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Túmulo de Galileu na Basílica de Santa Cruz, em Florença, na Itália.
Túmulo de Galileu na Basílica de Santa Cruz, em Florença, na Itália.| Foto: Pixabay

Há poucas imagens do mundo moderno mais poderosas do que a do humilde Galileu, ajoelhado diante dos cardeais da Santa Inquisição Romana e Universal, sendo forçado a admitir que a Terra não se movia. A história é conhecida: Galileu representa a ciência lutando para se libertar das garras da fé cega, do literalismo bíblico e da superstição. A história fascinou gerações, desde as filosofias do Iluminismo até estudiosos e políticos dos séculos XIX e XX.

O espectro da condenação de Galileu pela Igreja Católica continua a influenciar a compreensão do mundo moderno sobre a relação entre religião e ciência. Em outubro de 1992, o Papa João Paulo II compareceu perante a Pontifícia Academia das Ciências para aceitar formalmente as conclusões de uma comissão encarregada de investigar histórica, científica e teologicamente o tratamento que a Inquisição deu a Galileu. O Papa observou que os teólogos da Inquisição que condenaram Galileu não conseguiram distinguir corretamente entre interpretações bíblicas particulares e questões pertinentes à investigação científica.

O Papa também observou que uma das infelizes consequências da condenação de Galileu foi que ele foi usado para reforçar o mito de uma incompatibilidade entre a fé e a ciência. Tal mito está vivo e bem evidente na forma como a imprensa americana descreveu o evento no Vaticano. A manchete na primeira página do The New York Times foi representativa: "Após 350 anos, o Vaticano diz que Galileu estava certo: Ela se move". Outros jornais, assim como redes de rádio e televisão, repetiram essencialmente a mesma afirmação.

A matéria do The New York Times é um excelente exemplo da persistência e do poder dos mitos que envolvem o caso Galileu. O jornal afirmou que o discurso do Papa "retificaria um dos erros mais infames da Igreja — a perseguição do astrônomo e físico italiano por provar que a Terra gira ao redor do Sol". Para alguns, a história de Galileu serve como prova da visão que a Igreja é hostil à ciência, e a visão de que a Igreja já ensinou o que agora nega, ou seja, que a Terra não se move. Alguns consideram como evidência que os ensinamentos da Igreja sobre questões de moralidade sexual ou de ordenação das mulheres ao sacerdócio são, por princípio, também mutáveis. A "reformabilidade" de tais ensinamentos é, portanto, a verdadeira lição do "Caso Galileu".

Mas os tratamentos modernos do caso não só perdem um contexto chave em torno da condenação de Galileu pela Inquisição; eles também interpretam mal o que a Igreja Católica sempre ensinou sobre fé, ciência, e sua complementaridade fundamental.

Galileu e a Inquisição no século XVII

As observações telescópicas de Galileu convenceram-no de que Copérnico estava correto. Em 1610, o primeiro tratado astronômico de Galileu relatou suas descobertas de que a Via Láctea consiste em inúmeras estrelas, que a lua tem montanhas e que Júpiter tem quatro satélites. Posteriormente, ele descobriu as fases de Vênus e manchas na superfície do sol. Ele chamou as luas de Júpiter de "Estrelas Mediceias" e foi recompensado por Cosimo de' Medici, Grão-Duque da Toscana, com nomeação como matemático chefe e filósofo na corte do Duque em Florença. Galileu contou com estas descobertas telescópicas, e com argumentos derivados delas, para reforçar a defesa pública da tese de Copérnico de que a Terra e os outros planetas giram em torno do Sol.

