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Kit Harington, à esquerda, como Jon Snow e Emilia Clarke como Daenerys Targaryen na 8ª temporada de "Game of Thrones". (Imagem: Helen Sloane, HBO)
Kit Harington, à esquerda, como Jon Snow e Emilia Clarke como Daenerys Targaryen na 8ª temporada de “Game of Thrones”. (Imagem: Helen Sloane, HBO)| Foto: HBO

Ao começar a escrever estas linhas, que se querem bem traçadas - portanto, caridade com o escriba -, um imenso sentimento de nostalgia se abate sobre mim.

A ideia deste texto é como bem já deixa claro o título, compartilhar com vocês algumas das impressões, sentimentos e maravilhamentos com esta saga e seus personagens que conquistaram seu espaço no imaginário pop contemporâneo: falo obviamente da série da Game of Thrones, que entra em sua última temporada este ano.

Baseada na obra de George R.R. Martin, a série foi encampada por dois jovens produtores, David Benioff e Dan Weiss, que convenceram o relutante autor a autorizar a adaptação mediante a resposta a uma enigmática questão: quem era a mãe de Jon Snow, personagem central da saga?

A pergunta e a resposta certa para ela, indicam já uma característica tanto dos livros quanto da adaptação: há camadas de mistérios e segredos a determinar o curso dos personagens - tanto os maiores, quanto os menores -, e estes, muitas vezes, seguem seu destino completamente às cegas, mesmo quando imaginam ter o controle total de seus passos.

Tolkien, Shakespeare, tragédia grega e uma pitada de Conan, o Bárbaro!

George Martin é declaradamente um fã de Tolkien, e tem na obra do mestre inglês uma de suas principais fontes de inspiração. Os elementos de fantasia, a jornada do herói (em especial a jornada interior), monstros, dragões, magia e escuridão existem em profusão nas obras dos dois escritores. Além de Tolkien, também encontramos na obra de Martin muito do imaginário shakespeareano. Há paralelos e histórias que se espelham de tal maneira que é impossível por vezes não ver transitar pelos castelos de Westeros algum personagem saído de uma peça do Bardo inglês. Mais do que isso, a quantidade de tramas e personagens é semelhante - em especial se pensarmos nas peças históricas de Shakespeare -, e o modo como esses personagens e acontecimentos ecoam através dos dramas shakespereanos parece ter inspirado as Crônicas de Gelo e Fogo.

Interessante também é que George R.R. Martin busca inspiração nas epopéias e tragédias gregas - seus enredos , personagens e brutais desfechos –, e em Conan, o Bárbaro - não apenas o personagem das aventuras criadas por Robert E. Howard, mas especialmente aquele dos quadrinhos, que trabalha com um imaginário de fantasia, recheado de violência e erotismo. E apenas por uma questão de espaço, aqui não exploramos ainda as referências que podemos encontrar na obra de Martin às óperas wagnerianas e às narrativas do Velho Testamento, cheias de violência, fúria e, não nos façamos de desentendidos, sexo.

E por último, nada pode ser mais inspirador do que a própria história política da Europa, que tem sua cota de tragédias, vinganças, guerras civis e reis loucos.

Mas algo que devemos ressaltar na obra de Martin é que, mesmo com toda sua violência e brutalidade, mesmo com sexo e sangue a correr com generosidade, dificilmente há nas cenas uma apelo à mera excitação do leitor/espectador. Elas existem e são construídas em geral para, ao contrário, fazer com que tenhamos repulsa pelos atos cometidos, ou marcam situações claras de poder e submissão.

Se há exceções, o que elas fazem é confirmar a regra. A menos que nossa sensibilidade seja um tanto perversa, dificilmente alguém não perceberá o mal inerente aos atos de violência e sadismo retratados.

Todos esses elementos se colocam na obra de Martin de forma magistral - e sim, quebrando aqui o protocolo, assumo que sou fã incondicional das Crônicas de Gelo e Fogo, não apenas pelos elementos cá postos, que provam que o autor pertence a uma rica tradição narrativa e cultural, mas também pelo imenso esforço laboral de se escrever uma obra em que transitam dezenas de personagens, e cuja narrativa se faz através de pontos de vista únicos, isto é, cada capítulo é narrado sob a ótica de um personagem, de forma que temos uma visão do todo, mas uma visão semelhante a de um quadro cubista: os fragmentos estão no mesmo plano, mas não correspondem exatamente à realidade; por serem um amálgama de diferentes interpretações, falta a verdade, ou a distância necessária para uma análise imparcial.

