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Apresentador e músico, tema de filme e documentário, Fred Rogers usava a TV não só para pregar a bondade, mas também para praticá-la.
Apresentador e músico, tema de filme e documentário, Fred Rogers usava a TV não só para pregar a bondade, mas também para praticá-la.| Foto: Reprodução/ Netflix

Um menino que sofreu bullying na infância por ser gordo e rico e que desde então espalhou bondade e gentileza por onde passou. Um jovem que odiou a TV logo na primeira vez que assistiu a um programa infantil e, ao longo da vida, se tornou um dos nomes mais influentes dessa mídia pelo seu trabalho com as crianças. Um pastor presbiteriano que nunca falou uma linha sobre religião em seu programa, mas que ao longo de quatro décadas pregou como poucos por meio de suas ações.

Esse foi Fred Rogers, músico e apresentador responsável por cativar gerações de norte-americanos que assistiam a seu programa televisivo, “Mister Rogers’ Neighborhood” [A vizinhança do Sr. Rogers), no ar entre 1968 e 2001.

Imaginar um pastor à frente de um programa infantil tão longevo e de tanta importância – a ponto de Rogers receber um prêmio Emmy pelo conjunto de sua obra e ter conquistado uma vaga no Hall da Fama da TV dos EUA, ao lado de Fred Astaire e Oprah Winfrey – pode não ser um exercício dos mais fáceis para os brasileiros. Afinal, foram raríssimas as exceções à fórmula de sucesso dessas atrações por aqui: apresentadoras jovens em roupas curtas, desenhos com certo nível de violência e brincadeiras de gosto duvidoso, como atirar tortas no rosto de alguém.

As tortas na cara, aliás, foram o gatilho do desgosto de Rogers pela televisão. Seu primeiro contato com o aparelho foi em uma folga da escola, quando voltou para a casa dos pais e lá encontrou o equipamento ligado. “Eu pensei que poderia haver alguma maneira de usar este instrumento fabuloso para nutrir aqueles que assistiam e ouviam”, disse em entrevista à CNN. E ele encontrou essa maneira, a sua própria maneira, de falar com as crianças de um jeito que poucos conseguiram desde então.

Sua forma de falar com a voz calma e pausada era diferente de tudo que havia na TV quando Fred Rogers começou a apresentar seu programa. A escolha das palavras certas no lugar certo e na hora certa era um dos seus grandes trunfos, a ponto de alguns de seus produtores fazerem uma brincadeira com seu jeito de se expressar. Era uma espécie de manual de tradução para o “fredês”, que transformava mensagens de alerta como “É perigoso brincar na rua” em construções que valorizavam o respeito e traziam mensagens positivas: “Os adultos de que você mais gosta podem lhe dizer onde é seguro brincar. É importante tentar ouvi-los e ouvir é uma parte importante do crescimento”.

Foi usando o fredês que Rogers interagia com os personagens de seu programa, seja na pele de fantoches na Terra do Faz-de-Conta ou com seus “vizinhos” de bairro, como o Oficial Clemmens. O policial era interpretado pelo artista François Clemmens, um dos primeiros negros a assumirem um papel fixo em um programa de TV nos Estados Unidos.

Lava-pés

Martin Luther King Jr. já havia se tornado um mártir na luta pela igualdade entre brancos e negros, mas as consequências das leis Jim Crow ainda eram sentidas em todo o país. Um gerente de hotel não suportou ver negros nadando em uma piscina até então reservada para hóspedes brancos e despejou galões de alvejante na água. A cena apareceu nos noticiários da TV e a forma como Rogers encontrou para tratar do assunto com as crianças foi ao mesmo tempo simples e emblemática.

Ele estava molhando os pés em uma bacia quando o policial Clemmens chega ao seu lado. O oficial é convidado a molhar os pés também, como forma de aliviar o calor, e recusa, dizendo que não tinha uma toalha. Rogers insiste e sugere que os dois dividam tanto a mesma “piscina” quanto a mesma toalha. Assim, sem usar o termo “racismo” nem palavras de ordem, ele mostrou quão absurdo é impedir que pessoas ocupem o mesmo espaço só por terem diferentes tons de pele.

A cena está presente no documentário “Fred Rogers – O Padrinho da Criançada”, disponível na Netflix.

Além do racismo, o divórcio dos pais e a morte também eram temas dos quais Rogers não fugia. A eles dava tanta importância quanto outros assuntos caros às crianças, como o ciúme entre irmãos e o medo de cortar cabelo. Em um episódio no qual mostrou um oftalmologista examinando seus olhos, o apresentador frisou que, mesmo com todo aquele aparato tecnológico, o médico não conseguiria olhar os pensamentos das crianças.

Essa forma franca e respeitosa de lidar com as crianças tinha seu ponto alto nas canções compostas pelo próprio Rogers para o programa. Na maioria delas havia mensagens de ternura, bondade e aceitação incondicional. “Eu gosto de você do jeito que você é” era frase recorrente nas canções. Como quando ele recebeu em seu show um menino com uma deficiência motora severa causada por um tumor e que passaria dali a alguns dias por um procedimento médico pelo qual poderia não sobreviver. Sem roteiro, sem script, os dois conversaram sobre o que levou o menino à cadeira de rodas e, por fim, os dois cantaram juntos uma emocionante canção. O menino resistiu ao procedimento. Para os pais, foi graças ao seu momento com Rogers.

Prática da bondade

Tom Junod, o jornalista escalado pela revista Esquire para fazer um perfil de Rogers em 1998, assim definiu seu entrevistado. “Obviamente ele tem uma lição para ensinar sobre a bondade, mas acho que ele também tem uma lição para ensinar sobre a prática da bondade. Ele treina a bondade e a aplica na prática como um músico que ensaia com seu instrumento. Todos os dias ele está lá, praticando os acordes da bondade”.

A entrevista, ponto de partida para o filme “Um Lindo Dia na Vizinhança”, estrelado por Tom Hanks em 2019, queria descobrir se o Sr. Rogers que aparecia na tela da TV era um personagem incorporado por Fred e se toda essa bondade e gentileza não passavam de um artifício para conquistar o público infantil. Não era, como Junod descobriu no decorrer das conversas que teve com Rogers.

“A base de seus estranhos superpoderes”, escreveu o jornalista, “era lembrar a todos que já fomos crianças um dia. E ele podia falar com qualquer um, acreditando que, se você se lembrasse de como era ser criança, você se lembraria de que era filho de Deus. Não havia diferença entre o Fred Rogers e o Sr. Rogers, o Fred sempre foi o Fred”.

Rogers não era santo, como bem frisou a viúva Joanne, mas ele tinha algo em si que o tornava como que um instrumento da graça de Deus. Do contrário, que outro fator explicaria a forma como ele convenceu o senador John Pastore a aprovar o financiamento de US$ 20 milhões para a emissora pública PBS, que gravana e transmitia o programa dele para os Estados Unidos inteiro? Durão, Pastore deu à palavra a Rogers de forma bastante jocosa. Seis minutos depois, ele confessou ter sentido arrepios durante a fala de Fred e concluiu: “Parece que você conseguiu seus vinte milhões”.

Para os críticos, e sempre haverá os críticos, ele foi responsável por criar uma geração de jovens desinteressados por melhorarem a si próprios por meio do estudo ou do trabalho de tanto ouvirem que eram especiais. Mas, no último discurso que fez em uma cerimônia de formatura, Rogers deixou claro o quis dizer com essa frase durante toda a sua vida. “O significado real, é claro, é que você não precisa fazer nada sensacional para que as pessoas o amem”, explicou.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Jr.
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