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Nuvem se forma sobre a cidade japonesa de Hiroshima após a explosão da bomba atômica em 1945 | DivulgaçãoREUTERS
Nuvem se forma sobre a cidade japonesa de Hiroshima após a explosão da bomba atômica em 1945| Foto: DivulgaçãoREUTERS

Em janeiro deste ano, um grupo de cientistas fez um ajuste inédito no “Relógio do Apocalipse”, aquele que aponta de forma icônica quanto falta para darmos adeus ao planeta Terra. O relógio foi ajustado de três para dois minutos e meio para meia-noite, horário do “fim do mundo”. Nunca o relógio criado pelo Boletim de Cientistas Atômicos em 1947 esteve tão perto do caos. O gesto é simbólico, também de cunho político “anti-Trump”, mas parece importante levar a sério este aviso. Por quê?

As principais causas apontadas pelos pesquisadores para adiantar o relógio em 30 segundos podem ser resumidas em três: o perigo de uma iminente guerra nuclear, a polêmica discussão sobre as mudanças climáticas e a ação criminosa de hackers em meio à alta dependência da tecnologia da informação com o aumento exponencial das notícias falsas. Os testes nucleares na Coreia do Norte, a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris na semana passada – documento no qual 197 países se comprometeram em 2015 a adotar medidas de combate a mudanças climáticas prejudiciais – e o ataque mundial de hackers em computadores de mais de 100 países em maio mostram que os alertas dos pesquisadores não estão longe da realidade. 

Os perigos de uma guerra nuclear 

A profecia “alguma bobagem nos Bálcãs é capaz de começar um conflito de dimensões mundiais”, atribuída ao estadista alemão Otto von Bismarck, concretizada com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e o início da Primeira Guerra Mundial, inspira a análise da tensão nuclear existente hoje entre as principais nações com armamentos nucleares. Essa “bobagem” no século 21, ao invés dos Bálcãs, poderia ocorrer nas ilhas asiáticas. E a grande diferença entre os conflitos globais do século 20 seria o uso de armas nucleares demolidoras, com consequências ainda não plenamente conhecidas. 

A tensão na região tem como principal protagonista a nanica Coreia do Norte, que não se cansa de mostrar que está pronta para a briga. Dividida depois da II Guerra Mundial e em estado de alerta permanente desde o fim do conflito com a Coreia do Sul, entre 1950 e 1953, a península representa um dos frutos mais amargos da Guerra Fria. Os ditadores que se revezaram na parte Norte, sob influência da antiga União Soviética, temem a interferência ou até a invasão do país, nos moldes da Líbia e do Iraque, com as mortes humilhantes de seus dirigentes pelos Estados Unidos, como ocorreu com Muammar Kadhafi, em 2011, e Saddam Hussein, em 2006, respectivamente. “Por isso, por uma questão de sobrevivência, por ser apenas um peão no jogo das grandes potências, o país se esforça em mostrar que possui não apenas as bombas nucleares, mas tecnologia de mísseis capazes de atingir o território norte-americano”, explica Carlos Gustavo, coordenador do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

Um ataque à Coreia do Sul ou ao Japão, países que possuem tratados de cooperação militar com os Estados Unidos, provocaria uma reação norte-americana. Mesmo com os avançados sistemas antimísseis, um deles poderia atingir o seu alvo em um disparo simultâneo de vários dispositivos. Os dois aliados da Coreia do Norte seriam a Rússia e a China. Como Estados Unidos e Rússia detêm 90% do armamento nuclear do mundo, o uso desse arsenal poderia dizimar nações inteiras. 

