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Cena do documentário "The Eternal You": novo mercado promete "recriar" pessoas mortas.
Cena do documentário “The Eternal You”: novo mercado promete “recriar” pessoas mortas.| Foto: Divulgação/Festival de Sundance

O novo especial do humorista George Carlin tem feito sucesso no YouTube.

No show de uma hora de duração, ele fala sobre a eleição de 2024 e, ao seu estilo, também faz piadas pesadas sobre o caso Jeffrey Epstein e a plataforma adulta Onlyfans. A plateia ri do começo ao fim.

Tudo normal, se o humorista americano não tivesse morrido em 2008. O show — que não tem vídeo, mas apenas o áudio acompanhado por imagens estáticas geradas digitalmente — foi criado com o auxílio de uma ferramenta de inteligência artificial (IA).

O "especial" incomodou a família do humorista, que ameaçou processar o canal responsável pelo vídeo. “Meu pai passou a vida aperfeiçoando seu ofício a partir de sua vivência, seu cérebro e sua imaginação humanos. Nenhuma máquina vai substituir sua genialidade. Esses produtos gerados por IA são tentativas astuciosas de recriar uma mente que nunca vai existir de novo”, escreveu Kelly Carlin-Shere, filha de George Carlin.

A publicação original acabou saindo do ar, embora possa ser encontrada em canais alternativos no YouTube.

É inevitável: o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial vão levar cada vez mais pessoa à tentação de recriar pessoas mortas. Obviamente, tudo não passa de um truque sofisticado. Mas é sofisticado o bastante para convencer milhares de pessoas a gastar dinheiro com isso.

Oferta acompanha demanda

A tentativa de se comunicar com os mortos pode ser encontrada em diferentes civilizações, em diferentes épocas da humanidade — por meio da arte, da religião ou de superstições.

Era previsível que, com o avanço da inteligência artificial, surgissem serviços para atender essa demanda.

Uma dessas iniciativas é o Project December, criado pelo americano Jason Rohrer. O slogan é direto: “Simule os mortos". Por US$ 10 (aproximadamente R$ 50) é possível criar o perfil de uma pessoa que já faleceu e estabelecer uma conversa com ela (por texto). Basta preencher um formulário com informações biográficas da pessoa que se quer simular.

A ferramenta, que só funciona em inglês, extrai detalhes sobre a personalidade do avatar. A pessoa gostava de novas experiências ou preferia o que lhe era familiar? Era organizada e confiável ou bagunçada e imprevisível? Com base nas respostas, o Project December elabora o perfil do falecido.

O pagamento de US$ 10 dá direito a 100 mensagens (considerando "ida e volta"), com duração de aproximadamente uma hora.

"Nós agora podemos simular uma conversa em texto com qualquer um. Qualquer um. Incluindo alguém que não está mais vivo", promete a página.

Outras ferramentas do tipo são ainda mais complexas.

Avatar em 3D

De certa forma, a tecnologia usada para recriar os mortos não exige um esforço adicional por parte dos desenvolvedores: as mesmas ferramentas usadas para criar um avatar podem ser usadas para simular uma pessoa que já morreu.

O Soul Machines (inglês para “Máquinas da Alma”) oferece este tipo de serviço. O aplicativo, criado por dois programadores neozelandeses, não foi desenvolvido especificamente para ressuscitar mortos, mas funciona para esse fim caso o usuário tenha interesse.

Nesse caso, além de alimentar o sistema com informações detalhadas da pessoa a ser recriada, é possível criar uma imagem em 3D para gerar uma conversa realista. Além de recriar mortos, a tecnologia é usada para serviços virtuais de atendimento ao consumidor. Outro uso do Soul Machines é a interação de celebridades com fãs: e se cada seguidora de Taylor Swift pudesse ter uma chamada de vídeo com a cantora?

