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Ciudade Cayalá, na Guatemala: algumas ruas fechadas ao trânsito, calçamento de pedra e prédios brancos que evocam ao estilo colonial espanhol
Ciudade Cayalá, na Guatemala: algumas ruas fechadas ao trânsito, calçamento de pedra e prédios brancos que evocam ao estilo colonial espanhol| Foto: Rene Hernandez/Wikimedia Commons

No sempre criativo universo do Twitter, o perfil Architects against Humanity (Arquitetos contra a Humanidade) tem ganhado seguidores com seus ataques persistentes — e bem-humorados — à classe dos arquitetos profissionais. Uma postagem típica mostra um prédio simples e esteticamente agradável ao lado de um monstrengo modernista. A legenda diz: “Construído por um artesão X Construído por um arquiteto”.

Embora a página use um tom humorístico, a provocação central é consistente: seriam os arquitetos profissionais os responsáveis pela aparente falta de critérios estéticos nas construções contemporâneas? E seria essa parte da explicação para a feiura que predomina nas grandes cidades brasileiras?

A hipótese faz sentido. Enquanto o construtor tradicional se baseava na experiência acumulada — aquilo que o teste do tempo provou funcionar — e tentava repeti-la da melhor forma possível, com adaptações graduais conforme a necessidade, a arquitetura profissional — e acadêmica — premia a inovação. A única regra incontestável é a necessidade de se fazer algo novo.

De fato, a maior parte do tesouro arquitetônico nacional foi colocada de pé muito antes do surgimento da Arquitetura como uma disciplina independente, separada das Artes e também da Engenharia. Até 1930, o Brasil não tinha cursos superiores de Arquitetura. A Escola de Arquitetura de Belo Horizonte, mais tarde incorporada à UFMG, foi a primeira da América do Sul.

Hoje, uma análise simples dos trabalhos produzidos na academia ou dos projetos assinados por arquitetos aponta para a conclusão de que o estilo que se desenvolveu e se consolidou nos quatro primeiros séculos do país (e que pode ser resumidamente chamado de colonial, embora também inclua o barroco e partes do neoclássico) é antiquado e não tem qualquer contribuição relevante a oferecer. Hoje predominam as casas e prédios com formas geométricas confusas, sem ornamentos, frequentemente com o telhado (sem telhas) achatado, janelas escassas (graças ao ar-condicionado) e zero preocupação com uma integração adequada à paisagem em redor.

E, no entanto, turistas continuam abarrotando as ruas de cidades cujo principal atrativo é a arquitetura tipicamente colonial, como Paraty (RJ), Ouro Preto (MG) e Goiás (GO). Nos centros antigos dessas cidades, o que se vê são ruas estreitas em vez de vias expressas, prédios elegantes e em harmonia com a vizinhança, e uma disposição urbana que convida ao passeio a pé — dentre outras razões, porque até mesmo as carroças eram raras quando essas cidades foram fundadas.

É evidente que as mudanças sociais e tecnológicas se refletem na arquitetura. A invenção do carro, a redução na taxa de natalidade, o aumento no grau de escolarização (e urbanização), tudo isso deixa marcas na cidade e em suas ruas. O charme da cidade de Goiás, que é conhecida como Goiás Velho e foi a capital goiana por dois séculos, não apaga o fato de que o progresso é bem-vindo: o Palácio dos Arcos, moradia de dezenas de governadores até a inauguração de Goiânia, em 1937, não tinha nem mesmo banheiro interno: apenas a “casinha” do lado de fora.

Mas o que houve no Brasil foi muito mais do que o fruto do progresso da sociedade: foi um esforço deliberado por recriar a arquitetura e o urbanismo. Um rompimento com as tradições do passado, especialmente com a ascensão dos então jovens arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, na metade do século 20. Não por acaso, naquele período vieram abaixo construções importantes, como o Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, e edificações nos centros históricos das cidades brasileiras. São Paulo, metrópole com quase 500 anos de história, tem raríssimas edificações originais de seus três primeiros séculos. Costa e Niemeyer queriam uma arquitetura radicalmente nova, e de alguma forma conseguiram. Brasília é, em tudo, a anti-Paraty, ou anti-Goiás Velho: uma cidade de distâncias monumentais, onde o carro é protagonista e os blocos residenciais lembram construções soviéticas. E, apesar do estilo arquitetônico diferente, é possível dizer que projetos como o da Barra da Tijuca nasceram de uma tentativa de rejeitar o modelo tradicional de cidade.

Novo Urbanismo: uma reação

Os problemas que atingem as cidades brasileiras em meados do século 20 também se manifestaram em metrópoles europeias e americanas: com a popularização do automóvel e a modernização das técnicas de construção, nasceram os subúrbios — afastados do centro e feitos para famílias com carros, que não viam necessidade do modo de vida tradicional. Os centros históricos começaram a definhar. As cidades ganharam “lacunas” e  deixaram ser espaços contínuos. Em uma reação a esse modelo, nasceu o Novo Urbanismo, que propunha um retorno a um espaço humano mais denso e onde as pessoas tivessem mais opções de interagir umas com as outras de forma orgânica.

O Novo Urbanismo ganhou força nos anos 1990 e tem até mesmo uma Carta de Princípios. O documento lista cinco fundamentos essenciais: os bairros devem ser diversificados em uso e em sua população; as comunidades devem ser desenhadas (também) para os pedestres; as cidades devem ser definidas por espaços compartilhados; e, por fim, a arquitetura e o paisagismo urbanos devem "celebrar a história, o clima, a ecologia e as práticas de construção locais". Já em 1993, Andres Duany, um dos pais do movimento, já foi convidado a oferecer um curso sobre o Novo Urbanismo em Harvard.