E apenas com a leitura desses relatos e memórias podemos aos poucos construir nosso quadro dos acontecimentos. Curiosamente, isso nos leva a compreender e enxergar melhor do que os personagens o imenso e apocalíptico drama que ocorre. Mas por outro lado, também somos muitas vezes manipulados por esses personagens, que expressam a sua visão particular dos fatos, acontecimentos, maravilhas e horrores.

E, ao nos entregar uma narrativa em que confiar nas palavras de determinado personagem é fazer uma escolha, Martin parece querer descortinar muito mais sobre nós do que ousamos admitir. Ao longo da história, ele brinca com nossas escolhas, pois aqueles personagens que inicialmente julgamos com rigor, por vezes se mostram magnânimos e honrados, enquanto outros, que pareciam nobres, se mostram o oposto disso.

Martin desdenha de alegorias ou arquétipos – ou ao menos manipula muito bem nossas expectativas em relação a eles - , e cria personagens que, como qualquer um de nós, são capazes de atitudes boas ou más, redentoras ou cruéis, dependendo da sua situação ou interesse.

No fim das contas, o que temos claramente é uma história em que muitas ações se realizam simultaneamente, e através delas, o significado mesmo da obra aprofunda-se, cresce e ganha novos contornos.

George R.R. Martin não criou apenas uma narrativa magistral, mas todo um universo , mais ainda, ele conseguiu revitalizar o próprio imaginário do fantástico.

Um Mundo Desajustado

“…meus heróis e personagens são todos desajustados. Eles são atípicos. Eles não se encaixam nos papéis que a sociedade tem para eles. Eles são aleijados, bastardos e coisas quebradas - um anão, um cara gordo que não consegue brigar, um bastardo e mulheres que não se encaixam confortavelmente nos papéis que a sociedade tem para elas.” George R.R. Martin - Entrevista para a EW

É necessário resistir à tentação de achar que todos leram a obra de Martin ou mesmo que já assistiram à série. Por isso, cá exponho, em linhas gerais, o enredo para os neófitos. Mas acredito que mesmo aqueles que conhecem as Crônicas de cor e salteado, podem tirar proveito dos comentários que aqui faço sobre alguns pontos da saga.

As Crônicas percorrem acontecimentos que se deram no reino de Westeros quando este passava não só por uma de suas maiores crises políticas e sociais, a tal Guerra dos Tronos, mas também por uma crise, mais aguda, catastrófica: o ressurgir dos Caminhantes Brancos e seu exército de ‘cadáveres vivos.

A trama política, que move a maioria dos personagens e casas de Westeros, os Baratheon, Stark, Lannyster e Targaryen, acontece após a morte do principal conselheiro do Rei Robert Baratheon, que conquistou o trono ao se rebelar contra o antigo soberano, o Rei Aerys Targaryen, o segundo de seu nome, apelidado de Rei Louco por seus inimigos. O rei Robert, então, convoca Eddard “Ned” Stark para substituir o falecido conselheiro e liderar o conselho real. Ned Stark é um amigo de longa data, Guardião do Norte, e ajudara o rei a conquistar o Trono de Ferro.

Mas a presença de Ned Stark na corte de Westeros causa ainda mais perturbações no reino, não apenas devido a seu senso de honra, justiça e compaixão, mas também por carregar segredos de seu passado que são críticos para o destino reino. Ao invés de apaziguar a crise, ele termina por ser seu catalisador (ou o bode expiatório): tudo o que vem a acontecer em Westeros está direta ou indiretamente ligado ao seu destino. E não falo aqui apenas da crise política, há ainda os Caminhantes Brancos. E estes estão ligados diretamente à ascendência de Ned Stark.

O fundador da família Stark, Brandon, o Construtor, foi um dos criadores da Patrulha da Noite. Sob sua liderança, homens e seres míticos uniram-se e juntos trabalharam na construção da Muralha que protege Westeros dos Caminhantes Brancos, criaturas criadas pela magia e que possuem a capacidade de fazer reanimar os mortos, tornando-os seus soldados, o exército de ‘cadáveres vivos. Após este feito grandioso, Brandon Stark foi coroado, tornando-se o primeiro rei do Norte.

O reinado dos Starks durou um milênio, até que se rederam a Aegon Targaryen, que os derrotou com o apoio de seus dragões. Aegon foi o primeiro rei da dinastia Targaryen, fundou Porto Real, e forjou o Trono de Ferro. Torhen Stark, o rei derrotado, colocou a sua casa a serviço dos Targaryen, a partir de então, seriam os Starks os guardiões do Norte. Eddard “Ned” Stark é descendente direto de Brandon e Torhen, e é o atual Guardião do Norte, uma terra gélida e inóspita.

Em seu castelo, Winterfell, Stark está cercado por sua ‘matilha’: sua esposa Cat e seus filhos, Robb, Sansa, Arya, Bran, Rickon e o bastardo Jon Snow. É esse legado e essa família que Ned tem em seu coração quando aceita o pedido do rei e vai para Porto Real, a capital do reino.