O estilo “deixa que eu resolvo” do presidente norte-americano Donald Trump , tão imprevisível quanto o líder norte-coreano Kim John-un, é apontado ainda, tanto no relatório do Boletim dos Cientistas Atômicos quanto por especialistas, como um fator capaz de acender o pavio. Trump, desde que assumiu a presidência, protagonizou perigosas gafes históricas nas relações com outras potências, como telefonar para a presidente de Taiwan e quebrar o protocolo tácito mantido desde 1979, para conservar a paz com a China, e teve de contornar a situação a duras penas, para citar uma delas. Já Kim John-un, não tem reparos éticos para se manter no poder, desde continuar a difundir o culto à própria imagem até assassinar supostos inimigos. “Para piorar, a população norte-coreana não sabe o que acontece em outras partes do mundo, é tudo muito fechado e tem apenas acesso à visão oficial do governo de Kim”, diz Antonio Celso Alves Pereira, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. 

Tudo isso é verdade, mas é verdade também que as grandes potências, Estados Unidos, Rússia e China não têm interesse de entrar em uma guerra mundial agora. “O clima na região neste momento é tenso, não é possível garantir nada, tudo é possível, mas não há vontade dos atores políticos de levar às vias de fato um conflito”, explica o cientista político Alexandre Ratsuo Uehara, diretor das Faculdades Integradas Rio Branco. “A China está descontente com a Coreia do Norte e tem hoje mais interesses em comum com os Estados Unidos do que divergentes, e a Rússia também tem outras prioridades. A própria Coreia do Norte também não tem interesse, já que o seu fôlego para a guerra seria muito curto, com perdas e prejuízos incalculáveis”, continua. 

O relatório do relógio do fim do mundo cita ainda outros possíveis estopins de um desastre nuclear, como a tensão entre a Índia e o Paquistão, os altos e baixos no acordo nuclear com o Irã, a disputa entre Rússia e Ucrânia pelo território da Crimeia, e a modernização dos equipamentos militares de Estados Unidos e Rússia. Os especialistas não diminuem a força desses litígios, mas não os colocam no mesmo nível de atenção exigido na península coreana. 

A polêmica briga sobre as mudanças climáticas 

Incluir as preocupações com mudanças climáticas como uma das principais causas da proximidade do fim do mundo é, talvez, a parte mais polêmica do relatório, principalmente nos Estados Unidos. Isso porque o presidente Trump e seus seguidores insistem em afirmar que o propalado aquecimento global é questionável. Tão questionável que, como dito, o presidente norte-americano decidiu retirar o país do Acordo de Paris. Antes disso, em 22 de abril, cientistas em todo mundo, principalmente nos EUA, fizeram uma “marcha pela ciência”, preocupados com os “fatos alternativos” apresentados por Trump em detrimento das evidências científicas e a redução do orçamento para pesquisas no país. 

De acordo com o relatório dos cientistas, a ação daninha do homem sobre a Terra, principalmente com a queima de combustíveis fósseis, como carvão e os derivados do petróleo, aumentou a emissão do dióxido de carbono (CO2) e, em consequência, intensificou o efeito estufa e eleva perigosamente a temperatura da terra ano a ano. Com isso, se nada mudar, entre outros riscos, os terráqueos assistirão ao derretimento acelerado das geleiras e calotas polares, com um acréscimo do nível dos oceanos, inundações, aparecimento de novos e drásticos fenômenos climáticos, como furacões devastadores, tempestades e tornados. 

Trump nega tudo isso. E não só ele e os representantes da indústria e do agronegócio da sua equipe de governo. Vozes dissonantes da imensa maioria científica global, acusados de receberem dinheiro de empresas, como Richard Lindzen, do MIT, e Patrick Michaels, da Universidade de Virgínia, além de outros pesquisadores de outros países, inclusive brasileiros, como Ricardo Augusto Felício, professor de Geografia da USP, e Luiz Carlos Molion, doutor em meteorologia pela Universidade de Wisconsin, acreditam que a preocupação com as mudanças climáticas são exageradas. Eles lembram em artigos e palestras que o próprio IPCC, órgão responsável pelos estudos de clima e meteorologia da Nasa, admitiu que entre 1999 a 2014 não houve aumento na temperatura global, e questionam a medição de aumento feita nos anos seguintes, que para eles foi direcionada, já que, e isso é consenso em ambos os lados, os sistemas empregados para tal fim ainda são limitados. 

