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Quem terá tido a ideia de colocar a mensagem “O trabalho liberta” num campo de trabalho escravo?
Quem terá tido a ideia de colocar a mensagem “O trabalho liberta” num campo de trabalho escravo?| Foto: Pixabay

“Pior história de racismo”, “grupo da humanidade mais vitimado por uma perseguição de cunho racial e político.” Se dissermos estas duas expressões numa universidade, ou numa redação de jornal comum, é certo que pensarão sem hesitar nos negros e na escravidão transatlântica. Mas, se disséssemos essas duas expressões em qualquer canto há vinte anos, sempre haveria quem pensasse nos judeus e no Holocausto.

Há um par de décadas, as escolas passavam “A lista de Schindler” para os alunos. Estes aprendiam que racismo é errado e sabiam que racismo é julgar uma pessoa em função de sua suposta raça. Hoje, todos são quotidianamente ensinados que a escravidão transatlântica (chamada apenas de “a escravidão”) foi uma coisa única na história da humanidade, e que os negros são as maiores vítimas. Eles aprendem ainda a confundir racismo com condições materiais, de maneira que um pobre é, por definição, uma vítima de racismo. Entendem que para corrigir esse tipo de problema é preciso, justamente, julgar as pessoas em função de sua suposta raça. Em outras palavras, aprendem que é preciso ser racista.

Depois, a própria pobreza material vai sendo relativizada e acabamos vendo ninharias como a falta de fones específicos para cabelo afro serem apontadas como um grande drama racial. Ao fim e ao cabo, são cotas na pós-graduação, e não o saneamento básico, o problema dos negros-pobres. Escrevo com hífen, porque é como se todo negro fosse pobre – por mais que rico – e todo pobre fosse negro.

Se uma negra empoderada de classe média puder apontar algum colega branco com alguma vantagem, isso faz dela uma pobre em relação a ele. E sempre será possível ser uma pobre relativa. Mesmo que você seja Isabel dos Santos, filha do ditador de Angola, e se torne a mulher mais rica da África, a mera existência de Bill Gates fará de você uma desprivilegiada junto do homem branco, logo, uma vítima de racismo.

(Como Isabel dos Santos faz chapinha, creio que o problema dos fones não a aflija. Será que o ato de alisar os cabelos faz dela uma vítima do racismo estrutural? Fica a questão para os doutos especialistas).

Banqueiro pode ser vítima de racismo

A Europa medieval proibia aos cristãos a usura e restringia a eles a posse de terras. Como a usura nunca deixou de ser praticada, isso significou apenas que os banqueiros eram judeus. E como o trabalho da terra estava fora do seu escopo, o judeu europeu exercia profissões liberais, comércio e prestação de serviços: era, em suma, um homem urbano num mundo agrário. No processo de industrialização da Europa, o camponês cristão adentrava a vida urbana com a qual o judeu estava familiarizado desde tempos medievais. Não era de admirar, portanto, que este levasse vantagens e que perfis profissionais fossem passados através de gerações.

De todo o conjunto de milhões de judeus, é óbvio que apenas uns poucos eram banqueiros. Por outro lado, o europeu que olhasse para o diminuto conjunto de banqueiros encontraria um monte de judeus. Pior: banqueiros judeus em todos os confins do mundo, do Leste europeu aos Estados Unidos da América. Pior ainda: com a I Guerra Mundial, os Estados contraíam dívidas com os banqueiros judeus. Uma conspiração judaica para conquistar o mundo tinha aspecto plausível.

Além disso, no mundo rural, o trabalho é facilmente identificável com o labor físico. Da terra cultivada saem os frutos – literalmente, os frutos – e o frutos se revertem em dinheiro. Ora, o comerciante usa os seus miolos, seu tempo, seus contatos e seu gogó para produzir dinheiro. Em comparação ao ambiente rural, pode-se dizer que o comércio é uma atividade intelectual. A multiplicação do dinheiro nas mãos de quem não cultiva a terra era um enigma para o camponês e qualquer explicação que colocasse o judeu como ladrão ou parasita pareceria plausível.

