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O Cristo proibido da Beija-Flor: política e folia na avenida
O Cristo proibido da Beija-Flor: política e folia na avenida| Foto: Reprodução/Wikipédia

“Entrou o ano, entrou o carnaval; e acontece isto por este Brasil em fora. O carnaval é hoje a festa mais estúpida do Brasil. Nunca se amontoaram tantos fatos para fazê-la assim. Nem no tempo do entrudo ela podia ser tão idiota como é hoje. O que se canta e o que se faz são o suprassumo da mais profunda miséria mental”.

Sobram conservadores mal-humorados com o carnaval. Lima Barreto, o autor do trecho acima, é um deles. A origem da festa, afinal, tem o seu quê de revolucionária - ainda que passe muito longe do que se convencionou chamar de “esquerda” ou “direita”. A maioria dos relatos apontam para a celebração da Saturnália no Império Romano, celebrada em meados de dezembro e regada a música, dança, comilança e libertinagem. Algumas fontes recontam a história do carnaval desde a Grécia Antiga, quando a chegada da primavera era saudada com os raros dias de festa em que toda a população estava autorizada a participar.

Como bem se sabe, foi o Cristianismo que transformou o carne vale - do latim, “adeus à carne” - no que conhecemos: a festa que marca a “despedida da carne” antes da Quaresma, período do calendário litúrgico marcado por jejum, oração e penitência. E o que pretendia marcar a despedida do alimento do qual os cristãos se absteriam até a Páscoa virou a despedida da carne em seu sentido mais amplo, por assim dizer: o objeto de todas as tentações da humanidade.

Nascia assim o feriado em que a ordem, a hierarquia (as máscaras de Veneza decorrem, justamente, da tentativa da elite de se camuflar em meio ao povo), a rigidez e o autocontrole são abolidos: “não existe pecado” entre sexta-feira e a Quarta-feira de Cinzas.

Foi no Brasil, contudo, que o feriado ganhou outra dimensão. O entrudo - festa que incluía “permissão” para atirar baldes d’água, farinha, ovos e tinta pelas ruas - foi importado dos portugueses e proibido em meados de 1840, levando à substituição pela guerra de confetes, serpentinas e buquês de flores (em 1832, ninguém menos do que Charles Darwin foi vítima do que ele descreveria como “os perigos do carnaval”: “achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas”).

Dos povos negros escravizados na Bahia surgiria o samba - que criaria raízes no Rio de Janeiro do início do século XX. À mesma época, surgia do Andaraí a primeira marchinha de carnaval, “Ô Abre Alas”, de Chiquinha de Gonzaga. Em 1928, registra-se a criação da primeira escola de samba: a “Deixa Falar”, que atende por Estácio de Sá. Logo mais, viria a “Vai Como Pode”, hoje conhecida como Portela. Apesar do sucesso crescente do gênero, por muito tempo, o mero porte de instrumentos de percussão nas ruas era enquadrado na lei da vadiagem. Neste sentido, pode-se entender que o samba representava uma forma de resistência.

Os novos ventos da década de 1930 inverteram o cenário. Getúlio Vargas, no embalo das ideias nacionalistas de Benito Mussolini, decretou que os enredos das escolas de samba deveriam prestar homenagens à história do Brasil e ao próprio governo. Dois anos após a sua morte, o ditador ainda seria tema de desfiles, sendo homenageado pela Estação Primeira de Mangueira com o enredo “O Grande Presidente” (“Salve o estadista idealista e realizador/Getúlio Vargas/O grande presidente de valor”).

A Ditadura Militar traria novas nuances à relação entre política e carnaval. Com o êxito dos desfiles, a prefeitura do Rio passou a instalar arquibancadas na Avenida Rio Branco e cobrar ingressos. Nascia, nessa época, a intrincada relação entre grandes figurões da ditadura e os empresários do jogo do bicho. O dinheiro do jogo ajudou a catapultar escolas de samba como a Beija-Flor de Nilópolis que, graças ao bicheiro Anísio Abraão David, deixou de ser um pequeno bloco da Baixada Fluminense para se tornar uma das escolas mais premiadas do carnaval carioca.

Às vésperas da redemocratização, um governo de esquerda daria à festa a estrutura para se tornar o que é hoje. Inaugurada em 1984, a Passarela do Samba, ou Sambódromo, foi feita sob o mandato do ex-governador Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Era um projeto arquitetônico modernista típico de Oscar Niemeyer. Em São Paulo, o Sambódromo do Anhembi viria em 1991, inaugurado pela prefeita Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores (PT).

Só no Rio, lá se vão 36 anos de desfiles, Cada um com sua miscelânea própria de temas, polêmicas e contradições. O ano de 1989, por exemplo, premiou na Sapucaí o enredo “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, da Imperatriz Leopoldinense. Era uma ode ao fim da escravidão, cantada pela escola cujo nome homenageia uma personagem histórica querida dos conservadores.

O segundo lugar coube a outro desfile histórico: “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, da Beija-Flor. O desfile trazia o Cristo Redentor coberto por um saco plástico, com os dizeres “mesmo proibido, rogai por nós”, após a negativa da Arquidiocese do Rio para que a escola representasse o monumento vestido de mendigo. Paradoxalmente, o autor do enredo, o carnavalesco Joãozinho Trinta, é também autor de uma das mais célebres denúncias da discrepância entre as elites intelectuais e a população: “o povo gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”.

