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Hidroxicloroquina
Parte da imprensa noticiou de forma inadequado novo estudo que fez nova estimativa de mortalidade entre hospitalizados com Covid no começo da pandemia.| Foto: Whispyhistory/Wikimedia Commons

No começo do ano (2), um estudo publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy por pesquisadores da Universidade de Lyon, na França, e da Universidade Laval, no Canadá, afirmou que a prescrição do medicamento hidroxicloroquina (HCQ) contra a Covid-19 “foi associada a um aumento de 11% da mortalidade” dos pacientes, com um total de 17 mil mortes. Nelson Teich, oncologista que foi Ministro da Saúde por um mês em 2020, reagiu ao estudo no X, dizendo que “o tempo mostrou que a minha decisão de me posicionar contra a liberação e recomendação da cloroquina foi correta”. A HCQ é uma forma menos tóxica da cloroquina, mas o ex-ministro se referia a ambas.

Grande parte da imprensa reagiu de forma similar: “Uso de hidroxicloroquina durante pandemia de Covid causou 17 mil mortes em seis países”, afirmou o jornal O Estado de S. Paulo. “Cloroquina contra Covid matou quase 17 mil pessoas”, noticiou a Carta Capital. “Cloroquina matou 17 mil pessoas na primeira onda da covid, diz estudo”, alegou o UOL Notícias. Há um problema: não é verdade.

A afirmação de relação causal entre a droga e as mortes não foi estabelecida pelo estudo, como ele próprio deixa claro em seu texto, com linguagem mais cautelosa: “a principal descoberta do presente estudo é que a HCQ poderia ter sido associada a um excesso de 16990 mortes durante a primeira onda da pandemia de Covid-19 nos seis países para os quais dados estavam disponíveis”, disseram os autores, em sua seção de discussão. Contudo, eles próprios, nos títulos do estudo e de duas tabelas, sugerem inadequadamente relação causal com o termo “mortes induzidas por” HCQ.

O estudo “não traz qualquer informação nova sobre o efeito da hidroxicloroquina sobre mortalidade em pacientes de Covid”, explica Daniel Victor Tausk, professor associado do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP). “Simplesmente porque não é um estudo sobre o efeito da HCQ em pacientes da Covid de qualquer tipo”. Os pesquisadores franceses e canadenses fizeram uma revisão de literatura com mérito de dar uma nova estimativa da mortalidade de pacientes hospitalizados.

Tausk tem analisado por contra própria os efeitos das drogas propostas para tratamento precoce no começo da pandemia, fazendo simulações de computador compartilhadas com a Gazeta do Povo que mostram que uma droga com eficácia de 20 a 30% contra Covid produziria resultados idênticos aos usados por muitos como “prova de ineficácia” contra HCQ. Ou seja, é provável que as drogas de tratamento precoce tenham ajudado, como sugerem os dados consultados pelo especialista, mesmo que não tenham atingido sempre os limiares de teste estatístico exigidos nos estudos de maior rigor conhecidos como “ensaios controlados e randomizados”, em que os pacientes são distribuídos para um grupo que tomou o tratamento, a ser comparado com outro grupo que não tomou (chamado “grupo controle”) e (o que nem sempre é incluso) um terceiro grupo que tomou um falso tratamento sabidamente sem efeito (o famoso “placebo”).

“A estimativa das mortes que teriam sido causadas pela hidroxicloroquina vem de uma conta de quarta série em que aqueles 11% de aumento de mortalidade já encontrados no estudo antigo são tomados como fatos”, critica o especialista. O estudo antigo, publicado na revista Nature, é bom, segundo Tausk, “mas não dá nenhuma informação sobre o que chamávamos de ‘tratamento precoce’”. A esmagadora maioria dos dados levados em conta pelo estudo antigo e o novo vem de dois ensaios clínicos em que a HCQ foi dada em doses altas para pacientes hospitalizados — se já eram hospitalizados, não se pode falar em tratamento precoce.

O peso total dado a pacientes ambulatoriais, que se encaixariam na definição de tratamento precoce, “foi de apenas 0,2%”. Isso não significa que houve má fé dos pesquisadores, esclarece o matemático, mas que há um problema no critério de inclusão dos dados, especialmente ao serem usados como se mostrassem que a prescrição precoce matou alguém. Na verdade, permanece de pé uma revisão de estudos coberta pela Gazeta do Povo que indicou que, se tomada antes da infecção, a HCQ pode ter ajudado.

A estimativa de 17 mil mortes em seis países é correta? “Isso depende de saber se os hospitais da vida real estavam usando as doses altas usadas nos ensaios em pacientes graves. Se não estavam, a estimativa encontrada no novo estudo não vale nada”, assevera Tausk. Em outras palavras, o número é uma extrapolação baseada em uma dose alta de HCQ usada em dois estudos com pacientes internados, e não há levantamentos de que essas doses tenham sido aplicadas de forma generalizada, especialmente em pacientes em estado mais grave. Se o incremento de 11% indica alguma relação causal em mortes, é da dose alta de HCQ em pacientes graves e já fragilizados, o que não representa a maioria dos casos de prescrição de HCQ na época.

Algo similar ao excesso de dose nos ensaios com HCQ foi feito com a cloroquina em um estudo de Manaus conduzido pelo infectologista Marcus Lacerda, no começo de 2020. O pesquisador, ligado à Fiocruz Amazônia, incluiu quase 100 pacientes em estado grave com Covid, pretendendo testar se a droga os ajudaria. Seis pesquisadores brasileiros denunciaram à revista em que o estudo foi publicado que Lacerda e colegas haviam dobrado acidentalmente a dose de cloroquina recomendada em suas próprias fontes. Dos pacientes incluídos no estudo, 22 morreram. Em julho de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu uma medalha de “mérito científico” a Lacerda.

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