O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ficou sob o holofote internacional após comparar os ataques de Israel na Faixa de Gaza com o extermínio de judeus realizado por Adolf Hitler no Holocausto.
"O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou o petista a jornalistas em Adis Abeba, capital da Etiópia, no domingo (18).
As declarações de Lula terminaram repercutindo em todo o mundo e fez com que recebesse milhares de críticas por parte de figuras políticas, grupos de judeus e do próprio Estado de Israel que declarou o líder da esquerda como “persona non grata”, algo inédito para um presidente brasileiro.
Por que a declaração enfureceu Israel
Em entrevista para a Gazeta do Povo, o professor, doutor e presidente do Instituto de Pesquisas Estratégicas em Relações Internacionais e Diplomacia (IPERID), Thales Castro, diz que “a fala do presidente Lula não agradou Israel porque foi uma comparação equivocada, injusta, desproporcional e fora do contexto histórico real”.
Castro explica que “a Segunda Guerra Mundial acabou com a vida de cerca de 65 a 70 milhões de pessoas. (...) Desses 70 milhões de mortos, nós pudemos claramente identificar com evidências estatísticas e seguras, seis milhões de judeus. E o que aconteceu com essa matança, esse holocausto, foi uma política de Estado, direcionada desde quando Hitler ascende ao poder, em 1933, até o seu suicídio em abril de 1945. (...) Ali ficou criado o aberrante contexto da chamada solução final, a solução final para o problema judaico da Europa, com a elite política e militar do nazismo. Então não tem proporção, não tem correlação com o que está acontecendo agora. Israel foi invadido, Israel foi atingido, Israel foi alvejado, teve seus cidadãos, mulheres, crianças e idosos mortos, sequestrados, torturados, muitos dos quais ainda nem voltaram”.
Por tal motivo o presidente do IPERID considera que o que foi dito por Lula “não é uma comparação justa” já que “Israel é uma democracia, aliás, a única democracia de todo o Oriente Médio”. Este seria o motivo pelo qual Israel reagiu de forma negativa e que “por contágio também desagradou vários outros países, sobretudo na Europa, as chamadas democracias representativas liberais que bebem da fonte greco-romana, judaico-cristã”.
Por sua parte, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, escreveu em sua conta oficial na rede social X que “o presidente do Brasil proferiu palavras vergonhosas e graves. Isso equivale à banalização do Holocausto e à tentativa de prejudicar o povo judeu e o direito de Israel à autodefesa".
Netanyahu também ordenou a convocação do embaixador do Brasil em Israel para uma conversa franca de reprimenda.
Mais tarde, em discurso televisionado, o premiê israelense voltou a comentar as declarações de Lula e disse que o mandatário “desonrou a memória dos seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas” ao “comparar a guerra de Israel em Gaza contra o Hamas”. “Ele deveria ter vergonha de si mesmo”, concluiu.
O ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, também repudiou o discurso de Lula, chamando de “vergonhoso”. “Sua comparação é promíscua, delirante. Vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros”, escreveu em sua conta pessoal no X. “Milhões de judeus em todo o mundo estão à espera do seu pedido de desculpas. Como ousa comparar Israel a Hitler?”, questionou.
No dia seguinte ao ocorrido, o governo de Israel declarou o petista como uma "persona non grata". Castro alega que este conceito “não é muito comum, porque ele é muito grave, ele arranha as relações bilaterais de maneira muito intensa”.
“Aconteceu em algum episódio na diplomacia brasileira, sim, mas não com um chefe de Estado. Eu desconheço que tenha havido o rótulo, a pecha de persona non grata como chefe de Estado”, afirma.
O professor explica que “pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 como também pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 — uma é muito próxima da outra em termos de macro-configuração política e jurídica —, você tem o Instituto da Persona Non Grata, que é quando um diplomata ou um agente consular recebe, na forma de um desagravo, na forma de uma ação de repulsa, uma clara manifestação de discordância. Geralmente o diplomata ou a diplomata recebe de 48 a 72 horas para deixar o país, porque a partir desse período, caso ele ou ela permaneça, as imunidades não serão mais respeitadas e garantidas”.
Castro lembra da convocatória para consultas feita pelo chanceler israelense ao embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Duque Estrada Meyer, e diz que ela “tem dois canais”.
“Esse é o primeiro sinal de discordância e de repulsa. Imediatamente, quase que de forma simultânea, o embaixador Mauro Vieira, convocou o embaixador Daniel Zonshine, o embaixador israelense em Brasília, para a convocatória. Ele imediatamente voou para o Rio de Janeiro para ter uma consulta. E essa consulta foi muito, também, de agravo, de angústia e de pioras das razões diplomáticas. Pior do que isso, só pode ter um outro fato, também previsto pelo Direito Internacional, que é o rompimento em relações diplomáticas, que eu acho que, por hora, não vem a acontecer”, comenta o doutor.
