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A partir de 2020 a CBF pretende cobrar dos clubes brasileiros o chamado fair play financeiro. Medida pretende acabar com o caos nas contas dos clubes.
A partir de 2020 a CBF pretende cobrar dos clubes brasileiros o chamado fair play financeiro. Medida pretende acabar com o caos nas contas dos clubes.| Foto: Cristian Vasquez/ Pixabay

O Figueirense vive uma das piores crises de sua história. O time perdeu um jogo pela Série B por W. O. (não-comparecimento) depois que os jogadores decidiram não entrar em campo como forma de protesto contra os atrasos nos salários.

Para evitar situações como essa, no último sábado (24) a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou os parâmetros de seu fair play financeiro (FPF), a ser adotado a partir de 2020. Os clubes terão de gastar apenas o que arrecadam, estar em dia com seus pagamentos e comprovar a natureza do dinheiro que entra em seu caixa.

O objetivo é provar que as receitas vêm de fontes limpas e que não há injeção artificial de dinheiro nos clubes, o que poderia reduzir a competitividade dos campeonatos. Além disso, haverá um controle do endividamento.

Segundo o comentarista do Esporte Interativo Bruno Formiga, o FPF estabelece regras óbvias, mas é uma medida necessária. “Como os clubes ‘não são de ninguém’, o dinheiro acaba não sendo uma preocupação. Eles gastam como se o dinheiro fosse público. É preciso botar um freio nisso”, afirma.

O comentário é endossado por Ubiratan Leal, comentarista da ESPN: "O futebol brasileiro é economicamente um caos e está cada vez mais difícil sobreviver a isso", afirma.

O jornalista especializado em negócios do esporte e comentarista da Sportv Rodrigo Capelo explica que o mercado do futebol é diferente dos outros mercados, o que justifica uma regulamentação nos moldes do FPF proposto pela CBF.

“Uma empresa tem acionistas, que estão lá para tirar dividendos, para terem lucro. Assim, o formato do negócio estimula que a empresa corra atrás da maior receita com o menor custo possível, para que sobre mais dinheiro”, diz. No futebol, porém, a lógica é diferente: “A finalidade do futebol é ganhar títulos. Então todos os clubes do mundo arrecadam e gastam quase a mesma coisa. E, como a vida não é feita só de receitas e despesas, tem gente que tenta ser mais competitivo alavancando o clube, pegando crédito”, explica.

“O problema é que, quando um clube se endivida para ficar mais competitivo, outros o copiam de olho no título do campeonato. Isso porque todos os clubes competem em um campeonato em que há apenas um vencedor por temporada”, diz Capelo.

Dessa forma, a natureza do mercado do futebol cria incentivos perversos e estimula a irresponsabilidade fiscal dos clubes. Para conter isso, uma regulamentação é necessária.

Melhorias na administração

O fair play financeiro obrigará os clubes a melhorarem sua administração. “Principalmente na linha de ter uma governança corporativa mais clara e mais moderna. Hoje eles têm uma área de transparência que realmente funciona, que é só para inglês ver”, diz Rodrigo Capelo. “Os departamentos financeiros estabelecem diretrizes e criam orçamentos. Mas, na prática, o futebol passa por cima e, quando o clube acha que tem que contratar o Daniel Alves, ele contrata”, critica, em referência à contratação recente realizada pelo São Paulo.

Como diz o ditado, “lei sem punição é como faca sem gume”. Sem que haja punições para os clubes que forem irresponsáveis em seus orçamentos, eles não seguirão as regras. “Quando se coloca regras dizendo que, se você tiver um prejuízo maior do que X, você vai ter problemas para manter o seu registro na competição ou vai sofrer algum tipo de punição esportiva, a coisa fica séria. Fica séria e todo mundo vai ter que ficar um pouco mais sério para cumprir essas regras colocadas”, diz Capelo.

Administrar clubes como empresas pode ser a solução?

