fauci foi Kristian Andersen, primeiro autor de um artigo do começo de 2020 que alimentou muito da retórica inflamada que se viu na imprensa contra a consideração da hipótese da origem laboratorial. Conforme e-mails obtidos via lei de acesso à informação, Andersen primeiro considerou uma hipótese séria que o vírus pudesse ter vindo de laboratório, mas mudou de ideia muito rapidamente, em menos de uma semana, depois que Collins manifestou resistência à hipótese.
Na reunião de junho, Andersen decretou que o artigo de Bloom era “profundamente perturbador”, alegou que era antiético que Bloom investigasse as sequências apagadas, e começou um bate-boca aos gritos com um dos convidados de Bloom, Rasmus Nielsen, que pensava que as sequências apagadas pelos chineses eram incomuns e intrigantes.
Fauci, presente na reunião, disse que era injusto que Bloom dissesse no artigo que os chineses apagaram as sequências de forma “sub-reptícia”. A razão do pedido de deleção era desconhecida.
Andersen, que é editor do site em que se publicam artigos pré-prelos como o de Bloom, sugeriu usar dessa posição para deletar inteiramente o artigo, de forma a parecer inclusive que ele nunca foi submetido. Bloom recusou. Essa sugestão foi estranha até para Collins e Fauci, relata Bloom nos documentos obtidos pela Vanity Fair. Fauci se distanciou de Andersen: “Só para registro, quero deixar claro que nunca sugeri que você delete ou revise o seu pré-prelo”. Andersen nega ter feito a sugestão.
Um brinde a Anthony Fauci
“Entendendo o Risco da Emergência de Coronavírus de Morcego” é o título de um documento da EcoHealth Alliance de pedido de verba à agência de Fauci. O pedido, de 2014, foi atendido com um montante de 3,7 milhões de dólares, 600 mil dos quais foram passados da EcoHealth para o Instituto de Virologia de Wuhan. Os NIH suspenderam o financiamento em julho de 2020, com a pandemia se alastrando rapidamente.
O presidente da ONG, Peter Daszak, teve um comportamento dúbio nesse tempo, aparentando ocultar algumas informações do público. Obteve o ceticismo de uma equipe informal de investigadores presentes no Twitter, que se identificam com a hashtag #DRASTIC e são os maiores responsáveis por dissipar o tabu contra a hipótese da origem laboratorial e, ao mesmo tempo, a bajulação da revista Science.
Apesar da promessa de absoluta transparência de Daszak, o governo chinês tirou do ar de maneira suspeita um banco de dados de 22 mil sequências e amostras de vírus do site do IVW em setembro de 2019, três meses antes do primeiro surto eclodir na mesma cidade do instituto. A reação do diretor da ONG à pandemia foi correr para articular uma carta no periódico médico The Lancet que defendesse a origem zoonótica, atitude replicada por Fauci e Andersen, que resultou em outro artigo no grupo Nature.
Além dos 100 mil documentos internos da EcoHealth Alliance obtidos pela revista Vanity Fair, a publicação americana também ouviu cinco ex-funcionários e 33 outras pessoas envolvidas. O primeiro contato de Daszak com Fauci foi em um clube social de belas artes em Washington DC, onde a ONG promovia coquetéis para aproximar seus cientistas dos burocratas com as chaves dos cofres para as verbas governamentais. Cerca de 8 mil dólares eram gastos em queijo brie e vinho chardonnay em cada coquetel. A ONG diz que atraía entre 75 e 150 burocratas e cientistas para cada evento, além de filantropos da iniciativa privada e outras ONGs com seus profissionais.