Com a vinda de Ned Stark para Porto Real, a crise torna-se inevitável. Na capital, as intrigas políticas e os ressentimentos pessoais se tornam ainda mais agudos. No Norte, os Caminhantes Brancos encontram o caminho livre, Um pouco antes de partir para Porto Real, o Guardião do Norte não soube ouvir os sussurros gélidos do apocalipse a ressoar - dito de forma menos poética, Ned ignorou o alerta de um desertor da Patrulha da Noite que testemunhou o ressurgir dos mortos: ele não acreditou que os mitos eram verdadeiros. Sua resolução de partir para Porto Real, a serviço do Rei Robert, é uma mostra clara de que não se devem trocar as verdadeiras batalhas pelas picuinhas políticas.

Suas decisões em Porto Real, juntamente com as de sua juventude, desencadeiam novos acontecimentos, que vão ecoar por toda a saga.

Ned é o ponto chave, o Norte moral e existencial dessas Crônicas. Mas, num mundo desajustado, carregar esse peso é ser, afinal, a pedra de tropeço a perturbar o reino. Graças a ele, os Taergaryan não foram completamente exterminados a mando do Rei Robert Baratheon; graças a ele, a própria casa Baratheon tem uma chance de sobreviver; graças a ele, seus filhos se sentem impelidos a lutar pela justiça em um reino dividido; graças a seus avisos e temperamento, os personagens centrais sabem que o "inverno está chegando.

Assim como Stark, os grandes personagens da saga, os que pertencem às principais casas, vivem suas jornadas heróicas, e, justamente por serem membros dessas soberbas linhagens, por vezes suas jornadas são extremamente complicadas, pois para se quebrar o ego aristocrata de seus origens, é necessário uma dose a mais de sofrimento, angústia e dor. Mas não pensem que as Crônicas de Gelo e Fogo tratam apenas de nobres guerreiros e suas aventuras: Martin também dá voz e importância a personagens que em qualquer outra saga seriam considerados "menores".

Ao longo das páginas, vamos descobrindo que, se há salvação para o reino diante da catástrofe iminente, ela depende não apenas dos grande senhores, mas daqueles desajustados, falhos, por vezes alquebrados e mutilados, que descobrem ou resgatam sua dignidade ao longo das suas histórias. Sor Davos, Brianne, Jorah Mormont, Samuel Tarwly, Podrick, Verme Cinzento, dentre outros, são o arcabouço da temperança, da prudência, da honra e da caridade nesse mundo desajustado, dantesco , não por serem personagens puritanos ou sem falhas, mas por serem aqueles que, mesmo modestos, vivem a jornada do herói, que aqui se apresenta despida de seus belos devaneios mistícos e é revelada em toda sua crueldade e carnalidade.

E se Martin os faz por vezes serem fracos, incoerentes, esbodegados, inconstantes, lembro sempre de uma frase de um desses grandes personagens interpretados por Al Pacino:

“Eles são pessoas comuns sob imensa pressão. O que vocês esperavam, graça e consistência?”

Das páginas dos livros para a TV: o reino mágico e o sagrado

“…evidentemente todos os atos legítimos são, em certo sentido, atos justos, porque os atos prescritos pela arte do legislador são legítimos, e cada um deles dizemos nós, é justo.” Aristóteles, in ‘Ética a Nicômaco, pg. 137

Quando os produtores David Benioff e Dan Weiss procuraram George R.R. Martin para conversar sobre a adaptação das Crônicas de Gelo e Fogo para a TV, o escritor já tinha lançado quatro livros da saga, o que signifca algo em torno de quatro mil páginas.

Todos gostamos de relembrar a anedota contada no início dessas impressões - aquela sobre a mãe de Jon Snow -, mas em termos concretos, o principal desafio era fazer o autor das Crônicas acreditar que seria possível adaptar a sua obra sem perder sua essência, ainda que mudanças fundamentais ocorressem.

Para muitos, essas mudanças são imperdoáveis, mas, encarando a situação de maneira realista, simplesmente não havia outra saída, mas ao se descolarem da obra de Martin, Benioff e Weiss conseguiram não apenas avançar a história (coisa que Martin ainda está longe de fazer, visto que faltam dois livros para o fim das suas Crônicas de Gelo e Fogo, algo em torno de 2500 páginas!), mas também fazer de seus personagens figuras marcantes do imaginário pop desse início de século.