Festança no Hamas
Diferentemente do governo israelense, o grupo terrorista Hamas divulgou uma nota em seu canal no Telegram elogiando o discurso de Lula. “Apreciamos a declaração do presidente brasleiro Lula da Silva, que descreveu aquilo a que o nosso povo palestino está submetido na Faixa de Gaza como um Holocausto. E que os sionistas estão fazendo hoje em Gaza o mesmo que Hitler nazista fez aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial”, diz o texto.
O grupo terrorista exigiu ainda que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) considere a declaração do presidente brasileiro sobre “as violações e atrocidades” cometidas contra o povo palestino em Gaza por parte de um exército criminoso e de colonos terroristas”.
O Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal) também se solidarizou com o Lula e afirmou que é apropriada a comparação entre a ação de Israel em Gaza e a de Adolf Hitler na Alemanha nazista.
“Enquanto a intenção de Hitler era a eliminação dos judeus, a de 'Israel' consiste na aniquilação do povo palestino, em uma operação de limpeza étnica. Nesse sentido, os nazistas e os sionistas podem ser considerados entidades irmãs siamesas”, afirmou, em nota, Ahmed Shehada, presidente da Ibraspal.
Críticas da comunidade judaica
O presidente do IPERID conta que na comunidade judaica brasileira a declaração de Lula foi vista de “maneira muito negativa”. “O Brasil é o segundo país da América Latina com maior quantidade de judeus e descendentes de judeus, ele só perde para a Argentina. Mas o Brasil tem uma presença judaica muito forte. A primeira sinagoga das Américas está aqui em Recife (...). É a mais antiga das Américas com evidências históricas para tal”.
A instituição StandWithUs Brasil e o Instituto Brasil-Israel, também realizaram críticas às falas do mandatário. “Ao contrário do que disse o presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, hoje em Madri, Israel não foi criado pela Organização das Nações Unidas”, disse André Lajst, presidente-executivo da StandWithUs Brasil.
“Em 1947, o que a Partilha da ONU preconizou foi a criação de dois países, um para judeus e outro para árabes. Os judeus aceitaram, os árabes, não. O Estado de Israel foi fundado depois de uma guerra empreendida pelos exércitos do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque contra os judeus”, continuou.
Em nota, o Instituto Brasil-Israel lamentou “a imprecisão dos fatos descritos”, e disse que isto pode gerar uma “incompreensão sobre o conflito entre Israel e Palestina”. “É um tema complexo e o caminho para a paz exige, também, profundo conhecimento da situação”, comentou.
Por sua vez, o Museu do Holocausto dos Estados Unidos também emitiu um comunicado afirmando que "utilizar o Holocausto como uma arma discursiva é sempre errado, especialmente quando se trata de um chefe de Estado. Foi exatamente isso que o presidente brasileiro Lula fez ao promover uma afirmação falsa e antissemita. Isso é ultrajante e deve ser condenado."
A Confederação Israelita no Brasil (Conib) acompanhou as criticas ao petista e chamou a comparação de “distorção perversa da realidade” que ofenderia a memória das vítimas do Holocausto. “Os nazistas exterminaram seis milhões de judeus indefesos na Europa somente por serem judeus. Já Israel está se defendendo de um grupo terrorista que invadiu o país”, sublinhou.
A Confederação Israelita ainda acusou “o governo brasileiro” por adotar “uma postura extrema e desequilibrada em relação ao trágico conflito no Oriente Médio, abandonando a tradição de equilíbrio e busca de diálogo da política externa brasileira”.
Outra organização judaica do Brasil, o Judeus Pela Democracia, disse que a declaração do chefe de Estado é uma “vergonha histórica sobre todos os pontos de vista” porque ela estimula o antissemitismo (a discriminação contra os povos semitas, entre os quais, estão os judeus).
Por trás dos bastidores
Ao perguntar se Lula estaria sendo mal assessorado, Castro acredita que “esse não é o ponto”. Para o doutor, “Lula está com uma posição enviesada para o centro-esquerdismo em que quer manifestar uma posição, quer demarcar terreno como sendo uma representação de apoio do eixo sino-russo, que demonstra total animosidade a Israel”.