Depois de articulações de bastidores durante três anos, envolvendo até funcionários que cuidavam da agenda de Fauci, Daszak finalmente conseguiu acesso ao cientista-celebridade em 2016. O chefe do gabinete do diretor da NIAID deu uma dica: “Fauci normalmente diz não para quase todo tipo de convite como o seu, ao menos que [as redes de televisão] ABC, NBC, CBS e Fox estejam lá com as suas câmeras e ele seja quem vai dar a principal ou única manifestação”. A dica funcionou e Fauci falou em um dos coquetéis da EcoHealth, atraindo até a NASA para o público. Isso foi um mês após a eleição de Donald Trump, que preocupava a plateia, mas Daszak acalmou os presentes enfatizando a “missão apolítica” da ONG.
Do ambientalismo ao Dr. Moreau
O esforço de bajulação de Daszak deu frutos. A EcoHealth Alliance era uma ONG ambientalista com a missão de salvar peixes-bois e outras espécies ameaçadas, vivia no vermelho e até cogitava colaborar com uma empresa de mineração na Libéria e com milionários da extração do azeite de dendê para melhorar suas contas.
O interesse de Daszak em morcegos como reservatórios de vírus perigosos é antigo. Em 2004, levou estudantes de medicina de Harvard para caçar morcegos em Camarões. O começo dos anos 2000, com ataques de antraz via carta nos Estados Unidos e o surto de gripe asiática de coronavírus, era um período propício para deslanchar pesquisas desse tipo. Em 2003, o NIAID obteve uma verba de US$ 1,7 bilhão para desenvolver defesas contra o bioterrorismo. Nesta época, também, começou a colaboração de Daszak com a “mulher morcego” do IVW, Shi Zhengli, cuja equipe abriu as cavernas chinesas para a EcoHealth. O primeiro artigo dos dois veio em 2005. Em 2009, os tempos de vacas magras da ONG acabaram com uma verba de US$ 18 milhões da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Desse dinheiro, US$ 1,1 milhão foram transferidos para Shi Zhengli em Wuhan.
A verba foi renovada em 2014, e no mesmo ano os NIH aprovaram mais uma verba de US$ 3,7 milhões. A epidemiologista Maureen Miller, que trabalhou nesta época na EcoHealth, relata que as reuniões a portas fechadas eram a norma, e ela não era convidada. Sentia que estava lá para que a ONG marcasse pontos políticos por contratar uma cientista mulher. Trabalhou com mais proximidade a Shi que a Daszak, procurando sinais de anticorpos para novos vírus em chineses que moravam perto de cavernas na província de Yunnan. De Shi, ela diz que é boa cientista, mas respeita o sistema chinês e segue as regras do Partido Comunista. Deixou a ONG dois anos depois. Miller alega que Daszak tentou ficar com o crédito pelo seu trabalho, mas teve seu nome incluído em um artigo graças à intervenção de Shi. “Ele quer ser a pessoa que faz a descoberta, sem ter que compartilhar [o crédito]”, diz Miller.
Enquanto isso, Daszak alarmava a agência de fomento com um relatório anual atrasado contando que a verba dos NIH seria usada para clonar o coronavírus da síndrome respiratória aguda do Oriente Médio (MERS), transmitida por camelos na Arábia Saudita em 2012, e que já havia sido usada para fazer novos coronavírus quiméricos similares ao coronavírus da gripe asiática (SARS-CoV-1) e, em retrospecto, ao atual vírus da COVID-19 (SARS-CoV-2).
No clássico da ficção científica de H. G. Wells, um cientista excêntrico cria quimeras, organismos que são misturas monstruosas de humanos com outros animais. O que as verbas da EcoHealth possibilitaram não é tão diferente, envolvendo além desses coronavírus quiméricos a “humanização” de pulmões de camundongos para testar sua infecciosidade. Manhattan agora era a Ilha do Dr. Moreau, mas o trabalho era feito em Wuhan.