Na seara científica, essa disputa vem sendo ganha pelos pesquisadores que acreditam no aquecimento global ou em mudanças climáticas com efeitos nocivos. Por isso, a decisão de Trump sobre o Acordo de Paris causou tanta comoção entre pesquisadores. À espera de pesquisas científicas avançadas e mais conciliatórias, imagens das cidades chinesas com uma névoa de poluição – o país é o maior emissor hoje do gás carbônico, seguido dos Estados Unidos –, mostram que é preciso fazer algo para melhorar a capacidade da indústria sem colocar em risco o meio ambiente e a vida de muitas pessoas, sejam suas consequências supostamente apenas locais e não globais. E sem prejudicar os países em desenvolvimento, que necessitam melhorar a sua indústria para tentar competir de igual para igual no mercado internacional. Esse complexo de interesses e visões mostra que essa briga vai longe. 

O despreparo para “notícias” rápidas e os hackers 

Até bem pouco tempo, as informações demoravam a chegar e as reações também. Não havia mensagens instantâneas, vídeos ao vivo, possibilidade de interferir em uma comunicação simultaneamente. A mudança rápida desse cenário, momento inédito na história da humanidade, ainda não foi “digerida” pela sociedade e apresenta riscos para o mundo, como a difusão de crimes cibernéticos e de notícias falsas. E quando alguém está diante de uma situação que não domina, vê perigos inexistentes e busca refúgio em uma tribo. 

“Há uma avalanche de informações e, ao mesmo, de propaganda. E como não há mais sociedades solidamente estabelecidas em termos e princípios jurídicos, políticos, etc., com a famosa globalização, tão cantada em prosa e verso, aparece a ‘feudalização’ da sociedade, indivíduos que se reúnem em grupos, tribos, para atacar ou para se defender”, afirmou Roberto Romano, doutor em Filosofia pela Universidade Sorbonne de Paris e professor de Ética e Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) [em uma entrevista para a Gazeta do Povo em março deste ano]. 

Esse cenário aparece para os cientistas do “relógio do Apocalipse” como um catalisador virtual de problemas mundiais, profecia fortalecida com o aumento vertiginoso de ataques de hackers e o aumento das notícias falsas, as chamadas “fake news”, que podem levar multidões a escolhas erradas por meio da comoção causada por uma mentira sensacionalista. Uma das pesquisas sobre o tema, realizada na Universidade de Stanford no ano passado, demonstrou que jovens de ensino médio e universitários eram incapazes de identificar a fonte de uma notícia e os interesses envolvidos, perceber a diferença entre um texto publicitário e uma matéria jornalística ou dar-se conta se um texto apresentado tinha a preocupação de mostrar com isenção os dois ou mais lados de um tema. 

No caso dos hackers, o principal perigo é econômico. Já, em relação às notícias falsas, as consequências são mais drásticas, não só para a democracia – as mentiras de blogs e posts nas mídias sociais têm sido as principais armas de ascensão dos populistas e ditadores –, mas também pelo desprezo à ciência. 

Os cientistas atômicos recomendam que políticos, pesquisadores e empresas tomem as medidas necessárias para criar mecanismos capazes de brecar abusos dessa ebulição on-line. Só não dizem como. O professor Roberto Romano acredita que a sociedade vai levar tempo para “digerir” e lidar de forma inteligente com essa simultaneidade. Enquanto isso, todo cuidado é pouco para evitar um atiçar duvidoso das massas com um simples “enter”, com um alcance inimaginável para pensadores que profetizaram esse fenômeno, como Jose Ortega y Gasset, no início do século 20 com o livro “A Rebelião das Massas”. Do contrário, pode ser a gota d´água. E a barbárie.

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