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Diante da pandemia de coronavírus, a filósofa Siobhan Nash-Marshall questiona as premissas do combate à doença, baseados mais no medo do que em fatos.
Diante da pandemia de coronavírus, a filósofa Siobhan Nash-Marshall questiona as premissas do combate à doença, baseados mais no medo do que em fatos.| Foto: Pixabay

Há alguns anos, passei por uma experiência que alguém pode chamar de transformadora. Não foi uma epifania, uma grande revelação. Foi algo mais sutil, cuja importância só ficou clara para mim com o passar dos anos, algo que acho que deve ser compartilhado nesses tempos estranhos.

Quando eu era uma jovem professora assistente, fui para uma ilha. Era verão. O vento meltemi tinha parado de soprar. O vento que nos mantinha refrescados desaparecera. Estava insuportavelmente quente. As pedras e até a terra emanavam calor. A casa onde eu morava não tinha ar-condicionado. Não tinha ventiladores. Minha madrinha, que é uma famosa escritora e crítica literária, tinha me dado um romance para ler alguns dias antes. Era sobre um serial killer. “É extremamente bem escrito”, disse ela. “Me diga o que você acha”.

Sei que ela não tinha nenhuma intenção sinistra ao me dar o livro. Ela sempre estava (e está) insistindo para que eu leia em idiomas diferentes para que eu os aperfeiçoe, e os romances que ela sugere sempre valem a pena. Aquele romance específico, contudo, foi o responsável por uma noite bastante conturbada. Quando fui para o meu quarto, no fim de um dia muito quente, percebi que tinha de manter todas as janelas e portas abertas apenas para conseguir respirar. Eu também estava na metade do romance, com suas imagens fortes de perseguição, sequestro, tortura e todos os tipos de coisas ruins.

Só voltei a prestar atenção ao mundo ao meu redor no banho, enquanto me lavava e concluía minhas orações. Estava focada demais no romance. A realidade me atingiu assim que me deitei na cama. Eu via as portas abertas e, do outro lado, as três marias sob a luz da lua. Sabia que não havia vigilantes ou alarme na propriedade. só havia o mar e as estrelas, os ciprestes e as oliveiras, os juncos, a piscina, rochas e uma parede plenamente transponível. Eu estava sozinha. E morrendo de medo.

Foi naquela noite que senti todo o peso de uma pergunta: “no que você realmente acredita?”

Eu sabia que era capaz de citar as Cinco Vias de Tomás de Aquino. Eu as tinha aprendido na faculdade. Sabia que era capaz de mostrar que as Cinco Vias eram na verdade apenas Uma Via centrada na Terceira Via, e era capaz também de reformular essa Terceira Via sem os problemas temporais. Eu conhecia a prova ontológica de Santo Anselmo e suas variações, e era capaz de expô-las com elegância. Mas naquela noite quente na ilha, deitada na cama num quarto com todas as portas e janelas abertas e serial killers à solta, nada disso importava. “No que você realmente acredita?”, eu me perguntava. “Esqueça o que disseram Tomás de Aquino, Alselmo, Pascal. No que você acredita?”

Eu nunca tinha me perguntado isso. Essa pergunta tampouco me foi feita em todos os meus anos de estudo. Fui ensinada a destruir argumentos, a encontrar falhas de interpretação, a interpretar textos, a expor meus pensamentos sobre os raciocínios alheios. Mas nunca me perguntaram — nem fui estimulada a perguntar — “o que existe de fato?”. No que você realmente acredita?

Ao longo de minha carreira como “filósofa” — alunos da graduação são ensinados a se referirem a si mesmos assim — sempre soube que os elementos mais importantes da argumentação filosófica são as premissas. Uma vez que se tenha alguma intimidade com o raciocínio dedutivo, pode-se fazer o que se quer com essas premissas. Pode-se usá-la contra ou a favor do que se quer. As academias platônicas — sem falar nas escolas da baixa Idade Média — ensinavam essa lição muito bem. [O filósofo] Carnéades demonstrava que os argumentos a favor e contra determinado caso podem se basear nas mesmas premissas. O modus ponens [lógica proposicional] de um homem é o modus tollens [negação do consequente] de outro.

Também sempre soube que as premissas têm como objetivo — os limites dessas premissas — a realidade: o que é. A realidade é o que importa — os fatos — e é isso o que as premissas buscam confirmar. Por mais divertido que seja dissecar argumentos, teorias e hipóteses, o objetivo não é exatamente a dissecção, exposição ou a concordância com eles. É analisar se eles — e sobretudo suas premissas — se baseiam em fatos.