Entre os clubes atualmente mais competitivos da Europa, apenas dois continuam sendo estatutários: os espanhóis Barcelona e Real Madrid. Todos os outros têm donos, muitos com ações negociadas na Bolsas de Valores.

Por isso é que se fala tanto em mudança de marco legal.

Para Capelo, o clube não precisa necessariamente virar empresa para ter uma gestão melhor. “Hoje, os principais clubes no Brasil, do ponto de vista administrativo e financeiro, são o Palmeiras e o Flamengo. Ambos têm administrações boas para o padrão brasileiro. E eles são associações sem fins lucrativos”, diz.

Já Bruno Formiga lembra do caso do próprio Figueirense, que se transformou em clube-empresa em 2017 – e fracassou. “A solução de virar um negócio não é simples. O Flamengo mostrou que gestão profissional é capaz de criar uma potência”, afirma.

Capelo explica que, mesmo os clubes sendo associações sem fins lucrativos, quando eles têm uma governança melhor e auditoria conseguem crédito mais barato no mercado financeiro. “Isso significa que eles conseguem viabilizar melhor seus investimentos no esporte”, diz.

Embora as regras do FPF da CBF não tenham sido esmiuçadas ainda, a expectativa de sua adoção a partir dessas premissas desperta otimismo.

Possíveis problemas do fair play financeiro

Mas o fair play financeiro também pode ter problemas em sua aplicação.

Segundo o jornalista Murillo Moret, suspeita-se que alguns clubes politicamente influentes sejam favorecidos pela Uefa em relação ao FPF.

“Recentemente o Milan desistiu de participar da Liga Europa porque o antigo dono era um farsante, segundo reportagens do New York Times, e pelos prejuízos acima de 30 milhões de euros durante três anos. Só que nas últimas duas temporadas vimos relatos de outros clubes que teriam cometido violações graves no código da entidade e não houve qualquer tipo de punição”, afirma.

Ele cita o caso do Paris Saint-Germain (PSG), que, na janela de transferências de 2017, realizou as duas maiores transferências da história do futebol em sequência.

“O PSG contratou Kylian Mbappé logo depois de o clube gastar um caminhão de dinheiro para tirar Neymar do Barcelona. Isso foi possível a partir de um empréstimo com obrigação de compra ao fim da temporada, o que atrasou o pagamento pelos direitos do jogador para o ano fiscal seguinte”. Segundo Moret, diversos clubes fizeram ou continuam fazendo a mesma coisa, driblando a regra do fair play financeiro.

Moret lembra ainda que, no início de 2019, o escândalo do Football Leaks levantou mais suspeitas sobre a aplicação da legislação na entidade. “O que foi revelado até aqui mostrou violações do Manchester City, que mantinha contratos inflacionados da patrocinadora Emirates para equilibrar a folha de pagamentos. O próprio City é bastante usado como exemplo da vista grossa da Uefa desde os pagamentos de salário ao técnico Roberto Mancini via offshore até o meio- irmão do dono patrocinando o clube (o que é proibido)”, explica.

Ainda que Milan, a Inter de Milão e o Estrela Vermelha tenham sido punidos ou repreendidos pela Uefa, City e PSG não sofreram nenhuma sanção.

O FPF é igualmente criticado por aumentar ainda mais a distância entre os times locais de renome, grandes ou médios, e os pequenos. Os times tradicionais ganham relevância nacional ao garantir uma vaga quase perpétua nas competições continentais, arrecadando valores muito acima dos demais e descompensando a rivalidade local.

“O dinheiro proveniente de uma vaga na Liga Europa ou na Liga dos Campeões serve para estabelecer uma relação de força e canibalizar o restante dos participantes. O receio é entrar num ciclo permanente, com franco-favoritos diminuindo a competitividade e atraindo o público para outros campeonatos que não o seu (o que é realidade nos países de menor expressão)”, explica.

Os comentaristas consultados pela Gazeta do Povo entendem que, no caso brasileiro, clubes financeiramente mais bem organizados devem ser beneficiados no primeiro momento.