Para demonstrar sua capacidade, a Soul Machines permite que os usuários "conversem" gratuitamente com o astro do K-Pop Mark Tuan. Os termos de uso explicam que o conteúdo da conversa é gerado pelo ChatGPT, e que a Soul Machines não se responsabiliza pelo que sai da boca virtual do cantor coreano.

Fisicamente, a recriação de Tuan impressiona. Enquanto espera que o interlocutor diga algo, ele pisca os olhos e mexe levemente a cabeça — como um humano normal faria. Quando ele fala sobre algo triste, ele franze a testa. Quando está assustado, abre ligeiramente os olhos. A voz, por vezes, parece robótica, mas o timbre é similar ao do ator.

A reportagem da Gazeta do Povo perguntou ao avatar de Mark Tuan se ele gostaria que essa tecnologia continuasse a ser usada depois da sua morte. A resposta: "Eu ainda não pensei sobre isso, mas eu acho que vai ser interessante ver como essa tecnologia evolui no futuro. Definitivamente, é uma forma única e inovadora de preservar memórias e experiências".

Em busca da imortalidade

O avanço da inteligência artificial também permitiu o surgimento de outra modalidade de aplicativos: os que permite que o futuro morto deixe seu perfil pronto para interagir com os descendentes.

O HereAfter faz exatamente isso: “Preserve memórias com um aplicativo que lhe entrevista sobre sua vida. Depois, deixe que os seus entes queridos ouçam histórias significativas conversando com sua versão virtual”, a página promete.

Os planos começam com US$ 3,99 por mês e vão até US$ 7,99. Se o assinante morrer, um parente pode continuar fazendo os pagamentos por ele. Mas a forma mais segura é fazer um pagamento único que garante acesso eterno ao material. Nesse caso, o valor vai de US$ 99 a US$ 199, dependendo do volume do conteúdo produzido.

Conversa em vídeo

O HereAfter permite apenas conversas de voz. Mas outra plataforma, a StoryFile Life, deu um passo adiante; os usuários gravam vídeos que, depois, serão usados para recriar a imagem da pessoa morta e, assim, permitir que elas “conversem” com familiares.

"Hoje você está aqui. Mas, um dia, você vai ser o antepassado de uma criança que vai querer saber de onde ela veio", diz o ator William Shatner, conhecido pela atuação em 'Jornada nas Estrelas', no vídeo de divulgação da ferramenta.

Aos céticos, o site permite um teste com uma senhora chamada Nancy Rosado.

A Gazeta do Povo fez algumas perguntas a Nancy. "Onde você nasceu?" Ela responde diretamente: "No Bronx, em New York". Memória favorita? Nancy dá uma resposta detalhada sobre como seus pais, criados na floresta tropical em Porto Rico, passaram a ela um exemplo de tenacidade. Ela diz que não tem filhos, mas cria gatos. E que se arrepende de não ter viajado para fora dos Estados Unidos, o que agora se tornou impossível porque ela precisa cuidar da mãe de 97 anos de idade.

"Conversa" com Nancy Rosado na plataforma StoryFile: realismo extremo.
"Conversa" com Nancy Rosado na plataforma StoryFile: realismo extremo.| Reprodução/StoryFile Life

Quando o interlocutor faz uma pergunta fora do roteiro, Nancy é educada: "Não posso responder isso. Você pode perguntar sobre outra coisa?"

No StoryFile Life, que funciona apenas em inglês, as primeiras 33 perguntas são gratuitas. Depois, é possível gravar respostas adicionais, cada uma por US$ 1, ou assinar pacotes maiores — o mais caro custa US$ 499, em um pagamento único, e dá direito a 1.600 perguntas.

"Você eterno": novo documentário trata do assunto

O universo fascinante e assustador dos mortos ressuscitados pela inteligência artificial é o tema de um novo documentário. “Eternal You” (“Você Eterno”), dos diretores alemães Hans Block e Moritz Riesewieck, entrevista pessoas que optaram por usar a tecnologia para trazer de volta a experiência de conversar com pessoas que partiram.

