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“Fiquimcasa”
“Fiquimcasa”| Foto: Pixabay

A pandemia deu, no ano passado, um excelente pretexto para uma parte da sociedade julgar moralmente as demais. Existe o grupo entusiasta de lockdowns e do slogan “fique em casa”. Boa parte da imprensa pertence a ele, e o resto é gente de classe média que não se viu ameaçada pelo desemprego. O fã-clube do lockdown decerto é sobrerrepresentado na arena pública do debate, e isso por dois motivos: um, óbvio, é ele dominar a imprensa; outro é ele se portar como uma polícia, e intimidar a manifestação de discordância. O maior xingamento, para esse povo, é o de bolsomínion.

No comecinho da pandemia, quando Mandetta dava suas eloquentes coletivas, o bolsomínion era facilmente identificável como aquele que detestava o ministro e defendia a cloroquina como panaceia. A defesa era embasada na teoria conspiratória da Big Pharma, a mesma que os deputados Jean Wyllys e Bolsonaro usaram para defender a fosfoetanolamina como cura do câncer.

No entanto, de lá para cá, o grupo da panaceia da cloroquina (grupo onde está o presidente) ficou mais moderado e tornou-se o grupo defensor do uso precoce da hidroxicloroquina, reconhecendo tacitamente que não é gripezinha. A conspiração da Big Pharma foi substituída pela ideia plausível de que a panaceia da obscura vacina chinesa é um pretexto para governadores desviarem dinheiro.

E Mandetta, que dizia quando era amado pela imprensa? Que era preciso “achatar a curva” dos infectados para dar tempo de aumentar o número de leitos. Não era que o contágio ia parar: o contágio ia continuar. O fechamento de comércio e escola era um sacrifício temporário feito pela sociedade para retardar o ritmo de contágio enquanto o Estado abria hospitais de campanha e os cientistas investigavam tratamentos.

Agora cá estamos, sem hospitais de campanha, e com uma gritaria de “fiquimcasa”, pedindo sempre, e cada vez mais, medidas draconianas contra quem quiser realizar atividades normais. Tudo isso, às vezes, dizendo-se liberais, porque dizer-se de esquerda já não é mais bonito, e os esquerdistas dos Estados Unidos se dizem liberals.

A quantas andam os hospitais de campanha?

Antes das eleições, celebrou-se a queda dos contágios; em virtude disso, foram se fechando hospitais de campanha por todo o Brasil. Mês passado, a EBC informava que, dos 65 hospitais de campanha do estado de São Paulo, funcionavam apenas 36. Na segunda cidade mais populosa do Brasil, o Rio de Janeiro, restou apenas um. Mês passado o Jornal Nacional revelou que esse hospital recebeu ordens de parar de receber os pacientes que batem à sua porta, muito embora haja leitos de UTI ociosos, inclusive leitos que nunca nem foram usados. Nada de anormal, em se tratando da deplorável realidade carioca.

Quanto à Bahia, não pude encontrar uma relação de hospitais de campanha abertos e fechados. A imprensa local noticiou o fechamento de alguns. A estrela por aqui, porém, é o Hospital Espanhol, tradicional hospital particular que foi fechado enrolado em dívidas, e que o governador do estado reabrira como centro de covid.

Um infectologista respeitado, Roberto Badaró, deu uma entrevista à principal rádio local que teve muita repercussão, por ter afirmado que os dados da covid são inflados. Resumindo, é o seguinte: com a abertura de novos leitos, pacientes graves com todo tipo de doença passaram a ser encaminhados para lá sob o rótulo “suspeita de covid”. Lá corriam o risco de contrair a doença, e o atestado de óbito tem espaço para mais de uma causa mortis. Está no Youtube para quem quiser ouvir, com o horário devidamente marcado em link: aqui, o começo da discussão de dados brasileiros, e aqui, para quem tem pressa, ele falando do hospital em que trabalhava. O Hospital Espanhol segue aberto, e a lotação dos seus leitos é informada no seu site.

Estatísticas para passar pires em Brasília?

É claro que o Dr. Badaró foi ignorado pela imprensa televisiva, inclusive na própria Bahia. Átila Iamarino usara um modelo para prometer um milhão de mortos até agosto, e aí estava a Verdade revelada. Qualquer um que desconfie vira herege, extrema direita, bolsominion.

O fato trazido à tona por ele deveria ter ensejado a verificação de outros hospitais Brasil afora. Um cientista social e um jornalista não deveriam nunca confiar apenas em números numa planilha, sem se darem ao trabalho de ir ver a situação com os próprios olhos. Infelizmente temos uma pandemia de cientificismo nas ciências sociais, que se alastrou para o jornalismo.

