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Homens de máscara em Bangladesh
Cidadãos de máscara de tecido e cirúrgica (os dois tipos considerados no estudo da revista Science) nas ruas de Dhaka, capital de Bangladesh, em 7 de julho de 2020, após um lockdown.| Foto: Bigstock / Asif Himel

Na última quinta-feira (15) a revista científica Trials, pertencente ao grupo Springer Nature, publicou um artigo que reanalisou o mais rigoroso estudo já feito a respeito da eficácia das máscaras para barrar ou diminuir a transmissão do vírus da Covid-19. A reanálise concluiu que não se pode afirmar que o uso de máscaras teve um efeito significativo, ao contrário do que se concluiu no estudo original. A razão disso é que o estudo original tomou decisões de procedimento que criaram vieses nos resultados que comparam o grupo que usou máscaras e o grupo que não usou máscaras.

O estudo reanalisado, feito em Bangladesh e publicado na revista Science, havia indicado em dezembro de 2021 que máscaras cirúrgicas e de tecido tinham alguma eficácia para barrar a transmissão do vírus da Covid-19. A eficácia seria uma redução de cerca de 10% no número de sintomáticos e infectados entre os que usaram máscaras. A Gazeta do Povo cobriu o estudo na época. O primeiro autor do estudo foi Jason Abaluck, professor de economia na Universidade Yale.

A intenção do estudo de Abaluck era escolher ao acaso quem usaria máscara e quem não usaria, de forma que os resultados não refletissem, por exemplo, um temperamento mais zeloso de quem quis usar máscara comparado a quem não quis. Uma pessoa zelosa toma outros tipos de precaução, de forma que a diferença nas taxas de infecção seria o comportamento zeloso, e não a máscara. Para evitar esse tipo de fator confundidor, os participantes foram distribuídos por sorteio. Esse tipo de estudo é chamado de “ensaio controlado e randomizado” (ECR). “Controle” é o grupo que não recebe a intervenção: neste caso, os sem máscara.

Dificuldades metodológicas

Abaluck e seus coautores tinham à sua disposição 340 mil indivíduos nativos de Bangladesh para distribuir ao acaso entre o grupo com máscara e o grupo sem máscara. Se fosse este o caso, seria uma amostra excelente e as conclusões seriam robustas. Mas a primeira dificuldade é que, em vez disso, foram 600 vilas as distribuídas ao acaso para ter campanha para uso de máscara ou não. Na verdade, 300 pares, em que uma era posta no controle e outra no grupo de tratamento. Isso tem o efeito de reduzir o tamanho amostral efetivo, que se refere a quantas entidades são de fato distribuídas ao acaso. Para piorar, 14 pares de vilas foram excluídos por causa de falta de cooperação do governo ou observação insuficiente, então o número restante é de 286 pares.

Idealmente, os pesquisadores não sabem quem recebeu o tratamento ou não, e, quando o que está sendo avaliado é uma droga, por exemplo, além do grupo controle há também um grupo que recebe uma pílula inerte (placebo). Quem recebe as pílulas também não saberia se são placebo ou não. Assim, os pesquisadores ficam “cegos” e os participantes também, por isso esse protocolo é chamado de “duplo cego”. No caso do estudo das máscaras, não houve um grupo placebo. O estudo empregou funcionários para dar conta do trabalho em Bangladesh. Os funcionários foram “cegados” quanto ao mapeamento das vilas e casas que receberiam máscaras, em um primeiro passo, mas num segundo passo não foram “cegados” pois precisavam pedir consentimento das pessoas de cada lar.

A reanálise observa que essa decisão criou um desequilíbrio entre os dois grupos do estudo. No primeiro passo, os funcionários mapearam uma margem maior de vilas para o grupo de tratamento. Foi observado, portanto, uma diferença de comportamento na direção do grupo que recebeu máscaras, apesar da alegação de que os funcionários estavam escolhendo às cegas. No segundo passo, que o estudo admite que não foi às cegas, o consentimento foi obtido em um número maior de lares, e eram lares com mais pessoas, aumentando o desequilíbrio nos resultados. Por exemplo, os lares das vilas distribuídas para o grupo sem máscara foram registrados como “ninguém em casa” 1,4 vez mais que os do grupo com máscara, e 2,2 vezes mais com ausência dos participantes do estudo quando os funcionários visitavam os lares.

Os autores da reanálise concluem que “a diferença em consentimento obtido pelos funcionários não-cegados está entre as diferenças mais significativas entre as diferenças nos resultados entre tratamento e controle”. Em outras palavras, o favorecimento proposital ou não dos funcionários na observação das pessoas com máscaras foi uma das maiores influências sobre os resultados entre quem usou máscara ou não.

Dependência de relatos voluntários

Para piorar as coisas, há mais uma fonte de tendenciosidade no estudo: os casos positivos de Covid foram baseados em relato próprio dos participantes sobre os seus sintomas. Uma vez acontecendo esse relato voluntário, acontecia o teste sanguíneo para confirmação. Portanto, o estudo nada pode dizer sobre Covid assintomática, e correu o risco de seu resultado ser influenciado pelos usuários das máscaras relatando menos seus sintomas que os não-usuários.

Como conta a reanálise, o número bruto da diferença observada foi de apenas 20 casos: foram 1106 indivíduos sintomáticos com infecção confirmada por teste no grupo sem máscara e 1086 no grupo com máscara. Dado o número grande de indivíduos, se poucos sentissem uma segurança de usar máscara a ponto de presumir que uma leve tosse não poderia ser Covid, decidindo assim não relatar sintomas aos funcionários do estudo, os resultados já estariam invalidados.

Dado tudo isso, os cientistas que fizeram a reanálise do estudo de Bangladesh concluíram que as taxas observadas de pessoas sintomáticas e de sintomáticas com confirmação por teste “são explicadas de modo mais plausível por flutuações do acaso”. Além disso, numa lista de problemas que tipicamente afetam a confiabilidade de ECRs para estabelecer relações de causa e consequência, o estudo falhou em todos.

Nem tudo é fracasso: a reanálise reconhece que a campanha educativa de convencimento das vilas a aderir às máscaras foi eficaz. Mais eficaz que tentativas de imposição, como a Gazeta do Povo contou em sua cobertura original. Os autores da reanálise são Maria Chikina, do Departamento de Biologia Computacional e de Sistemas da Universidade de Pittsburgh, Wesley Pegden, do Departamento de Matemática da Universidade Carnegie Mellon, e Benjamin Recht, do Departamento de Engenharia Elétrica e Ciências da Computação na Universidade da Califórnia em Berkeley, todas as instituições nos Estados Unidos.

Exatamente como aconteceu em alguns estudos das drogas de tratamento precoce, uma falta de evidência suficiente de eficácia não é motivo suficiente para afirmar "prova" de ineficácia. O principal resultado da reanálise é que a hipótese de que máscaras não reduziram número de sintomáticos é mais provável que a hipótese de que reduziram. Outra comparação que pode ser feita com as drogas de tratamento precoce é que os mecanismos são importantes: se uma droga tem ação antiviral mostrada em laboratório, isso eleva sua chance de funcionar. Se uma máscara tem capacidade de filtragem de partículas comparáveis ao vírus, como é o caso das máscaras PFF2 e N95, isso eleva sua chance de funcionar, por isso cirurgiões e outros profissionais de saúde não estão errados em continuar usando máscaras. O que não fez sentido foi impor máscaras à população.

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