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Estimulados pela comparação social, Caim e Abel representam respostas rivais ao sofrimento inerente à condição humana após o surgimento da consciência de si. O sofrimento de Abel leva a seu autodesenvolvimento como guerreiro. O sofrimento de Caim leva à inveja, malevolência e assassinato. Este ensaio explica e desenvolve a interpretação que Jordan Peterson faz da história de Caim e Abel.

Em sua “Biblical Series V: The Hostile Brothers” e em seu best-seller internacional “12 regras para a vida: um antídoto para o caos”, Jordan Peterson faz uma interpretação interessante da história de Caim e Abel. Ambos os irmãos arquetípicos sofrem, mas suas respostas radicalmente diferentes ao sofrimento representam opções humanas perenes.

Depois de ganhar consciência de si e sair do Jardim do Éden, “Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: ‘Possuí um homem com a ajuda do Senhor’” (Gênese 4:1). Caim não é apenas o filho primogênito, Peterson observa, mas o primeiro ser humano a nascer.

“E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim” (Gênese 4:2). Em seu livro “The Beginning of Wisdom”, Leon Kass aponta que Gênese não registra declarações de alegria, nenhuma gratidão a Deus e nenhum orgulho materno acompanhando o nascimento de Abel. Como a maioria dos pais, Eva ama mais a seu primogênito.

O mesmo se dá com Adão. “Abel tornou-se pastor e Caim lavrador” (Gênese 4:2). Adão cultiva o jardim e convida Caim a unir-se a ele no negócio familiar. Nas culturas antigas, Peterson observa, o primogênito herdava a terra arada por seu pai, e os outros filhos tinham que cuidar de seu próprio sustento. Havia uma lógica convincente por trás dessa prática: se a terra fosse dividida igualmente entre muitos filhos, ao longo das gerações os lotes de terra ficariam cada vez menores, inviabilizando a sobrevivência de todos.

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Assim, sem mentor para guiar seus passos, Abel tem que trilhar seu próprio caminho como pastor. As ovelhas andam onde querem, e esse fato o leva a entrar em potencial conflito com Caim. Peterson destaca: “Os pastores gostam que seus rebanhos de ovelhas ou cabeças de gado andem por onde quiserem. Os agricultores gostam de ter suas terras cercadas.” A terra provê a Abel menos apoio social, mais risco de morte violenta devido a animais selvagens e maior exposição ao sol, chuva e frio. Assim, não apenas seu status social rival na família, mas também suas respectivas ocupações levam Caim e Abel a se oporem, sendo que Abel é o desfavorecido.

Como poderia Abel deixar de notar o favoritismo de Eva, o modo como Adão guiava os passos de seu irmão, e o status social que Caim desfrutava como primogênito? Abel é expulso de casa, relegado à companhia das ovelhas. Se um leão o atacar, quem ouvirá seu grito?

Mas, sugere Peterson, o sofrimento de Abel o impele ao autodesenvolvimento, não ao desespero. “Ele é ignorante e humilde, e, por essa razão, pode aprender.”

A interpretação proposta por Peterson guarda relativo silêncio sobre a razão exata pela qual Abel aprende e prospera. “David and Goliath”, de Malcolm Gladwell, propõe uma resposta possível. Armado com pedras e uma funda, um bom pastor é um fundibulário que defende suas ovelhas de leões e ursos (1 Samuel 17:36). “Imagine-se diante de um arremessador de beisebol da Primeira Liga que se prepara para jogar uma bola de beisebol contra sua cabeça”, escreve Gladwell. “Enfrentar um fundibulário era assim, só que não era uma bola feita de cortiça e couro que era arremessada, mas uma pedra sólida.” Abel aprendeu a defender as ovelhas e a se defender. Para quem já matou leões e ursos, um irmão mais velho não chega a ser muito intimidante. Em lugar de fazer o papel de vítima, Abel se torna um guerreiro.

Enquanto isso, Caim, no espaço seguro que ocupa, arando a terra perto de casa, não desenvolve autoconfiança ou a habilidade no uso de métodos violentos de proteção. “Ao que tudo indica”, escreve Peterson, “Abel encarava a vida com confiança. E mais: era uma pessoa genuinamente boa. Todo o mundo sabia disso. Ele merecia sua boa fortuna. Tudo isso era mais razão ainda para invejar e odiá-lo.” A inveja de Caim se intensifica.

“Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos de seu rebanho e das gorduras dele” (Gênese 4:4). Alguns leitores modernos talvez desprezem a ideia do sacrifício, encarando-o como uma prática supersticiosa de selvagens primitivos, mas Peterson faz uma interpretação radicalmente diferente. Nosso próprio sofrimento é inegável, então o que podemos fazer para diminuí-lo?