O filme foi lançado no documentário de Sundance, o mais importante do gênero nos Estados Unidos.

"As máquinas estão ficando cada vez melhores em imitar a vida humana, as emoções, os traços específicos de personalidade, de modo que se elas tornam muito semelhantes. Mas isso traz muitos riscos e consequências que não conhecemos", diz Block, em um vídeo divulgado pela organização do festival.

Dilemas éticos

Para o professor Edson Mintsu Hung, da Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília, a criação de avatares de pessoas mortas pode ter aplicações positivas, mas precisa ser feita com cautela.

“Acredito que possa ter aplicações interessantes, como terapias ou reconstituição de eventos históricos, artísticos ou culturais. Mas sou da opinião que 'recriar' pessoas mortas sem critérios não seria um bom uso dessa tecnologia e que devemos limitar o uso de deep fake por meio de leis, regras de conduta e regras de exploração comercial”, ele afirma.

O descompasso entre o avanço da tecnologia e as discussões sobre a ética dessas ferramentas nunca foi tão grande. Para o professor, o desenvolvedor da tecnologia não precisa resolver todos os dilemas éticos antes de lançar uma ferramenta. A sociedade é que precisa lidar com eles. “O fabricante do carro não está preocupado com o uso errado do carro. Não cabe a ele essa discussão. Cabe a ele desenvolver o carro. O uso dele depende muito da maturidade da sociedade”, afirma.

Um dos problemas a serem resolvidos diz respeito ao conteúdo atribuído às pessoas mortas. "O problema é que eventualmente a IA pode gerar conteúdos indesejados e vincular à imagem de uma pessoa que faleceu e não tem chances de se defender”, afirma o professor Hung. No caso de George Carlin, por exemplo, a inteligência artificial atribuiu ao humorista piadas que ele nunca fez — e talvez nunca faria.

Professor defende regulação

O professor de Filosofia Jelson Roberto de Oliveira, da PUC do Paraná, afirma que a tecnologia é ambígua — nem boa por natureza, nem necessariamente má. O grande problema, afirma ele, é que a inovação tem se antecipado às discussões éticas. “A tecnologia avança de forma muito mais rápida do que a ética. E esse é o grande dilema. A tecnologia traz muitos riscos, e quando eles são descobertos às vezes é tarde demais”, afirma.

Oliveira diz que é preciso haver regulação sobre certos usos da inteligência artificial. “Essa liberdade absoluta por parte da ciência e da tecnologia não faz muito sentido, dada à grande influência que ela exerce sobre o nosso dia a dia. Isso está remodelando a forma como a gente vive”, diz.

Ainda segundo o professor, o interesse pela comunicação com os mortos é um sintoma de uma crise mais profunda na sociedade contemporânea: a crise da religiosidade tradicional. “A nossa sociedade não aceita mais a ideia antiga de que a morte é uma passagem. A morte é cada vez mais vista como um fim”, diz ele. Daí a popularidade do que ele chama de “medidas de cura da morte”.

Oliveira acredita que, para fins pedagógicos, o uso de ferramentas digitais para “recriar” figuras como Platão pode ser útil — desde que os estudantes compreendam se tratar de um simples recurso de aprendizado, e que a tecnologia não pretenda extrapolar o conteúdo da obra de Platão para responder questões que o filósofo nunca abordou.

Já o “ressurreição” de mortos para fins afetivos é mais problemático. Uma criança que more longe dos avós e que se comunique com eles apenas por chamadas de vídeo poderá, em tese, manter essa rotina mesmo depois que eles partirem. Mas as cicatrizes psicológicas e morais podem ser profundas.

Apesar da multiplicação das ferramentas que prometem ressuscitar os mortos, não há registro de algo parecido com o episódio do seriado Black Mirror em que uma jovem viúva começa conversando por mensagens de texto e, pouco a pouco, chega ao ponto de encomendar uma réplica em tamanho real do marido falecido.

A tecnologia não atingiu esse nível.

Por enquanto.

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