Na era do cancelamento, a politização da avenida é crescente. Em 2018, o ex-presidente Michel Temer foi representado por um vampiro em um carro alegórico da Paraíso do Tuiutí, que desfilou com um enredo sobre a suposta “volta da escravidão” em meio aos debates sobre a reforma trabalhista. A Mangueira, que 1956 tinha homenageado Getúlio Vargas, o ditador que enviou Olga Prestes à Alemanha nazista, foi a campeã do carnaval de 2019 com um samba-enredo que virava a história do Brasil do avesso, reduzindo a pó, por exemplo, a participação da princesa Isabel na abolição da escravidão.

Nas ruas, 2020 viu fantasias serem “canceladas” por apropriação de elementos da cultura indígena ou africana em meio à patrulha do “lugar de fala”. Como se a própria existência da festa já não fosse resultado de uma amálgama cultural.

Sobrou algo para comemorar no carnaval?

“Mas será que todas as coisas estão erradas e devem ser substituídas?”. João Camilo de Oliveira Torres, um dos pais do conservadorismo à brasileira, enuncia a pergunta que se deve fazer diante da festa mais popular do país, vítima do cabo de guerra ideológico que arrebata o debate público. “Em qualquer situação concreta há muita coisa que deve ser conservada”, responde o historiador, em seu “Elogio ao conservadorismo”.

Tome-se, por exemplo, os desfiles de Nilópolis. Em entrevista ao documentário “Bicheiros: Jogo Perigoso”, da CNN, a porta-bandeira da Beija-Flor, Selminha Sorriso, membro da escola há 25 anos, reforça que o carnaval, para a comunidade, é muito mais do que um desfile. “Não é só folia, é também fonte de renda, de subsistência, ela gera empregos, ela transforma, ela educa. Eu vim de comunidade, com pouca perspectiva e hoje sou bacharel em direito, sou segundo sargento do Corpo de Bombeiros”, conta. Não à toa, calcula-se que o cancelamento das festividades por conta do coronavírus fará com que o país deixe de movimentar cerca de 8,1 bilhões de dólares - levando em conta os blocos de rua, trios elétricos e outras comemorações.

O carnaval, afinal, não acontece só no Sambódromo - muito menos só no Rio. Como qualquer tradição, no melhor sentido da palavra, ele abarca um universo de conhecimentos e práticas, usos e costumes transmitidos de geração em geração. Não importa quão progressista seja o enredo; o respeito ao passado é materializado, ano após ano, na ala das baianas e da velha guarda. É cantado em letras famosas que imploram aos mais jovens que “não deixem o samba morrer” (a canção é tema deste texto do colunista Alexandre Borges, que a classifica como um “hino conservador”).

“Ao dizer que ‘o morro foi feito de samba’, os autores reconhecem que o local físico (‘o morro’) não é nada perto dos bens imateriais que caracterizam e definem sua gente. O que importa, o que ‘faz’ (constitui) o ‘morro’, é o samba, é a cultura que precisa ser preservada. É o argumento conservador na essência, daqueles que Edmund Burke ou Roger Scruton aplaudiriam de pé”, descreve Borges.

Quem já presenciou os bastidores de um desfile nos arredores da Sapucaí certamente viu essas senhoras e senhores ajudando a vestir e preparar os pequenos, ensinando passos e batuques. Quem já caminhou entre os setores populares do Sambódromo não tem dúvidas de que não se torce pela Mangueira por causa do Leandro Vieira e seu enredo sobre Marielle. Torce-se por Leandro Vieira por causa da Mangueira. A escola dos pais, dos avós e da comunidade que se une para construir e arrastar carros alegóricos de dez, doze metros pela avenida.

Em seu “O que é o Brasil?”, o antropólogo Roberto DaMatta descreve o carnaval como “a possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres”. Além disso, “o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, trocar de posição na estrutura social”, escreve o estudioso. Se, por um lado, esta descrição constitui o cerne da peleja conservadora com a festa (e faria corar os lordes conservadores britânicos, que tanto levam a sério os seus deveres), por outro não deixa de exaltar a qualidade imaginativa da festa: uma fresta no calendário, quando diferenças são suplantadas não por uma revolução, mas pelo senso de comunidade.

A julgar por todos os revezes de sua história em solo brasileiro, portanto, o carnaval não é uma festa de esquerda. É uma festa do povo e, como tal, contém todas as suas idiossincrasias. Uma avenida tortuosa entre interesses e ideologias, pela qual passam milhares de pessoas comuns. Uma mistura de exageros que tornam o brasileiro impossível de se enfiar em uma caixinha.

Não por acaso, o mesmo Lima Barreto que desprezava o carnaval reconhecia nele o antídoto para o que considerava um mal ainda pior: a sanha dos ideólogos do progresso na elaboração de um “plano perfeito” para fazer a nação decolar. Em 1915, ele escreveu que “a vida não se acabará na caserna positivista enquanto os ‘morcegos’ [os carnavalescos] tiverem alegria”.

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