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Especialistas apontam tendências no combate à corrupção, nas liberdades individuais, na religião e na cultura para o ano que se inicia.
Especialistas apontam tendências no combate à corrupção, nas liberdades individuais, na religião e na cultura para o ano que se inicia.| Foto: Pixabay

2020 foi o ano que colocou todas as “previsões” abaixo: basta dar um Google nos usuais textos sobre “o que esperar do ano que se inicia“ publicados em dezembro do ano passado. A pandemia do novo coronavírus não apenas ceifou mais de 1,7 milhão de vidas pelo mundo afora, como chacoalhou sistemas de saúde, impactou profundamente a economia mundial, desvelou prioridades políticas e, claro, gerou bate-boca nas redes sociais.

Ainda assim, os balanços de fim de ano ajudam a apontar para o futuro. E, embora a força do imprevisível seja o aprendizado deste meses atípicos, algumas decisões, medidas e tendências surgidas em 2020 podem ajudar a apontar caminhos para os próximos doze meses. A Gazeta do Povo conversou com especialistas de diferentes áreas sobre o que, afinal, se pode esperar no ciclo que se abre nesta sexta-feira.

Combate à corrupção

Uma das principais bandeiras do governo Jair Bolsonaro (e de muitos parlamentares e governadores eleitos no esteio do líder do Executivo em 2018), a luta contra a corrupção enfrentou barreiras significativas no contexto da pandemia. Para o procurador de Justiça e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Roberto Livianu, as perspectivas para 2021 não são nada boas.

“Muita gente imaginava que a pandemia iria arrefecer os ânimos dos corruptos, mas isso não aconteceu. Ficou provado que eles roubam na normalidade, na pandemia, no funeral, em qualquer situação. Roubam em cima de cadáveres, e essa é uma lição que fica. Ocorre que o fato de as pessoas estarem trancadas em casa dificulta a ação social no Congresso e a resistência democrática. Sem vacinação em massa, a agenda fica comprometida”, avalia.

Livianu, que é presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, acredita também que algumas decisões tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro podem dificultar a luta contra a corrupção em 2021, como a MP 966, que isenta os agentes públicos de responsabilidade por atos ilegais cometidos durante a pandemia; a escolha dos aliados Jorge Oliveira, para o comando do Tribunal de Contas da União (TCU), e Augusto Aras para a chefia da Procuradoria-Geral da República; e do ministro Kássio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal (STF).

“Há prenúncios de retrocesso. O caminho para melhorar o combate à corrupção está disponível, falta  vontade política: é necessário reorganizar os partidos para que respeitem as regras do jogo democrático, que haja mudança na punição ao caixa dois eleitoral - hoje, só se pune o contador, ao invés de alcançar os grandes responsáveis”, sugere.

Livianu avalia também que a Operação Lava-Jato ganhou respaldo, a despeito das medidas para enfraquecê-la. “A Lava-Jato é uma força tarefa organizada no Ministério Público. Contando que seja uma estrutura capilarizada e independente, podemos criar outra no lugar Não importa que agora seja a ‘Operação Limpa Tudo’, importa que seja legitimada pela sociedade e não seja ligada a um núcleo de poder”.

Liberdade e conservadorismo

2020 também pôs à prova alguns dos preceitos mais importantes da filosofia liberal e conservadora, tanto do ponto de vista econômico quanto da proteção das liberdades individuais diante das medidas de isolamento e prevenção à Covid-19 estabelecidas por prefeitos e governadores.

“O liberalismo nunca foi tão necessário quanto agora. No âmbito econômico, por exemplo, há questões centrais que os liberais continuam trazendo à mesa. Uma vez passada a pandemia, é hora de voltar a falar de reforma tributária e de tornar o Brasil um ambiente minimamente convidativo para o empreendedor”, diz o economista e filósofo Joel Pinheiro da Fonseca.

Se o liberalismo saiu ‘chamuscado’ da relação com o governo em 2020, o conservadorismo mais ainda, avalia Fonseca. “Em alguns círculos, ser conservador passou a empreender uma defesa irrestrita ou até bajulação do governo. Mas os valores continuam relevantes”, explica. “Acima de tudo, penso que conservadorismo é valorizar que existe ordem, existem regras na sociedade. Sem isso, a sociedade se degenera muito fácil, seja por um poder central ou por indivíduos completamente livres e sem nenhum freio. Acredito que em 2021 vamos ver uma tentativa de resgatar este melhor lado, ainda que de forma incipiente”.

Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, Catarina Rochamonte avalia que o debate sobre ceticismo, prudência e respeito às instituições deve seguir em voga em 2021, por conta dos acontecimentos deste ano. Não se trata de reacionarismo, mas de uma coisa mais sutil que precisa ser trazida ao debate público. Pode-se debater ao mesmo tempo, por exemplo, os problemas do gabinete do ódio e o autoritarismo do STF contra essa gente. Ideias ruins se combatem com ideias boas”, avalia.