Não será plausível que a administração centralizadora do Brasil fomente uma inflação estatística de mortes por covid? Se o governador (ou o prefeito) disser que seu estado (ou município) está como céu de brigadeiro, não leva recursos. Se disser que está uma calamidade, leva recursos, ganha até hospital, e doentes não vão faltar. Ganha o governante local e ganha o paciente. (Ou ganha só o governante, se este for ao estilo carioca.) Mas a sociedade como um todo fica prejudicada: o comércio formal não pode abrir, o ambulante não pode ir às áreas mais ricas, as crianças e os jovens não podem concluir os estudos, nem se alimentar na escola.

Já que estão fechados, os hospitais de campanha poderiam servir ao menos para um balanço das estatísticas. O Paraná relutou em abrir hospitais; a Bahia, não. Há tempos o fechamento de um bom hospital privado por má gestão era assunto em Salvador, e o governador na certa viu a covid como uma oportunidade para reabri-lo sem se meter em imbróglios judiciais.

Pode-se afirmar que há uma correlação entre o aumento de hospitais e a redução de mortes causadas por qualquer doença? Digo “qualquer doença”, tanto porque há os fantasmas da super e subnotificação, quanto porque, se um hospital de covid salvar outros doentes, está justificado. É importante que sejam contadas as mortes por doença, porque as medidas restritivas causaram a redução de mortes em acidentes de trânsito.

Assim, fica a ideia: pegue-se o comparativo de mortes por doença entre 2019 e 2020, reparta-se os dados por estado, e em seguida reparta-se entre estados com e sem hospital de campanha. Se o hospital de campanha resultou na diminuição global de mortes por doença, então isso significa que tal estado tem motivos legítimos para demandar mais verba para saúde. Se não, significa que há algo ao estilo carioca acontecendo.

De toda essa história de hospital de campanha, o que mais deveria ter chamado a atenção é que o Brasil tem condições de oferecer leitos com rapidez à população. Não deveria ser necessária uma pandemia global para os brasileiros terem leito: deveria ser a normalidade. Mortes evitáveis por câncer são normais, mas mortes evitáveis por covid são genocídio de extrema direita. Não é ridículo?

Passividade mórbida

Digamos que alguém estivesse prestando atenção à eficácia dos hospitais de campanha e do comércio regular. Digamos que se tivesse formado o consenso segundo o qual os hospitais são essenciais. (Não se formou tal consenso nem entre os outrora fãs de Mandetta: os hospitais que sumiram da consciência foram enfiados em algum baú da memória a ser recuperado, talvez, numa sessão de psicanálise daqui a 30 anos.) Houvesse tal consenso, não seria o caso de mandar os governos de todos os níveis trabalhar, manter os hospitais funcionando, e não largar do pé dos cariocas nem quando eles tiverem um prefeito que não seja o Crivella? Que o governo trabalhe, e que nós trabalhemos também.

Mas, em vez disso, o telejornalismo prefere proibir as pessoas de fazerem tudo, e ainda exigem do governo medidas ditatoriais. Lewandowski usurpou as funções do congresso e, numa canetada, resolveu que as medidas restritivas vão continuar valendo em 2021. Telejornalistas batem palmas. Não é hora de questionar nada, porque é pandemia.

Se é assim, eu me pergunto por que não implementar logo uma ditadura, já que em pandemia vale tudo. Bota Felipe Neto para redigir a nova Constituição, e Átila Iamarino de presidente. A pandemia não justifica tudo? A Ciência não cabe toda na cabeça de Felipe Neto? Ciência não é o que sai da boca de Átila? Que ele governe com plenos poderes, então. Basta o PSOL fazer uma petição ao Supremo, e Lewandowski decidir que os princípios constitucionais, bem interpretados, indicam que o Sr. Um Milhão de Mortos Até Agosto é presidente do Brasil.

Depois de sair da internet e ligar a TV, vemos que o discurso dessas duas figuras é indiscernível do discurso do telejornalista. Eles só dizem essas coisas porque há público. Aprendemos com esta pandemia que há uma passividade mórbida presidindo a vida de muita gente. Diga a certas pessoas que não podem isso nem aquilo, e que devem ficar trancadas em casa, e que vão prender os outros, e elas vão ficar excitadas.

A verdadeira causa de descrédito na democracia

Enquanto o comércio regular é fechado e festas organizadas por empresários sérios são “clandestinas”, nas áreas dominadas por tráfico ou milícia o comércio e as festas ocorrem normalmente. O Estado oficial não entra lá, e o telejornalismo não mexe com as “vítimas da sociedade”.

Se é assim, que motivos terá o cidadão para querer se manter no Estado brasileiro oficial? Caso encontre uma favela estável, como as paulistanas dominadas pelo PCC, ou a carioca Rio das Pedras, encontrará aí um lugar para tocar a vida e trabalhar em paz.

Agora tente se colocar no lugar de um garçom que viva numa favela conturbada, como aquela área carioca da Linha Vermelha, onde um monte de facção fica trocando tiro. O garçom que mora lá ficou desempregado porque seu patrão foi impedido de abrir a casa de festas para evitar as aglomerações. Em casa, ele assiste ao baile funk com muita aglomeração e tiro pro alto. Que motivos ele terá para crer na democracia brasileira e no Estado de direito?

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