O arquiteto e professor Alvin Holm, um entusiasta da tradição clássica, afirma que um retorno do estilo não é apenas possível, mas tem se tornado cada vez mais popular. Ele diz que o Instituto pela Arquitetura e Arte Clássicas (ICAA), organização fundada nos anos 1950 e da qual ele é um membro pioneiro, tem crescido de forma visível. “De um único escritório em Nova York, o ICAA passou a ter 15 unidades ativas ao redor dos Estados Unidos”, explicou ele à Gazeta do Povo. Holm também foi responsável pelo primeiro curso sobre o estilo clássico na Academia Nacional de Design dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. “Agora, várias gerações de meus estudantes estão ensinando os princípios e praticando o design clássico no país”, diz ele, que mantém um concorrido escritório na Filadélfia. Além disso, as ideias da arquitetura clássica estão gradualmente voltando aos currículos das faculdades — a Universidade Notre Dame, em particular, se tornou um centro de difusão desse estilo.

Embora ainda seja minoritária e não dê sinais de que vá se tornar dominante tão cedo, essa corrente tem dado frutos.

No estado americano da Flórida, um projeto recente tenta retomar princípios tradicionais da arquitetura e do urbanismo — sem que o visitante tenha a impressão de estar em uma reprodução cenográfica de época em um parque da Disney. Na região da Citrus Square, na cidade de Sarasota, todos os prédios têm três andares e permitem que donos de lojas ou funcionários morem logo acima de onde trabalham, reduzindo a necessidade do uso do carro (embora haja vagas de estacionamento à porta). Os seis estilos arquitetônicos usados no projeto emulam a variedade natural que emergiu ao longo do tempo em cidades europeias. Todos demonstram uma preocupação com normas clássicas de arquitetura. O projeto, que custou US$ 25 milhões, tem 37 pequenos prédios residenciais e cerca de 2.500 metros quadrados de lojas.

Outro bom exemplo vem de um lugar improvável: a Guatemala. Lá, um bairro inteiro chamado de Cidade Cayalá foi completamente construído com base em modelos clássicos, levando em conta a identidade da arquitetura local. A área tem algumas ruas fechadas ao trânsito, calçamento de pedra e prédios brancos que evocam ao estilo colonial espanhol, cuidadosamente harmonizado com prédios de colunas gregas. O espaço atrai turistas, mas também moradores interessados em viver em uma área feita para os seres humanos em vez de carros. O responsável pelo projeto foi o arquiteto luxemburguês Léon Krier, um dos principais nomes do Novo Urbanismo.

Brasil

No Brasil, os adeptos do Novo Urbanismo também existem. Em Pelotas (RS), o bairro Quartier atende a maior parte dos requisitos da Carta de Princípios. Em Pedra Branca, um bairro planejado em Palhoça (SC), os responsáveis pelo empreendimento também adotaram alguns fundamentos do Novo Urbanismo.

Mas ainda é muito pouco. Mesmo nas tentativas em curso, há uma certa negligência quanto ao respeito à história local. A casa tradicional brasileira com aquilo que tem de melhor — janelas amplas, varandas generosas, pé-direito alto e linhas graciosas, cercada por árvores de tamanhos diversos — parece ser menos popular do que modelos pré-fabricados que parecem se inspirar em seriados de TV americanos.

Além disso, de  forma geral, continuam se multiplicando no Brasil as cidades-dormitório, os bairros sem espaços adequados de convivência e os condomínios desenhados exclusivamente para quem possui carro. Parte da explicação passa pelas regulações governamentais e pela falta de arquitetos e urbanistas interessados em aplicar esses princípios. Mas a outra parte tem a ver com a demanda: simplesmente parece não haver um número suficiente de compradores de casas e apartamentos dispostos a viver em uma vizinhança onde predominam os princípios do Novo Urbanismo.

É uma aparente contradição: turistas brasileiros de classe média alta se encantam com as ruas estreitas de cidades medievais italianas, ou ainda com as construções coloniais de Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG). Mas a maioria deles parece optar por uma vida de condomínios horizontais ou verticais modernos, de onde só saem em seus carros e onde vivem protegidos por porteiros, cercas elétricas e incontáveis câmeras de segurança. “Muitas vezes, quem vai a Paris e se encanta com o fato de subir seis pavimentos a pé não aceita subir mais do que três para chegar ao próprio apartamento. Tem um certo modismo e fingimento”, diz o professor Frederico de Holanda, que ensina Teoria da Arquitetura e do Urbanismo na Universidade de Brasília (UnB).

Apesar do ceticismo quanto à popularidade do estilo mais tradicional de arquitetura, o professor concorda que as metrópoles têm o que aprender com locais como Pirenópolis (GO), repleta de casas geminadas de estilo colonial. “Não estamos delirando. Existe uma corrente cada vez mais forte de revitalização das áreas tradicionais. Não é para imitar o estilo das casas de Pirenópolis, mas reconhecer o fato de que a Rua Direita de Pirenópolis é configurada continuamente, sem afastamento lateral ou frontal”, exemplifica professor. “Existe toda uma corrente de arquitetos e urbanistas que não querem resgatar a casa colonial, ou copiar Outro Preto, mas resgatar certos princípios que cabem na contemporaneidade — como a retomada do uso do espaço público, compartilhado”, afirma ele.

Holanda acrescenta que é possível extrair o que há de bom em estilos arquitetônicos mais antigos sem copiá-los completamente. “A nossa obrigação é tentar captar nessa arquitetura pré-moderna o que ela tem de aproveitável e apropriado. Ninguém vai tentar fazer um pastiche”, diz.

No curto prazo, talvez  pouco provável que a arquitetura tradicional renasça no Brasil. Mas, de imediato, a aplicação de alguns de seus princípios faria muito bem às nossas cidades.

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