Quanto aos empregos em universidades e obtenção de diplomas, é digno de nota o caso dos portugueses, que optaram por “acabar” com os judeus batizando-os. O sucesso dos descendentes de judeus nas universidades se tornou tão grande que barreiras raciais foram impostas para ocupar cátedras e cargos públicos. Requeria-se o status de cristão velho de quatro costados, isto é, cristão com quatro avós cristãos, sem ascendência judaica ou moura. Esse peculiar racismo quinhentista mostrava a serventia política do racismo: reserva de vagas para algo rendoso ou prestigioso, surgida para conter um grupo em ascensão. O resto é achar uma teoria loroteira para embasar essa injustiça.

No século XX, surgiram dois loroteiros contra os judeus: o nazismo, de ordem política e biológica, e o comunismo, de ordem apenas política. Lênin chegou a criar uma província hebraica rural perto do Japão, com fazendas coletivas, feita para habituar os judeus ao trabalho da terra. Hitler proibiu os judeus de frequentarem universidades (quer como professores, quer como alunos) e de exercerem profissões liberais. Ele impôs essa “desjudaização” aos seus aliados, aos países conquistados e, como a URSS foi sua aliada, cabe lembrar que uma das razões aventadas para a ruptura de Stálin com Trotsky era o fato de este ser judeu.

No fim das contas, Hitler começou a pedir os judeus à Itália, à Grécia, à URSS, à França, à Áustria, à Argélia, à Líbia, à Polônia – e até ao Brasil de Vargas, se estrangeiros e comunistas – para colocá-los em vagões, despachar para campos de extermínio, torturá-los física e psicologicamente, e matá-los.

Vale frisar que, no caso dos nazistas, a distinção não era religiosa. Era racial. A filósofa Edith Stein se converteu ao catolicismo, virou freira, e os nazistas foram ao convento buscá-la para enviar a Auschwitz, onde morreu. Ela foi canonizada pela Igreja.

Se um banqueiro judeu desse ouvidos às Djamilas que a imprensa e a universidade tanto amam, acreditaria que “racismo é relação de poder” e que ele nunca poderia sofrer com racismo. Aquele mísero presidiário austríaco, o pintor de rua chamado Adolf Hitler, sequer tinha condições “estruturais” para ser um racista. Veja bem: o homem escrevia Mein Kampf na cadeia, mas o mero fato de ser uma “pessoa privada de liberdade” (como se diz hoje) coloca-o na base da sociedade e, assim, o impede de ser racista.

As pessoas que inventaram esse tipo de raciocínio querem uma licença para ser racistas. Não é possível que a motivação seja outra. Até mesmo a choradeira dos racialistas negros lembra a dos arianos, uma vez que os judeus estavam “sobrerrepresentados” em universidades e essa “sobrerrepresentação” seria fruto de uma conspiração. Troque por “pacto narcísico da branquitude” o Protocolo dos Sábios de Sião e está tudo certo. Se Hitler se pintasse de preto e chamasse os judeus de brancos – e os judeus eram brancos, mesmo –, seria um intelectual badalado hoje.

Todo mundo descende de escravo

Aos que fingem que a escravidão transatlântica é única, cabe lembrar que os judeus já foram povo escravo, e não são especiais por isso. Você descende de escravos, pela simples razão de que a escravidão existiu entre índios na América, entre negros na África, entre brancos na Europa e entre orientais no Oriente. Aí onde havia humanidade, houve escravidão.

A ideia de que ninguém deveria ser escravo ganhou forças somente no século XIX, e os louros cabem à Inglaterra. A única especificidade importante da escravidão transatlântica é o fato de o africano trazer uma cor que marca a si mesmo, e à sua descendência, como de origem escrava. Ou seja: não basta conquistar a alforria e subir de vida para ser igual aos outros, pois o estigma da origem escrava estará sempre estampado na cor. Ainda assim, não faltaram mulatos entre os barões e os proprietários de escravos no Brasil.

