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Graffiti em Caracas, 22 de fevereiro de 2019. Foto: Ronaldo SCHEMIDT / AFP| Foto: AFP

Nas redes sociais ficou patente o espanto provocado pela notícia de que um miliciano morava no mesmo condomínio do presidente da República, no Rio de Janeiro. A questão é relativamente simples. Ronnie Lessa tinha uma aposentadoria módica de sargento reformado PM, mas era sustentado por muita gente. E não falo de mandantes de crimes de pistolagem – negócio no qual, agora se sabe, Lessa gozava de grande reputação profissional.

As milícias têm fonte de renda diversificada. Vendem cigarros contrabandeados, sinal pirata de TV a cabo e monopolizam a distribuição de botijões de gás nas áreas sob seu controle. Mas nada rende mais dinheiro que a venda de drogas. Milicianos e traficantes geralmente lutam entre si, mas são imagens espelhadas. São bandidos que brotaram em um mesmo caldo de cultivo de corrupção e violência.

O que permitiu a Lessa ter uma casa no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro e uma mansão en Angra dos Reis é a receita do tráfico. Muita gente que ficou espantada com a vida de luxo do ex-policial se esquece que cada cigarro de maconha fumado na beira da praia ajudou a pagar a conta. Pagou também as armas e a munição usada para matar a vereadora Marielle Franco, há um ano.

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Com a prisão de Lessa, a pergunta “Quem matou Marielle?” parece ter sido respondida, pelo menos parcialmente. A investigação ainda titubeia para explicar as motivações do crime, que também resultou na morte do motorista, Anderson Pedro Gomes. Ainda falta, também, chegar ao um possível mandante. Como o caso não foi encerrado, talvez valha outro questionamento: “Quem ajuda a matar Marielles?”

Este é um raciocínio surrado, mas Lessa é a prova de que os usuários de drogas contribuem de forma secundária para o crime. Se ficar confirmado que Lessa puxou o gatilho, ele não terá sido o único. Aliás, Marielle e Anderson não serão as únicas vítimas de crimes de responsabilidade coletiva. Em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a questão do porte e consumo de drogas são tratados como questões de garantia à privacidade já que o consumo não causa mal algum a não ser ao próprio usuário. Mas de onde vem o dinheiro que paga a conta dos traficantes e da milícia? “Quem matou Marielle?”

Não só Marielle, aliás. Quem matou ou ajudou a matar 63.880 pessoas em 2017? Agentes de segurança estimam que pelos 80% desses homicídios registrados no Brasil podem ter algum tipo de conexão com o tráfico de drogas. Os defensores da legalização das drogas alegam que a simples descriminalização resolveria o problema, mas os exemplos geralmente apontados não provam isso.

As milícias são uma força irregular que se organizam à margem do Estado. No caso do Rio, elas surgiram como antídoto ao narcotráfico, preenchendo vazios estatais. Desde o embrião, elas eram um movimento ilegal cujas raízes no submundo se tornaram tão profundas que o “remédio” se tornou tão letal quanto a doença. A luta da milícia contra o tráfico é pelo domínio territorial e os benefícios decorrentes dele. Desde o controle dos pontos de vendas de drogas ao provimento dos serviços monopolizados pelo crime. Não há mocinhos nessa batalha.

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O venezuelano Hugo Chávez, que era egresso do exército e já havia tentado um golpe militar em 1992, sabia que somente os seus colegas de farda poderiam criar algum tipo de movimento que o apearia do poder. O que fez então? Bagunçou as Forças Armadas. Chávez empregou a tropa em atividades de narcotráfico e transformou os seus generais em membros de uma organização criminosa que passaria a ser conhecido internacionalmente como Cartel dos Sois, em alusão as insígnias que os homens de mais alta patente trazem sobre os ombros.

Por tabela, Chávez criou milícias. Minou o respeito e a integridade das forças oficias criminalizando-as. Com isso, substituiu muito de suas atribuições por quadros irregulares. São os colectivos, motorizados, e a “Frente Francisco de Miranda” algumas das principais forças paralelas que hoje sustentam o chavismo. Esses grupos são acionados para intimidar eleitores, em períodos eleitorais; são engajados com repressores de protestos e controlam a distribuição de programas sociais, como cestas-básicas. As milícias bolivarianas são uma força fundamental de sustentação do chavismo. Talvez mais importante que as próprias Forças Armadas.

Na semana passada, a Venezuela sofreu o maior apagão da história. O colapso do sistema elétrico atingiu mais de 90% da população e até hoje, sete dias depois, não foi restabelecido o serviço completamente. Nicolás Maduro – que já fora definido como ditador e agora é conhecido como o Usurpador – acusou a oposição de atentado e disse que seu país foi vítima de um ataque cibernético.

A tragédia, entretanto, pode ter um roteiro mais simples. Na última década, a geração de energia elétrica tem caído gradualmente diante do sucateamento das usinas do país. Em Guri, onde está a principal delas, a falta de manutenção havia levado os venezuelanos a desativarem onze das vinte turbinas. Militares relatam que, no momento um apagão, uma equipe de técnicos cubanos dava suporte aos venezuelanos na tentativa de reestabelecer o funcionamento de algumas turbinas que estavam inativas. A medida era considerada de urgência devido ao pico de consumo gerado pela ativação de uma siderúrgica de processamento de bauxita no dia anterior.

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Os cubanos trabalhavam em uma das turbinas quando deu início a uma pane generalizada que levou a parada de outras máquinas. Subestações foram para os ares e o país caiu nas trevas. Na guerra de versões em um país onde não há transparência nos atos, Maduro passou a acusar os Estados Unidos de liderar uma “guerra elétrica” contra a Venezuela. Mas como de costume, pode se esforça para esconder a verdadeira ingerência. O Estado venezuelano se ausentou de muitas de suas funções e entregou aos cubanos. Em certa medida, Havana é a milícia dentro do governo da Venezuela. Controla a inteligência de Estado, os serviços de alfândega e imigração, além da própria guarda presidencial.

A possível falha dos cubanos lembra outro episódio que selou o destino dos venezuelanos. Em junho de 2011, os cubanos foram escolhidos para extirpar um tumor de cólon do então presidente Hugo Chávez. Fizeram mal o trabalho e largaram para trás tecidos cancerígenos. Uma segunda cirurgia foi realizada dez dias depois para tentar corrigir o erro, mas ainda assim fizeram mal. O câncer reincidiu e Chávez viria a morrer em março de 2013. Chávez confiava mais na “milícia” cubana que se instalou no centro do seu governo que nos seus próprios compatriotas. Maduro é exatamente assim.

Os milicianos que mataram Marielle, as milícias que são responsáveis pela repressão política na Venezuela e a milícia-estatal cubana que sequestrou o chavismo têm origens distintas, modos de ação diferentes e impactos totalmente diversos. Mas todas brotaram fracasso do Estado e na debilitação das instituições. Quem se droga financia o crime. Quem faz vista grossa para o problema o fortalece. Quem pensava que Chávez era um palhaço inofensivo ignorou a sua capacidade de destruir um país. Quem acha que Jair Bolsonaro é o único a ter um bandido como vizinho pode estar muito enganado.

*Leonardo Coutinho é jornalista especializado em América Latina e defesa. É autor do livro “Hugo Chávez, o Espectro: Como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global”.

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