Driblando a moratória sobre o ganho de função
O termo “ganho de função” passou a ser mais aplicado na virologia quando dois cientistas alteraram geneticamente o vírus da gripe aviária em 2011, dando ao vírus novas funções como infectar furões. A ideia era antecipar a capacidade infecciosa de linhagens virais para antecipar uma defesa contra elas. Fauci apoiou publicamente essas pesquisas, mas em 2014 o governo Obama baixou uma moratória sobre esse tipo de pesquisa, congelando novas verbas até que sua segurança fosse mais bem avaliada. Mas a norma tinha brechas que foram prontamente aproveitadas por Fauci e Collins para continuar o financiamento à EcoHealth Alliance, Daszak e Shi.
Agências de inteligência americanas acreditam que os cientistas civis como Shi Zhengli colaboraram com cientistas militares da China ao menos desde 2017. A cientista nega. Um ex-funcionário da EcoHealth diz que a pesquisa feita no Instituto de Virologia de Wuhan com dinheiro de impostos americanos era uma caixa preta até mesmo para Daszak. “Tínhamos de aceitar as coisas por relato”, para não enfraquecer as relações, acrescenta. Daszak “não sabe o que aconteceu naquele laboratório, não teria como saber”.
Apesar de toda a injeção de verbas, a dependência da EcoHealth do dinheiro do governo já anunciava em 2017 uma iminente crise nas contas. A solução de Daszak foi buscar financiamento na DARPA, agência de financiamento de pesquisa do Departamento de Defesa americano. A DARPA buscava por propostas na área de detectar patógenos antes que saltassem de animais para humanos. Antes, o diretor da ONG tinha dito a seus funcionários que uma subagência do Departamento de Defesa buscava “informações sobre o que está ocorrendo em países aos quais não têm acesso (China, Brasil, Indonésia, Índia)”.
A proposta da EcoHealth para a DARPA veio à tona pelos investigadores independentes da rede #DRASTIC. O documento mostra que a ONG planejava buscar por coronavírus de morcego que tivessem uma estrutura molecular específica que auxilia na infecciosidade, o sítio de clivagem da furina, ou possivelmente inserir essa estrutura em alguns coronavírus para que ganhassem a função de infectar células humanas. Até hoje não foi encontrado na natureza parente próximo do vírus causador da COVID-19 que tenha o sítio de clivagem da furina que está nele. Este é um dos motivos da suspeita de que ele resulta de trabalho em algum laboratório do qual escapou em Wuhan.
A proposta, no entanto, foi rejeitada pela DARPA e essa verba não foi entregue. Foi por pouco: só um de três pareceristas a rejeitou. Um membro da agência diz que o motivo foi que a proposta exibia “uma horrível falta de bom senso” e amadorismo da parte da EcoHealth, que parecia também apenas um intermediário entre a verba e a pesquisa na China e que estava usando o renome de um dos autores, Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill — que já havia publicado pesquisa de ganho de função colaborando com Shi Zhengli. O documento parece “um mapa do caminho para um vírus como o SARS-CoV-2”, comenta o virologista Simon Wain-Hobson. Mas Daszak se defende dizendo que na época a DARPA considerou a proposta como uma forte candidata e não foi financiada por falta de dinheiro.
Robert Redfield, ex-diretor dos Centros de Controle de Doenças, tem sido um dos especialistas que defendem a plausibilidade da origem laboratorial do novo coronavírus desde o começo da pandemia. Ele expressou suas preocupações já em janeiro de 2020 em telefonemas para Fauci, para Jeremy Farrar, diretor de uma agência de fomento britânica, e para o diretor geral da OMS, Tedros Ghebreyesus. Esses cientistas discutiram a possibilidade em videoconferência, sem convidar Redfield. Ele deixou de ser convidado pela comunidade de burocratas da ciência para reuniões como a que discutiu a pesquisa de Jesse Bloom, e só soube de sua exclusão depois.