Leiamos Primo Levi

Todo mundo foi escravo, mas nem todo mundo foi objeto de um profundo ódio racista institucionalizado por um Estado criminoso. Isto, só os judeus. Judeu não era passível de reeducação, nem mesmo de educação: em campos de extermínio, as prisioneiras grávidas pariam e seus filhos iam direto para a câmara de gás, de onde saíam pela chaminé, cremados. O crime desses bebês era existir. A reparação desse crime se dava pela sua aniquilação.

Prisioneiros de campo de concentração dificilmente escreviam memórias porque queriam muito esquecer aquilo. O húngaro Paulo Rónai, que foi milagrosamente salvo pelo Brasil e fez aqui a sua vida, menciona apenas en passant a atividade que os nazistas lhe prescreviam: “Num dos milhares de ‘campos de trabalho’ inventados pelos nazistas, onde passei cinco meses, topei um dia com um amigo querido, especialista, já famoso, em línguas orientais. Os dois nos defendíamos contra o desespero com a leitura nas horas que não levávamos a derrubar uma casa para construir outra, exatamente igual, cinco metros mais adiante. Era, se bem me lembro, a língua sagrada da Pérsia, conhecida – explicava-me ele – por uns dez filólogos no mundo.” Que serventia tem esse trabalho escravo para os nazistas? Nenhuma. Era puro sadismo, um sadismo de massa, um sadismo anônimo.

O próprio anonimato era parte da tortura. Como conta detalhadamente o italiano Primo Levi (que foi para Auschwitz), o prisioneiro ganhava um aspecto de autômato, de boneco sem vida. Isso se devia a alguns fatores físicos: a subnutrição, a obrigatoriedade de marchar (marchar, ridiculamente, ao som de músicas românticas populares) e de usar sem parar sapatos de madeira. Além disso, eram frequentemente tosquiados, não podiam ter cabelo nem barba, recebiam uma roupa listrada ridícula e tinham no braço um número tatuado. Uma vez tatuados, eram chamados só pelo número, sem nome, e tinham que ostentá-lo sempre para pedir comida.

Os prisioneiros que perdiam a vida interior e ficavam como mortos vivos eram “selecionados” e saíam pela chaminé. Os demais ficavam e ficavam e ficavam, até quebrar. E ser “selecionado” e sair pela chaminé.

Uma das coisas mais curiosas talvez seja que Primo Levi escolheu se declarar judeu ao ser preso. Ele achava que, na condição de guerrilheiro e judeu, seria melhor declarar-se judeu para não ser punido como criminoso político. Entre os seus companheiros de vagão italiano, havia os que se declararam judeus apenas para não ficar na ilegalidade: ninguém sequer cogitava que tamanhas barbaridades existissem, nem que as autoridades fossem coniventes com elas.

Depois de ficarem indefinidamente presos na Itália, alegraram-se ao saber que iam para Auschwitz, porque Auschwitz era um lugar. Passaram quatro dias apinhados em vagões, sem sentar, comer ou beber água, até serem descarregados na Polônia, onde deram com uma goteira e um letreiro anunciando que era proibido beber água, pois ela não era potável. E era intragável, mesmo.

Que alma terá tido a perfídia de planejar esse roteiro, com essa placa? Quem terá tido a ideia de colocar a mensagem “O trabalho liberta” num campo de trabalho escravo?

Até onde sabemos, o Holocausto é um fenômeno único na história da humanidade. Mas ele pode se repetir, se repetir e se repetir. Para isso, basta que criminosos racialmente ressentidos tomem de assalto o Estado.

No poema de abertura do “É isto um homem?”, Primo Levi roga uma praga para o não-leitor: “Pensem bem que isto aconteceu:/ eu lhe mando estas palavras. / Gravem-nas em seus corações, / estando em casa, andando na rua, / ao deitar, ao levantar; / repitam-nas aos seus filhos. / Ou, senão, desmorone-se a sua casa, / a doença os torne inválidos, / os seus filhos virem o rosto para não vê-los.” Que seja lembrado, é o que Primo Levi pede. Não é cota, não.

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