Polarização

Desde 2018, a “polarização” - o constante choque de extremos nas redes sociais e nos meios de comunicação - não dá sinal de trégua. Para alguns especialistas, contudo, o próximo ano pode ser de mais civilidade. O otimismo de Catarina, por exemplo, está baseado nas eleições municipais, cujo resultado foi de pouco destaque tanto para o bolsonarismo quanto para a esquerda. “Notou-se uma preferência pelo centro: não o ‘centrão’ fisiológico, pouco republicano, mas de pessoas que sabem buscar o que há de melhor na esquerda e na direita”, explica.

“Há uma diferença entre o que o bom senso recomenda e o que a gente acredita que vai acontecer com base nas evidências”, avalia o professor Rodrigo Jungmann, doutor em Filosofia pela Universidade da Califórnia, mais cético com relação ao arrefecimento dos ânimos.

“Com um governo de direita descambando para o extremo, seria de se esperar, em nome do país, que as outras forças políticas tendessem ao centro, na tentativa de formar uma frente ampla para combater os excessos. Não vejo sinais de que um partido como o PT, que tem tanta dificuldade de renunciar ao protagonismo, tenha a grandeza de se aliar a uma grande frente. Por outro lado, ainda que o PSOL seja bem diferente, continua a ser o partido da lacração, do politicamente correto, que traz pautas que são legítimas, mas mal conduzidas a ponto de se tornarem risíveis”.

Durante a pandemia, os discursos polarizados tomaram conta até mesmo dos ambientes religiosos, tão divididos quanto o “mundo laico” perante temas como ciência, vacina, medidas de isolamento e as ações do governo ao longo da crise. Para o teólogo e pastor Jonas Madureira, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a polarização tende continuar em 2021, mas deve se converter, aos poucos, em conversas civilizadas e essenciais.

“Sobretudo por conta da influência dos neopentecostais, adeptos da ‘teologia da batalha’ (a constante luta do bem contra o mal), houve uma migração desta lógica do campo espiritual para o político, e penso que a experiência da pandemia coloca em xeque essas apostas. Diante do cenário, a questão que surge é: vocês vão continuar com esse jogo? Há uma situação que demanda atenção”, afirma.

Para Madureira, a necessidade de encontrar soluções práticas entre os discursos polarizados pode trazer novidades, a começar pelo enfrentamento ao autoritarismo. “Trata-se de um desafio comum às igrejas evangélicas. Elas serão forçadas a amadurecer politicamente”.

“Vejo 2021 com otimismo não porque tudo vá se resolver, mas porque a igreja terá que avançar na distinção entre pluralismo e pluralidade. Os totalitarismos não devem ser aceitos. Os evangélicos são heterogêneos e não se pode permitir que haja um grupo dizendo que é o único correto, ‘e quem discorda é progressista’."

Cultura

2021 pode não ser um ano eleitoral, mas é, por assim dizer, a “antessala” da disputa que já começa a ganhar contornos em 2020. Além disso, o novo ano marca a “véspera” de uma comemoração que tem tudo para pautar o debate cultural no país até as eleições. Trata-se do aniversário de 200 anos da Independência do Brasil.

Neste contexto, a identidade nacional deve ser trazida à baila, acredita o historiador Manuel Rolph Cabeceiras, da Universidade Federal Fluminense (UFF). “A efeméride da Independência levou à realização da Semana de Arte Moderna em 1922 e foi amplamente utilizada pelos governos militares para refletir sobre a identidade brasileira. Este debate costuma envolver todo o universo cultural - museus, bibliotecas, arquivos etc. 2021 será o ano em que começaremos a nos perguntar: quem somos nós? O que é ser brasileiro?”

Diante deste cenário, Cabeceiras avalia que o novo ano ano deve preparar o terreno para o debate. “Diante do contexto de extrema ideologização em que vivemos, certamente a agenda identitária estará presente para acentuar as divisões do país. Do outro lado, o reacionarismo saudosista com loas à monarquia. Teremos que reagir a isso a propor algo diferente, que venha do povo. Minha expectativa é que possamos insistir naquilo que nos une, especialmente porque o ano de 2021 será de grande pressão sobre a soberania nacional”.

Vale lembrar que todo este debate se dará em plena era dos millennials - a geração nascida entre 1985 e 1995, afeita à cultura do cancelamento. “Há uma imensa falta de paciência para digerir conteúdo, pouca capacidade de aprofundamento e muito conhecimento de superfície. A reconsideração das humanidades como forma de equilibrar e digerir o excesso de informação é uma ferramenta a ser cultivada no ano que vem”, avalia Catarina Rochamonte. Em meados de março, um mantra comum nas redes era o de que “sairíamos de 2020 melhores”. Está dada a largada da prova.

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