“Flamengo, Palmeiras e São Paulo, por exemplo, fecham no azul. E os dois primeiros ainda têm muito lastro para gastar sem bater no limite. Enquanto isso, os rivais vão ficar limitados”, analisa Bruno Formiga.

Já Capelo critica o argumento de que o FPF será uma ferramenta para garantir duopólio do Flamengo e do Palmeiras. “Há clubes que estão operando acima da capacidade e que vão ter que pisar no freio. O Cruzeiro principalmente, o Atlético Mineiro em alguma medida, o Internacional também. São clubes que estão conseguindo manter essa competitividade acima da capacidade financeira que eles têm. Eles vão ter que se readequar, ajustar suas pontas, e não vai ser fácil, eles vão ter que ganhar em eficiência, como fez o Grêmio”, diz.

O clube gaúcho se reestruturou e fecha as contas no azul, além de manter o desempenho esportivo, sendo apontado como um dos favoritos em todas as competições que disputa.

“O que interessa no fair play financeiro não são os dois primeiros anos. É olhar para os próximos dez anos e chegar a uma situação em que o mercado se torna mais saudável, que é exatamente o que aconteceu na Europa”, conclui.

A Lei de Responsabilidade Fiscal do futebol

É possível fazer um paralelo possível entre o FPF e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), já que ambos obrigam clubes e entes públicos a terem gestões financeiras sustentáveis.

Isso é importante porque o governo custeia suas despesas não apenas por meio de impostos, mas também com dinheiro que toma emprestado. São os chamados títulos da dívida pública. Esse dinheiro é emprestado pelo mercado, desde pequenos poupadores até grandes instituições financeiras e fundos de investimentos.

Mas as pessoas só emprestam dinheiro ao governo quando ele se mostra capaz de pagar a dívida. Isso é possível graças aos superávits fiscais, isto é, quando as contas fecham no azul.

Logo, é preciso que o mercado confie que o governo será capaz de realizar esses superávits. Caso isso não ocorra, os juros aumentam e fica mais caro financiar as despesas do governo, o que aumenta o endividamento. Em caso de calote do governo, é possível que todo o mercado financeiro entre em colapso, diminuindo investimentos produtivos no país, a geração de emprego e a renda das pessoas.

Como forma de diminuir a possibilidade de governos serem irresponsáveis fiscalmente, em 200 foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ela proíbe determinadas práticas e obriga os governantes a realizarem certo nível de superávit.

Seguir a LRF é uma sinalização de que as contas públicas são sustentáveis, o que permite a continuidade de investimentos em programas sociais, por exemplo.

Com o FPF, clubes terão de ajustar suas contas, o que pode ser doloroso no presente, mas evitará algo mais grave no futuro. A mesma lógica vale para o governo federal, estados e municípios que hoje gastam além de suas capacidades.

Em um texto de 2017, o pesquisador do Insper Gabriel Nemera usou as contas do Flamengo para explicar o que o governo federal, que não fecha as contas no azul desde 2014, deveria fazer.

“Quando o Eduardo Bandeira de Mello assumiu a presidência do Flamengo, o clube tinha uma dívida enorme e faltava dinheiro. Eles tiveram de fazer um ajuste, então o torcedor flamenguista conviveu com times medíocres por algum tempo. Mas, depois de um tempo, veio o resultado. O clube se reorganizou e pôde começar a gastar e se reforçar esportivamente. Diego, Éverton Ribeiro, Guerrero… Hoje o clube conta com Bruno Henrique, Gabriel Barbosa, Gerson, Diego Alves, Rafinha, Arrascaeta e Filipe Luís”, explicou ele em entrevista.

Para ele, o Flamengo é um exemplo prático de como a responsabilidade fiscal não é a inimiga, mas algo a ser buscado. “Um clube que fortalece a saúde orçamentária é mais bem-sucedido esportivamente. O mesmo vale para um governo. Ter as finanças equilibradas permite a expansão dos gastos com as políticas sociais, com a educação e com a saúde. O descontrole leva a cortes abruptos que pesam, justamente, sobre os mais pobres”, analisa.

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