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Como se deve estabelecer a relação entre o Estado e a sociedade civil? Que margem de autonomia se deve conceber às empresas, igrejas, sindicatos e demais associações? As respostas para estas questões variam na história do pensamento político. Neste ensaio, procura-se expor o desenvolvimento histórico de uma resposta possível: o princípio da subsidiariedade. 

A articulação moderna do princípio da subsidiariedade surge num contexto de profundas transformações na Europa Ocidental. Em particular, deve-se ter em mente o fenômeno das grandes revoluções continentais do fim do Século XVIII, dentre as quais se destaca a Revolução Francesa. Sem a compreensão deste contexto, é impossível entender o lugar da subsidiariedade na dialética política contemporânea. 

Nossas convicções: O princípio da subsidiariedade: menos Estado e mais cidadão

Um efeito importante da Revolução Francesa foi a afirmação da soberania absoluta do poder do Estado nacional, em detrimento de uma ordem política plural do período anterior. Embora se diga que a revolução superou o período do absolutismo político, o historiador italiano Paolo Grossi afirma que foi ela a responsável pelo início do absolutismo jurídico: o fenômeno da redução de toda realidade normativa à ideia de legislação positiva, fruto da vontade soberana do Poder Legislativo. 

No contexto pós-revolucionário, a vitalidade do tecido social foi preterida em prol das ficções do indivíduo, domínio exclusivo do direito privado, e do Estado, domínio do direito público. Ao primeiro se reservava a figura do contrato; ao segundo, a lei. A população reduziu-se a uma “massa anônima de cidadãos”, ainda segundo Grossi: formalmente iguais, mas sempre considerados abstrata e isoladamente. À sociedade civil restava papel meramente passivo, subordinada como estava à soberania ilimitada do Estado. 

Nossas convicções: A finalidade da sociedade e o bem comum

Nenhuma medida traduz esta tendência de forma tão clara quanto a famosa lei francesa Le Chapelier, de 1791. Ancorada ideologicamente nos princípios da liberdade e da constituição francesa, a lei aboliu todas as corporações profissionais, proibindo membros de um mesmo ofício de se organizarem formalmente. 

Se a lei teve o mérito de ampliar a liberdade profissional e arrefecer o poder opressivo que estas corporações tinham sobre a economia francesa, por um lado, por outro o instrumento acabou por minar de forma radical o direito de associação dos trabalhadores. Em consequência, aos cidadãos foi relegada a contingência de negociarem isoladamente as suas condições de trabalho, de forma absolutamente desigual. 

Para além disso, a época apresentava também uma grande mudança econômica. Presenciava-se o auge da 1ª Revolução Industrial. A nova realidade econômica, geradora de uma profunda reorganização da divisão do trabalho das sociedades europeias, criara a classe trabalhadora, e era crescente a tensão social ocasionada pelo surgimento dos movimentos sindicais, a demanda por proteção jurídica e o conflito com o aparato estatal. 

Uma reação teórica a esse estado de coisas se deu com a obra de Luigi Taparelli d’Azeglio, um padre jesuíta italiano. O autor se utilizou do instrumental teórico aristotélico-tomista, à época descreditado após séculos de filosofia moderna, para defender uma concepção política contrária à pós-revolucionária. 

Nossas convicções: Os responsáveis pelo bem comum

O principal problema abordado pelo autor foi o correto relacionamento entre os diferentes grupos de uma determinada sociedade. O tratamento atomizado dispensado ao indivíduo acabava por desmerecer a importância de outros corpos sociais não identificados com o Estado. Ao retirar-lhes o reconhecimento e a capacidade de autorregulação, o Estado incorria em uma espécie de usurpação das competências naturais destes mesmos grupos. 

De acordo com esta concepção, a sociedade ideal respeitaria uma realidade social diversificada, composta por grupos heterogêneos e responsáveis, cada um deles, por contribuições relevantes ao bem comum. Este arranjo de coisas seria regido pelo conceito de “direito hipotático”: o conjunto de direitos e deveres de cada associação entre si, e na sua relação perante o Estado e os indivíduos. Apenas o respeito ao direito hipotático seria a garantia da justiça social, virtude civil essencial para o bem da comunidade. 

A obra de Luigi Taparelli d’Azeglio não atingiu repercussão imediata. Foi apenas através da intermediação de um importante aluno seu, Vincenzo Gioacchino Pecci, que se popularizaram os seus principais conceitos. Pecci, que se tornaria o Papa Leão XIII, fundou a tradição da Doutrina Social da Igreja em 1891, com a célebre Encíclica Rerum Novarum. No documento, adota-se a ideia da socialidade intrínseca do gênero humano, da qual decorre o direito natural a pertencer a diversos tipos de associações. Neste sentido, a sociedade civil se erige para proteger este direito natural, e jamais para aniquilá-lo. Um regime de governo que se volte contra as próprias sociedades voluntárias fere os direitos naturais dos indivíduos e perde a própria legitimidade. 

Nossas convicções: As empresas, sua finalidade e o bem comum

Mas será na Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, que o princípio ganhará a sua formulação mais célebre. O documento de 1931 traduz pela primeira vez o termo grego hypotaxis para o latim subsidiarii officii, ou “função subsidiária”. E é ela que articula da forma mais clara a essência da subsidiariedade: a injustiça da imposição da autoridade mais poderosa sobre os grupos menores. Na medida do possível, afirma Pio XI, deve o Estado deixar à própria coletividade aquelas tarefas que lhes compete desempenhar, sendo o contrário um “grave dano” bem como uma “perturbação da boa ordem social”. 

Por fim, será apenas em 1991 que a Doutrina Social da Igreja, na Centesimus Annus de João Paulo II, conceberá a subsidiariedade como uma forma de fomento da economia de mercado. Contra o afã centralizador dos regimes econômicos socialistas, o princípio se apresenta como um guardião da força criativa da sociedade civil, capaz de resolver seus próprios problemas e de produzir bens e serviços sem um direcionamento autoritário do governo. 

À luz de seu desenvolvimento histórico, é possível ver como a subsidiariedade resiste a uma classificação ideológica simplista. Se no início da sua articulação moderna, ela surge como um obstáculo ao Estado legiferante e centralizador, em um segundo momento o princípio se opõe ao poderio das Potestades econômicas, das grandes empresas e de seu poderio desmesurado. De toda forma, resta em seu conteúdo sempre uma essência ineliminável: a defesa da sociedade civil, do indivíduo e de seus grupos sociais.

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