“Se você quiser que as coisas sejam melhores no futuro, fará sacrifícios no presente”, ele escreve.

Os humanos projetam sua existência no futuro; logo, podem agir agora para melhorar seu futuro. “É nossa consciência da possibilidade de tragédia e sofrimento futuros que nos motiva a fazer sacrifícios no presente, para podermos reduzir a ansiedade, incerteza e dor desnecessárias que nos aguardam.” Longe de serem evidências de superstição primitiva, “os sacrifícios que se faziam a Deus eram precursores dramáticos da ideia psicológica do sacrifício que temos todos nós, pessoas civilizadas no mundo moderno.”

Fazer sacrifícios é humano, e fazer sacrifícios em nome do bem maior significa agir com sabedoria humana. “As pessoas modernas não deixaram de fazer sacrifícios a Deus, independentemente do que possam pensar”, escreve Peterson. “O simples fato de acreditamos que trabalho e disciplina nos trarão sucesso é uma reafirmação precisa, embora abstrata e refinada, de ideia de que Deus dará sua graça ao indivíduo que faz a oferenda correta.”

“E o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons” (Gênese 4:5). Como Santo Agostinho em “A Cidade de Deus”, Peterson nota que não é dita a razão por que Deus dá preferência ao sacrifício oferecido por Abel. Essa ausência de explicação universaliza a mensagem da história. Frequentemente não sabemos por que razão nossos sacrifícios não produzem frutos. Podemos nos esforçar para alcançar um fim, trabalhar arduamente, fazendo uso de todos os meios e incorrendo em grandes custos, e, mesmo assim, todo nosso esforço pode dar em nada.

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“Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido” (Gênese 4:5). Peterson comenta: “Ele sente inveja e amargura, e não é para menos. Se uma pessoa fracassa e é rejeitada porque se negou a fazer qualquer sacrifício, isso pelo menos é compreensível. A pessoa pode ficar ressentida e vingativa, mesmo assim, mas, em seu íntimo, sabe que ela própria é a culpada. A consciência de sua culpa geralmente limita seu sentimento de indignação. Mas é muito pior se a pessoa abriu mão dos prazeres do momento, se ela se esforçou, se labutou arduamente, e ainda assim o resultado não foi o desejado, se ela foi rejeitada apesar de seus esforços. Quando é assim, seu trabalho – seu sacrifício – foi em vão. Nessa situação, o mundo parece escurecer e a alma se rebela.” Como Deus reage à aflição de Caim?

“O Senhor disse-lhe: ‘Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te” (Gênese 4:6). Deus sugere que, se Caim agir corretamente, ele terá êxito. O mundo não está contra ele. De fato, o Criador do mundo está tentando ajudá-lo. Caim pode fazer alguma coisa para sair dessa situação indesejada. Ele não é uma vítima impotente. Deus lembra a Caim de sua liberdade. Ele pode fazer a opção de se aprimorar e aprimorar o mundo.

Deus diz a Caim: “Mas, se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te: mas, tu deverás dominá-lo” (Gênese 4:7). A interpretação que Peterson faz desse trecho remete à de São João Paulo II no “Evangelium Vitae”:

Embora prefira a oferenda feita por Abel, Deus não interrompe seu diálogo com Caim. Ele o admoesta e o lembra que ele é livre diante do mal: o homem não está predestinado a cometer o mal, de modo algum. É verdade que, como Adão, ele sente a tentação da força perversa do pecado que o espreita à porta de seu coração, como uma besta selvagem pronta para agarrar sua presa. Mas Caim continua livre diante do pecado. 

Caim pode fechar a porta na cara da fera, mesmo agora. Ele pode aprender a ser um fundibulário. Pode tomar as rédeas de sua vida nas mãos, fazer os sacrifícios corretos e restaurar a ordem. “Essa resposta evidentemente não agrada a Caim”, explica Peterson, e prossegue:

Se sua vida virou uma catástrofe e você critica Deus por criar um universo que permite que ocorram coisas assim, a última coisa que você quer ouvir é que isso é tudo sua culpa, que você precisa se endireitar e passar a agir corretamente, e mais, não se queixar da natureza do ser. Mas é essa a resposta que Caim recebe. 

A ira de Caim se converte em raiva da injustiça do universo, raiva de Deus. Se pudesse, Caim destruiria o universo. Se pudesse, destruiria Deus. Ele destruirá Abel, porque isso ele pode fazer.