Não que isso fosse muito importante na faculdade ou no trabalho. A realidade é que, no pensamento contemporâneo, os pensadores geralmente baseiam suas premissas na “intuição” — ou em seus primos próximos, os “sentimentos” — e não em fatos. A literatura filosófica contemporânea está cheia de “intuição”. Quentin Smith intuiu que Deus não pode existir certa noite, ao ver um animal selvagem atacando outro. Rowe intuiu que Deus não pode existir por causa do sofrimento injustificado. Os dois foram tacitamente aprovados por Wittgenstein, cuja “intuição” foi a de que todo sistema se baseia em “intuições” que não podem ser questionadas de dentro do sistema e que não podem ser compreendidas de fora dele.

A realidade também é algo sobre o que nós, alunos de graduação, tínhamos de escrever para conseguirmos um emprego. Se quiséssemos mesmos bons empregos, tínhamos de publicar nos melhores periódicos. Os textos tinham de ser escritos de forma a serem aceitos pelos “pares” que nunca são realmente “pares” e que estão mais interessados em analisar se e quando você compara seus pensamentos aos de outros do que em fatos. E você rapidamente aprende a enviar seus artigos para serem analisados por “pares” cujas “intuições” — e tradições — combinam com as suas. E era (e é) uma perda de tempo mandar um artigo para um periódico cujos “pares” tinham “intuições” que contradiziam (e contradizem) suas premissas.

Então ali estava eu na cama, numa noite quente, olhando para a porta aberta e com imagens de serial killers na minha imaginação. E havia ainda a pergunta das perguntas: no que você realmente acredita?

Naquela noite percebi que as publicações revisadas pelos pares não significavam nada para mim. Argumentos baseados em “intuições” eram insípidos e eu precisava de alimento de verdade. Precisava de premissas baseadas em fatos. E foi então que me lembrei das provas históricas das minhas crenças: do Sudário, dos santos, das conversões dos patrícios romanos, dos milagres. Somente fatos concretos, eu sabia, seriam capazes de me satisfazer.

Conto essa história por um motivo: agora estamos de quarentena na ilha, nossas portas abertas, e não temos nenhum sinal tangível de proteção. Nossos medos foram fomentados pela imprensa, cuja “intuição” é a de que ela pode finalmente recuperar alguma credibilidade fomentando o medo. O medo está sendo fomentado por sites científicos que não se baseiam em fatos. O site do Johns Hopkins, por exemplo, está registrando equivocadamente os casos de COVID-19 na Itália.

Ele diz que há [quando o artigo foi escrito] 10.149 casos na Itália, com 631 mortes e 724 pacientes recuperados. Uma olhada rápida na versão italiana dos fatos mostra que os números estão errados e que são incompletos. Os italianos estão dizendo que houve 10.149 casos de COVID-19 na Itália — eles também dizem que há atualmente 8.514 casos. Eles também registram que 58.910 pessoas foram testadas, 877 pessoas estão na UTI, 2.599 estão de quarentena em casa, 5.038 pessoas estão hospitalizadas e, mais importante, 1.004 pessoas – e não 724 – se recuperaram da doença. A questão é que o site do Johns Hopkins não só está divulgando números errados como ele está divulgando dados incompletos desde que entrou no ar.

Nossas universidades estão alimentando o medo. Todas as faculdades dos Estados Unidos estão sendo fechadas por causa da COVID-19. Minha própria faculdade anunciou que teremos de dar cursos online até o fim de março.

A Igreja na Itália está alimentando o medo. Não há missas públicas sendo celebradas no país. Elas foram suspensas pelos bispos há algum tempo na Lombardia e Vêneto — depois que o governo proibiu aglomerações. Agora elas estão suspensas em toda a Itália.

Isso não deveria surpreender ninguém. O sistema que me educou e que agora educa nossa juventude — incluindo os padres italianos — não está interessado em fatos. Ele se baseia em “intuição” e “sentimentos”. E é assim há algum tempo. Ninguém prestou muita atenção aos alertas que Leão XIII deu sobre o modernismo.

O bom de estar numa ilha é que isso me obrigou a fazer a pergunta que eu tinha de ter feito a mim mesma há vários anos: no que você realmente acredita? O bom é que isso nos dá uma oportunidade de voltarmos ao básico, de percebermos que a sabedoria deve se adequar à realidade, senão não é sabedoria, e que a filosofia não pode ser o amor à sabedoria se ignorar os fatos.

Que não desperdicemos essa oportunidade.

Siobhan Nash-Marshall é catedrática de filosofia cristã na Manhattanville College.

© 2020 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês
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