A Faculdade de Medicina da UnB virou palco de um debate que ganhou proporções nacionais sobre a cobrança do passaporte da vacinação.| Foto: UnB/SECOM
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No dia 27 de janeiro, a doutora em Ciências Médicas Selma Kückelhaus renunciou ao cargo de coordenadora da graduação em Medicina da Universidade de Brasília. O motivo é de um simbolismo singular, tendo em vista um dos debates atuais que mais movimenta a comunidade médica em todo o mundo: a eficácia e legitimidade da exigência de passaporte vacinal. Antes da professora pedir afastamento, o Conselho de Administração da instituição decidiu impor a apresentação de comprovantes de vacinação a todos que quisessem frequentar as instalações da universidade, inclusive visitantes.

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Invocando a defesa de liberdades individuais, Selma comunicou à gestão da UnB seu desapontamento com a decisão e sua opção pela renúncia: “considerando que componho o grupo de servidores não vacinados, a minha posição como coordenadora ficou em desacordo com a gestão da faculdade”.

Pouco depois, a carta que devia ser sigilosa foi vazada à imprensa, resultando numa onda de difamação e perseguição contra a professora nas redes sociais. Embora ela justifique no texto sua posição com questionamentos plausíveis relacionados à eficácia das vacinas atuais para evitar infecção e transmissão, foi taxada de “antivax”, “negacionista” e acusada de sustentar sua opinião por mera adesão política ao bolsonarismo.

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Após resistir ao turbilhão de agressões ocasionado pelo vazamento da carta, Selma concedeu entrevista à Gazeta do Povo para explicar melhor suas motivações e como vê a situação gerada por seu ato de coerência às convicções pessoais.

Gazeta do Povo: Como avalia a repercussão da sua carta?

Selma Kückelhaus: A carta foi encaminhada somente aos meus pares, mas infelizmente vazou para a imprensa. Apesar de ter me entristecido com o ocorrido, compreendo aqueles que julgam minha decisão como espantosa, sobretudo tendo em vista que o debate foi cerceado na academia. Qualquer um que vá contra a ordem vigente é visto de forma atravessada.

Em acréscimo, a minha carreira já está consolidada. Coordeno um diretório de grupo do CNPq – a agência nacional de fomento à pesquisa -, intitulado "Morfologia e Imunologia Aplicada", composto por vários pesquisadores e estudantes que sabem separar as coisas. Além disso, sou resiliente e capaz de me reinventar, se necessário. Tomei uma decisão ética, em favor da gestão, e sem abrir mão das minhas convicções.

GP: Como parte da repercussão de sua decisão, críticos fizeram circular na imprensa uma foto sua, no que parece ser uma manifestação pró-Bolsonaro. Esse fato a incomodou?

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SK: Isso é lamentável! A foto em questão foi tirada em cima de um carro de som no qual estava o procurador Júlio Marcelo. Na época, estávamos nos manifestando em apoio à operação Lava Jato.

Minhas convicções políticas nunca interferiram na qualidade do meu trabalho. Atuo como professora e pesquisadora em parceria com pessoas de diferentes ideologias e sempre houve muito respeito e seriedade. A política não interfere na minha vida profissional. A gestão da Faculdade de Medicina sempre soube das minhas convicções políticas e isso nunca foi um obstáculo para a condução do trabalho. Se não me engano, a foto é de 2018, o mês não me recordo, mas foi uma grande manifestação em todo o Brasil.

GP: Sobre o passaporte vacinal, algumas pessoas o defendem tomando por base outras políticas restritivas, como no caso da imunização contra febre amarela, por exemplo. Afirma-se também que essa interferência é justificada porque pessoas não vacinadas ameaçam a vida de outras pessoas, ou podem lotar as UTIs caso peguem Covid. Como a senhora responde a esses argumentos?

SK: Essas afirmações não se sustentam. Penso que essa posição é fruto de uma histeria coletiva. As pessoas que assim acreditam não conseguem ver o óbvio diante dos seus olhos: as vacinas correntes e experimentais não impedem nova infecção, tampouco o contágio. Isso é fruto das mentes embotadas pelo medo.

A Santa Casa [de Passos], por exemplo, fez o certo ao publicar a distribuição dos pacientes internados no mês de janeiro, apontando que a maioria tinha comorbidades como hipertensão arterial, diabetes, obesidade e cardiopatias.

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A narrativa frequente usa o artifício de somar todos os que não "completaram o esquema vacinal" para insinuar que a culpa pela pandemia ainda estar aí é dos não vacinados. No entanto, o fato é que o esquema nunca estará completo: “já tomou a terceira dose? Está devendo a quarta!”.

Isso também é fruto do coletivismo. Eles acreditam que o coletivo deve imperar sobre o individual. Esse é um dos males deste século.

GP: O CDC (Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos) publicou um estudo com a população dos estados da Califórnia e Nova York em que foi demonstrada uma proteção conferida por contato prévio com o vírus, a dita imunidade natural, mas concluem que a melhor proteção seria feita pela conjunção de imunidade natural e imunidade vacinal. O que a senhora acha dessa conclusão?

SK: Esse estudo é no mínimo hilário, se estamos falando das técnicas novas. Penso que eles acharam um jeito de redimir a imunidade natural que foi rechaçada pela mídia em conluio com as empresas que produzem vacina.

Pense, as vacinas vetoriais focaram numa única proteína spike, que eu vou chamar de selvagem, mas de lá para cá, o vírus sofreu inúmeras mutações. Indivíduos que contraíram a infecção, em tese, desenvolvem anticorpos para diferentes tipos de antígenos (alvos moleculares no vírus utilizados pelos anticorpos produzidos pelo sistema imunológico), mas, apesar disso, ainda restam vários questionamentos.

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Não temos certeza do quanto dura a imunidade natural ou mesmo se todos os infectados a desenvolvem de forma duradoura e eficaz. Uma coisa é fato: a vacina não impede o contágio e tampouco nova infecção. Desconheço um estudo amplo que mostre os valores relativos de cada caso, ou seja, quantos vacinados ou imunizados naturalmente contraíram nova infecção.

GP: Como você avalia administração da UnB, de forma geral, em relação à pandemia?

SK: No primeiro ano da pandemia, a Faculdade de Medicina implantou com sucesso o ensino remoto. Isso permitiu que prosseguíssemos ensinando, mesmo num ambiente de muito medo da doença. No entanto, os estágios do internato se mantiveram presencialmente, assim como boa parte das práticas de anatomia. As aulas remotas eram direcionadas aos conteúdos teóricos das disciplinas.

No segundo ano, outras práticas foram retomadas e persistem até hoje. Esse sistema trouxe inúmeros descontentamentos aos discentes e alguns professores. Atualmente, os estudantes estão em greve e não pretendem recuar enquanto as aulas presenciais não forem retomadas.

Eu penso que as aulas presenciais poderiam ter sido retomadas com maior celeridade, mas fui voto vencido. Entenda, a pandemia afetou muito os estudantes, os professores e o que temos hoje é um aumento de pessoas doentes. Sem falar que tudo isso afetou sim a qualidade do ensino.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]