Quando falamos da defesa de Galileu da tese de que a Terra se move, devemos ser especialmente cuidadosos para distinguir entre argumentos a favor de uma posição e argumentos que provem ser uma posição verdadeira. Apesar das afirmações do The New York Times, Galileu não provou que a Terra gira ao redor do Sol. Na verdade, tanto Galileu quanto os teólogos da Inquisição aceitaram o ideal aristotélico prevalecente de demonstração científica, que exigia que a ciência fosse segura e certos conhecimentos, diferentes em alguns aspectos do que aceitamos hoje como científico. Além disso, refutar a astronomia geocêntrica de Ptolomeu e Aristóteles não é o mesmo que demonstrar que a Terra se move. O astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), por exemplo, tinha criado outro relato dos céus. Ele argumentou que todos os planetas giram em torno do Sol, que por sua vez girava em torno de uma Terra estacionária. De fato, o próprio Galileu não achava que suas observações astronômicas fornecessem evidências suficientes para provar que a Terra se move, embora ele achasse que isso já seria suficiente para questionar a astronomia geocêntrica de Ptolomeu. Galileu esperava eventualmente argumentar que desde o fato das marés oceânicas até o duplo movimento da Terra têm a translação como única causa possível, mas não teve sucesso.

O Cardeal Roberto Belarmino, teólogo jesuíta e membro da Inquisição, disse a Galileu em 1615 que se houvesse uma verdadeira demonstração do movimento da Terra, então a Igreja teria que abandonar sua leitura tradicional das passagens da Bíblia que afirmavam o contrário. Mas na ausência de tal demonstração (e especialmente em meio às controvérsias da Reforma Protestante), o Cardeal exortou à prudência: tratar a astronomia copernicana simplesmente como um modelo hipotético que explica os fenômenos observados. A Terra não se mover não foi uma doutrina da Igreja. Se o Cardeal tivesse pensado que a imobilidade da Terra era uma questão de fé, ele não poderia argumentar, como fez, que poderia ser possível demonstrar que a Terra se move de fato.

Os teólogos da Inquisição e de Galileu aderiram ao antigo princípio católico de que, como Deus é o autor de toda verdade, as verdades da ciência e as verdades da revelação não podem contradizer-se. Em 1616, quando a Inquisição ordenou a Galileu que não defendesse a astronomia copernicana, não havia demonstração do movimento da Terra. Galileu esperava que houvesse tal demonstração; os teólogos não esperavam. Parecia óbvio para os teólogos em Roma que a Terra não se movia e, como a Bíblia não contradiz as verdades da natureza, os teólogos concluíram que a Bíblia também afirma que a Terra não se move. A Inquisição estava preocupada que a nova astronomia parecesse ameaçar a verdade da Escritura e a autoridade da Igreja Católica para ser seu intérprete autêntico.

A Inquisição não pensava que estava exigindo que Galileu escolhesse entre a fé e a ciência. Nem, na ausência de conhecimento científico para o movimento da Terra, Galileu teria pensado que lhe pediam para fazer tal escolha. Novamente, tanto Galileu quanto a Inquisição pensaram que a ciência era um conhecimento absolutamente certo, garantido por demonstrações rigorosas. Estar convencido de que a Terra se move não é a mesma coisa que saber que ela se move.

O decreto disciplinar da Inquisição foi insensato e imprudente. Mas a Inquisição subordinava a interpretação das escrituras a uma teoria científica, a cosmologia geocêntrica, que acabaria por ser rejeitada. Submeter a interpretação escriturística à teoria científica é exatamente o oposto da sujeição da ciência à fé religiosa!

Em 1632, Galileu publicou seu "Diálogo sobre os dois principais sistemas de mundo", no qual defendeu o "sistema mundial" copernicano. Como resultado, Galileu foi acusado de desobedecer à liminar de 1616 de não defender a astronomia copernicana. A injunção da Inquisição, por mais imprudente que tenha sido, só faz sentido se reconhecermos que a Inquisição não via nenhuma possibilidade de conflito entre ciência e religião, ambas devidamente compreendidas. Assim, em 1633, a Inquisição, para assegurar a obediência de Galileu, exigiu que ele afirmasse pública e formalmente que a Terra não se movia. Galileu, por mais relutante que tenha sido, aceitou.

Do início ao fim, as ações da Inquisição foram disciplinares, não dogmáticas, embora baseadas na noção errônea de que era herético afirmar que a Terra se move. Noções errôneas permanecem apenas noções; as opiniões dos teólogos não são as mesmas da doutrina cristã. O erro que a Igreja cometeu ao lidar com Galileu foi um erro de julgamento. A Inquisição estava errada ao disciplinar Galileu, mas disciplina não é um dogma.