O próprio Martin, que outrora trabalhara como roteirista de TV em séries como 'A Bela e A Fera', de 1987, com Ron Perlman e Linda Hamilton nos papéis principais, sabia que seria impossível levar para a telinha toda a imensa gama de personagens, cenários, seres bestiais e narrativas que aparecem nos livros. Era necessário fazer cortes e adaptações, sendo a mudança mais importante de todas o formato da narrativa, que na série é mais "convencional" do que nos livros. Em suas palavras:

“Um romancista conta com técnicas e recursos que não estão disponíveis para os roteiristas: diálogos internos, narradores inconstantes, pontos de vista de primeira e terceira pessoa, flashbacks, narrativas expositivas e vários outros. Como romancista empenho-me em colocar os leitores dentro das mentes dos personagens, deixando-os a par de seus pensamentos, permitindo que vejam o mundo pelos olhos deles. A câmera, no entanto, fica do lado de fora do personagem, e o ponto de vista, então, é necessariamente externo em vez de interno.”

Desde sua primeira temporada os produtores conduziram com maestria única a complicada adaptação. Seja na escolha dos atores, nos detalhes da produção, nas locações magníficas que retratam os reinos de Westeros, seja ainda na trilha sonora que embala as batalhas, as intrigas, as escaramuças e os atos heróicos, temos a entrega de algo que poucas vezes foi visto na televisão: o maravilhamento!

Adaptar o enredo e as vozes dos livros para uma série com número limitado de episódios e restrito tempo narrativo resulta em um história mais enxuta, mas não menos dramática; resulta em optar por caminhos mais simples, mas ainda assim surpreendentes; resulta em uma visão agora mais completa da história, em que vislumbramos a sua totalidade, a sua verdade interna.

A princípio percebemos mais claramente que temos aqui personagens de um universo de fantasia, mas que curiosamente não acreditam em magia, monstros ou gigantes, nem em espíritos da floresta e muito menos em feiticeiras, e mesmo os deuses são apenas lembranças de tradições a serem preservadas, mais por nostalgia e rememoração do que por serem efetivas as preces que lhes dirigem.

São personagens céticos em um "reino mágico", que aos poucos começam a intuir que há um algo além da sua realidade, “…algo de ordem “diferente”, de uma realidade que não pertence a nosso mundo.” Esse algo, essa possibilidade é nada mais nada menos do que o sagrado.

Podemos perceber o sagrado em duas linhas de desenvolvimento da narrativa da série. A primeira é a importância dada à idéia de legitimidade, que expressa a Justiça no reino. Isso é transparente na série, e determina os acontecimentos e as diversas linhas narrativas que se desdobram.

Da descoberta dos filhos ilegítmos de Cersei com seu irmão, passando pela necessidade de aprovação de filhos bastardos pelos seus pais, a qual gera atos de selvageria e sadismo como os cometidos por Joffrey e Ramsey, até a tragédia pessoal de Theon Greyjoy, a busca e a necessidade de legitimidade é fundamental para George R.R. Martin e também para os produtores da série.

Para confirmar isso, basta recordar que os dois principais personagens da saga, Jon Snow e Daenerys Targaryen não são apenas pretendentes ao Trono de Ferro, mas em realidade, seus legítimos herdeiros. Desde o começo da série, e em especial após os trágicos eventos da primeira temporada, entendemos a importância disso para a história. De todos os embates envolvendo a Guerra dos Tronos, e por mais que existam motivos para cada pretendente se dizer digno deste trono, a legitimidade, a Justiça, está do lado de apenas uma das casas.

O outro aspecto que nos revela a presença do sagrado é que no desenrolar das temporadas - agora sem levar em consideração os acontecimentos dos livros -, vemos que todas as intrigas políticas, todas as batalhas travadas entre os pretendentes do Trono de Ferro, todas as artimanhas pela conquista de um castelo ou domínio, apenas escondem o terror que vai aos poucos se cravando no coração dos personagens: o terror da morte encarnada nos Caminhantes Brancos e seu exército de "cadáveres vivos".

O medo da morte é o que vai fazer com que os personagens ganhem, para nós, uma realidade única, pois afinal, é da morte que fugimos a cada novo dia, é a ela que falamos sempre não, e é a sua visita, a mais indesejada de todas, que nos faz buscar o sentido, o sagrado em nossas vidas.

Afinal, “…nunca haverá nada de inteiramente secular em relação ao medo humano. O terror, afinal, do homem é, sempre, um “terror santo”- o que é uma frase popular e admiravelmente adequada. O terror sempre se refere aos extremos da vida e da morte” .

Ao tomarem consciência desse pesadelo que ameaça todos os reinos de Westeros, os personagens da saga têm a chance de se mostrar maiores que seus vícios, pecados e ressentimentos. É na hora final que saberemos se há a possibilidade do Bem (ou ao menos de Justiça) no mundo desajustado de George R. R. Martin.

E não é assim em nosso mundo real, afinal?

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