“O Brasil quer ser um líder no antigamente chamado Terceiro Mundo através dessas posições muito controversas, muito problemáticas e muito contundentes. Eu acho que a inclinação do Brasil a esse eixo sino-russo é uma antítese à melhor tradição que nós temos de Itamaraty. E qual é essa tradição? Essa tradição foi forjada pelo patrão da diplomacia brasileira, que foi o Barão do Rio Branco — chanceler durante quatro presidentes da Velha República entre 1902 e 1912. O Barão do Rio Branco também contou com um importante pilar, um importante fundamento dessa formação clássica da diplomacia brasileira, o pernambucano Joaquim Nabuco, que foi o primeiro embaixador que o Brasil teve”, conta Castro.
Continua, “pois bem, esse paradigma que nós chamamos de paradigma Nabuco-Rio Branco é um paradigma de que o Brasil é feito de posições universalistas, que é uma posição de defesa do direito nacional, de cautela, de prudência, de serenidade, de não interferência nos assuntos internos dos países, da política doméstica de cada país. Então isso foi muito prejudicado através dessas frases um tanto contundentes e frases que acabam gerando animosidade e quebrando esse paradigma do Brasil ser um global trader, o Brasil ser um comerciante global e não ter vínculos viscerais de alianças com quem quer que seja. O Brasil seria um negociador internacional, embora o Brasil tenha uma clara identidade mais ocidentalista, digamos assim”.
Por sua parte, o assessor para assuntos internacionais do mandatário brasileiro, Celso Amorim, defendeu a conduta de Lula e sustentou que “quem tem que pedir desculpas é Israel”.
“Lula não tem por que estar chateado. Obviamente, o Brasil não vai festejar qualquer afastamento nas relações diplomáticas. Quem tem que estar preocupado é Israel, que está cada vez mais isolado internacionalmente”, afirmou.
Para o presidente do IPERID, “a atual política externa do Brasil, em Celso Amorim, que foi chanceler durante todos os oito anos da gestão Lula, Lula 1 e Lula 2, tem um importante paradigma de influência”.
“Celso Amorim, diplomata sênior da carreira itamaratiana, na atual gestão está como assessor direto da Presidência da República, despachando diretamente do Planalto, e colocou alguém que já fora chanceler no finalzinho da gestão Dilma Rousseff, que é o embaixador Mauro Vieira. Ele, inclusive, estava como embaixador em Zagreb, na Croácia, antes de ser convocado depois da vitória de Lula para assumir o Itamaraty, que também é uma pessoa muito experiente. Então, essa estruturação da política externa brasileira está colocando alianças viscerais, está colocando muito personalismo de preferência, está ideologizando muita política externa com essas suas inclinações, mais ao oriente e mais para um conceito anacrônico de terceiro mundismo”, comenta Castro.
Quais serão os próximos passos?
Sobre a possibilidade do Brasil ser sancionado, o professor disse que não vê “de maneira iminente, esse contexto”. “Eu acho que o Planalto, em reunião de emergência, junto com o Itamaraty e outras assessorias de alto padrão, de alto nível da burocracia do Estado brasileiro, está tentando apagar o incêndio. Ver o dano, tentar conter e ver que tipo de resposta pode se dar, para evitar ser sancionado, que eu não acho que seja o caso”, opinou Castro.
Para o doutor, o caminho diplomático a seguir, “é tentar estabelecer um diálogo franco, tentar reconhecer os erros que foram cometidos, tentar apaziguar para evitar o escalonamento desse conflito que já está em um patamar horroroso. Porque o que eu mais temo também, fazendo análise muito fria, são as respostas de solidariedade de parceiros estratégicos do Brasil na própria Europa. Parceiros dentro e fora da União Europeia, que inclusive se manifestaram muito pró-Lula no conturbado processo eleitoral de 2022”.
“Porque o mundo é feito de diálogo, ele tenta buscar estratégias de consenso, sabendo que cada um, cada estado dos 193 que compõem a ONU está buscando a maximização do seu próprio interesse. Mas é necessário ter serenidade nesse momento. O mundo vive duas guerras travadas. A guerra no campo do Hamas, que invadiu Israel naquele fatídico 7 de outubro de 2023, foi uma guerra de agressão assimétrica de um grupo terrorista. Israel tem o legítimo direito como Estado soberano que é, membro da ONU que é, de se defender. Isso é um ponto importante, e nesse contexto a outra guerra que também está sendo travada paralelamente, a guerra na Ucrânia, que agora em fevereiro celebra tristemente dois anos. Então é hora de reduzir o escalonamento dessas tensões, tentar atingir o mínimo consenso e voltar um passo atrás para o resgate da serenidade, da racionalidade, da prudência diante de um mundo que está fraturado, hiperpolarizado e em guerra”, diz Castro.
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