Mudando de ideia repentinamente e sem dar motivos específicos
O período mais crítico dessas reuniões envolve os quatro primeiros dias de fevereiro de 2020. O grupo de 11 cientistas passou nesse período curtíssimo de considerar a hipótese do vazamento laboratorial muito séria, citando a evidência do sítio de clivagem da furina, para uma posição linha-dura contra ela e de afirmação da origem natural, como se viu no artigo de Kristian Andersen e colaboradores no mês seguinte: “não acreditamos que qualquer tipo de cenário baseado em laboratório seja plausível”. Não está claro como e por que mudaram de ideia tão rápido. Em um livro, Farrar é vago: “importantes novas informações, análises infindáveis, discussões intensas e muitas noites sem dormir”.
Ainda em fevereiro, foi publicada a carta na revista médica The Lancet, com autoria de 26 cientistas, declarando que “Unimo-nos para fazer uma forte condenação às teorias da conspiração que sugerem que a COVID-19 não tem uma origem natural”. Nove meses depois, e-mails obtidos via lei de acesso à informação revelaram que a carta foi orquestrada por Daszak, que ocultou seu nome para lhe dar uma falsa impressão de independência e consenso. Ele teve também o cuidado político de aconselhar Ralph Baric a não assinar. “Declaramos que não temos conflito de interesses”, arremata a carta.
Em novembro de 2020, quando a OMS anunciou que lançaria uma investigação das origens do novo coronavírus com onze especialistas internacionais. A China tinha poder de veto sobre a lista, rejeitou todos os candidatos sugeridos pelos Estados Unidos. O único representante dos EUA na equipe investigativa era Peter Daszak. Ele alega que incialmente recusou, mas teve de aceitar os argumentos da OMS de que ele deveria participar pela pesquisa que fazia com coronavírus na China. A OMS não confirma nem nega essa versão. A investigação, feita em janeiro de 2021, foi amplamente considerada improdutiva. Tedros desabonou seu relatório no dia da publicação em março de 2021, insistindo que todas as hipóteses estavam na mesa, apesar de o relatório alegar que a origem laboratorial era “extremamente improvável” (o que os investigadores decidiram por voto). Três meses depois, o líder da comissão investigativa confessou que esse resultado foi combinado com os 17 cientistas chineses, que insistiram que um vazamento laboratorial só poderia ser mencionado se fosse classificado como improvável e nenhuma investigação adicional fosse incentivada a respeito.
Dúvida recalcitrante
Ambas as hipóteses da origem zoonótica e da origem laboratorial, que se desmembram em sub-hipóteses do que poderia ter acontecido, ainda aguardam evidências diretas. Apesar de ter passado o tabu inicial de “checadores de fatos” alegando que a última era uma “teoria da conspiração” durante quase todo o ano de 2020 e início de 2021, ainda há um favorecimento injustificado da origem zoonótica por parte de publicações como o New York Times, que deu capa para a hipótese em fevereiro deste ano com base de pré-prelos que incluem um de autoria do grupo de Andersen.
Paralelamente a esses pré-prelos, surpreendentemente, a esperança deles de estabelecer que a fonte do vírus foram animais do mercado de Huanan em Wuhan foi minada pelo Centro de Controle de Doenças chinês, que publicou novos resultados mostrando que nenhuma presença do vírus da covid foi encontrada nesses animais, e que os resultados positivos do mercado são mais bem explicados pela presença de humanos infectados. Além disso, um novo estudo de italianos sugere que o vírus poderia estar circulando bem antes de dezembro de 2019, talvez meses antes. Se confirmado, isso deixa ainda mais suspeita a remoção do banco de dados de sequências virais do IVW em setembro daquele ano.
Nicholas Wade, experiente jornalista de ciência e ex-editor de ciência do New York Times, observou que muitos de seus colegas de cobertura de pesquisas têm uma postura obsequiosa e pouco crítica para com suas fontes científicas, diferente da postura de jornalistas investigativos ou de política. Seu artigo bombástico divulgando as conclusões dos investigadores da rede #DRASTIC e rechaçando o falso consenso científico e jornalístico em torno da origem zoonótica está prestes a completar um ano.