O desenvolvimento da Lenda de Galileu

A visão mítica do caso Galileu como um capítulo central na guerra entre ciência e religião tornou-se proeminente durante os debates no final do século XIX sobre a teoria da evolução de Darwin. Nos Estados Unidos, a "História da Guerra da Ciência com Teologia na Cristandade" (1896), de Andrew Dickson White, consagrou o que se tornou uma ortodoxia histórica difícil de desalojar. White usou a perseguição de Galileu como uma ferramenta ideológica em seu ataque contra os opositores religiosos da Teoria da Evolução. Como era tão óbvio no final do século XIX que Galileu estava certo, foi útil vê-lo como o grande campeão da ciência contra as forças da religião dogmática. Os partidários da Evolução eram vistos como Galileus do século XIX; os oponentes da Evolução eram vistos como inquisidores modernos. O caso Galileu também foi usado para se opor às reivindicações sobre a infalibilidade papal, formalmente afirmadas pelo Concílio Vaticano I em 1870. Como observou White: não tinham dois papas (Paulo V em 1616 e Urbano VIII em 1633) declarado oficialmente que a Terra não se move?

A persistência da lenda de Galileu, e da imagem de "guerra" entre ciência e religião, tem desempenhado um papel central na compreensão do mundo moderno sobre o que significa ser moderno. Ainda hoje a lenda de Galileu serve como uma arma ideológica nos debates sobre a relação entre a ciência e a religião. E a lenda tem sido uma arma tão eficaz que tem persistido.

Por exemplo, uma discussão sobre bioética se baseou nos mitos do caso Galileu há alguns anos. Em março de 1987, quando a Igreja Católica publicou condenações de fertilização in vitro, maternidade de substituição e experimentação fetal, apareceu uma página de desenhos animados em um dos principais jornais de Roma, La Repubblica, com a manchete: "In Vitro Veritas". Em um dos desenhos animados, dois bispos estão ao lado de um telescópio, e no distante céu noturno, além de Saturno e da Lua, há dezenas de tubos de ensaio. Um bispo vira-se para o outro, que está em frente ao telescópio, e pergunta:

"Desta vez, o que devemos fazer? Devemos olhar ou não?". A referência histórica a Galileu foi clara.

De fato, em uma entrevista coletiva no Vaticano, o então cardeal Joseph Ratzinger foi perguntado se ele achava que a resposta da Igreja à nova biologia não resultaria em outro "caso Galileu". O Cardeal sorriu, talvez percebendo o poder persistente — pelo menos na imaginação popular — do embate de Galileu com a Inquisição, mais de 350 anos depois. O gabinete do Vaticano do qual o Cardeal Ratzinger era então o chefe, a Congregação para a Doutrina da Fé, é o sucessor direto da Santa Inquisição Romana e Universal na Depravação Herética.

Não há evidência de que em 1633, quando Galileu acedeu à exigência da Inquisição de renunciar formalmente à visão de que a Terra se move, ele murmurou por entre os dentes "eppur si muove" – "mas ainda se move". O que continua a se mover é a lenda de que Galileu representa a razão e a ciência em conflito com a fé e a religião. Galileu e a Inquisição compartilharam os primeiros princípios comuns sobre a natureza da verdade científica e a complementaridade entre ciência e religião. Na ausência de conhecimento científico, pelo menos como compreendido tanto pela Inquisição quanto por Galileu, de que a Terra se movia, Galileu foi obrigado a afirmar que não. Por mais insensato que fosse insistir em tal exigência, a Inquisição não pediu a Galileu que escolhesse entre ciência e fé.

William E. Carroll é professor visitante ilustre na Faculdade de Filosofia da Universidade de Economia e Direito de Zhongnan (Wuhan, China) e professor visitante de Filosofia no Hongyi Honor College, da Universidade de Wuhan.

©2023 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
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