“Caim disse então a Abel, seu irmão: ‘Vamos ao campo’” (Gênese 4:8). Caim leva Abel para um lugar isolado, longe do resto da família. Ele sabe que Abel, perito no uso da violência contra predadores, poderia matá-lo. Caim arrisca sua própria destruição para cometer homicídio premeditado.

“Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o” (Gênese 4:8). Em vez de imitar o exemplo de seu irmão, Caim o elimina. Nas palavras de Peterson, Caim comete “fratricídio, assassinando alguém que não apenas é inocente, mas é ideal e bondoso. É um homicídio cometido conscientemente para ferir o criador do universo.” Peterson explica que essa malevolência contra os inocentes, os jovens e os bons é reproduzida em vários massacres cometidos em escolas.

“O Senhor disse a Caim: ‘Onde está teu irmão Abel?’”. É claro que a pergunta não diz respeito à localização física de Abel – é um convite a Caim para tomar consciência do mal que cometeu e confessá-lo.

Caim responde a Deus: “Não sei! Sou porventura eu o guarda de meu irmão?” Em vez de confessar sua culpa humildemente, Caim mente e deixa entender que Deus foi desmedido por ter feito a pergunta. Para completar os pecados citados por Peterson, São Basílio de Cesareia resume os modos como Caim errou:

O primeiro pecado é a inveja devido à preferência por Abel; o segundo é a malícia, por ele ter dito a seu irmão “vamos ao campo”; o terceiro é o homicídio, uma perversidade adicional; o quarto, o fratricídio, é uma iniquidade ainda maior; o quinto é o fato de ele ter cometido o primeiro homicídio e dado um mau exemplo para a humanidade; o sexto mal é o fato de ele ter causado dor a seus pais, e o sétimo é ter mentido a Deus. 

O vício capital da inveja dá lugar às suas consequências.

E o Senhor disse: “Que fizeste: Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra. De ora em diante, serás maldito e expulso da terra, que abriu sua boca para beber de tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, ela te negará os seus frutos. E tu serás peregrino e errante sobre a terra.” 

Depois de destruir seu ideal, Caim percorre a terra como fugitivo sem lar, alienado de seus pais, seu trabalho e sua terra natal.

Com pena de si mesmo, o assassino se descreve como a vítima. “Caim disse ao Senhor: ‘Meu castigo é grande demais para que eu o possa suportar’.” Como Raskolnikov em “Crime e Castigo”, Caim exemplifica a situação infernal em que se encontra o assassino e também o príncipio de Santo Agostinho de que “o castigo pelo pecado é o pecado”.

“O Senhor pôs em Caim um sinal, para que, se alguém o encontrasse, não o matasse. Caim retirou-se da presença do Senhor e foi habitar na região de Nod, ao oriente do Éden” (Gênese 4:15-16). Deus intervém para evitar o que poderia ter se tornado o início de um ciclo de violência. Irmão mata irmão. Amigos de Abel matam Caim. Amigos de Caim matam amigos de Abel, e assim por diante.

Caim e Abel representam respostas rivais à condição humana. A consciência de si dá lugar à comparação social. A comparação social dá lugar ao sofrimento. O sofrimento ou pode levar ao autoaprimoramento ou à inveja e seus pecados. Peterson escreve:

Um irmão, Abel, representa um exemplo inicial do salvador que redime, uma encarnação genuína e voluntária do Logos. O outro, Caim, se recusa a assumir sua responsabilidade, usa sua dor e seu medo existenciais para justificar essa recusa e torna-se selvagem, destrutivo, corrupto e assassino. Assim são apresentados dois caminhos morais como modos primários de ser ético em um mundo feito da interação entre caos e ordem. 

Na visão de Petersen, “a história de Caim e Abel é uma manifestação da história arquetípica dos irmãos hostis, o herói e o adversário: os dois elementos da psique humana individual, um deles voltado ao alto, para o Bem, e o outro para baixo, para o próprio Inferno”. Peterson ecoa as palavras de Santo Agostinho, que enxergava Abel como cidadão da Cidade de Deus e Caim como cidadão da infernal Cidade do Homem.

É fácil nos retratarmos como vítimas inocentes, semelhantes a Abel. Mas Peterson considera que qualquer pessoa pode ser Caim. As lições deixadas pelo Arquipélago Gulag de Solzhenitsyn e o experimento de Milgram sugerem que ele tem razão.

Christopher Kaczor é professor de filosofia na Loyola Marymount University e autor de “The Seven Big Myths about the Catholic Church”, entre outros livros. 

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