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A escritora norte-americana Camille Paglia em evento em São Paulo, em 2015 | Greg SalibianWikiMedia Commons (CC BY-SA 2.0)
A escritora norte-americana Camille Paglia em evento em São Paulo, em 2015| Foto: Greg SalibianWikiMedia Commons (CC BY-SA 2.0)

Se eu fosse feminista, seria Camille Paglia. 

Há mais de duas décadas, Paglia, professora de Humanidades na University of the Arts, na Filadélfia, vem se diferenciando com orgulho do feminismo americano mainstream, por meio de seus livros (Imagens Cintilantes: Uma Viagem através da Arte; Break, Blow, Burn; Vampes e Vadias; Personas Sexuais) e de muitos artigos. Uma coletânea desses artigos acaba e ser publicada sob o título Free Women, Free Men: Sex, Gender, Feminism (na tradução literal, Mulheres Livres, Homens Livres: Sexo, Gênero, Feminismo). Encontramos no livro sua crítica revigorante e politicamente incorreta das premissas inquestionadas e dos diagnósticos unilaterais que dominam o discurso feminista. 

Um elemento central da crítica que Paglia faz desse discurso é sua insistência “roussauniana” sobre a ideia de que todas as diferenças entre homens e mulheres não passam de “construtos” que são “inscritos” sobre os sexos por pressões sociais adversas (masculinas) (essas pressões estariam à origem de todos e quaisquer problemas entre os sexos). Na visão de Paglia, essa visão representa uma cegueira intencional que ignora as evidências, cegueira essa aparente, por exemplo, na obra de Kate Millett, a matriarca do chamado “feminismo de segunda onda”, que escreveu: “O patriarcado é tão poderoso que tem o hábito bem-sucedido de se fazer passar por natureza”. Já Paglia afirma que certas diferenças cruciais – e não os estereótipos restritivos dos anos 1950 que ela tanto detestava quando era garota – na realidade têm suas raízes na natureza. Como ela ressalta, em todas as culturas e sociedades “existe algo de fundamentalmente constante no gênero, algo que tem suas raízes em fatos concretos”. 

Nossas convicções: A valorização da mulher

Não sendo frutos de um patriarcado nefasto, essas “constantes” levam Paglia a ter uma visão muito mais positiva da maternidade, uma visão que coloca as mulheres mais do lado da natureza, representando-a, por assim dizer. Para ela, “a questão da maternidade é fundamental”. Colocando de ponta-cabeça o discurso usual sobre igualdade, ela escreve: “Existe um lugar onde os homens nunca poderão igualar as mulheres e onde o poder feminino está no auge: o reino da procriação”. Na visão de Paglia, a ideologia feminista nunca falou desse “poder materno” honestamente. “O retrato feito pelo feminismo da história como sendo uma história de opressão masculina e vitimação feminina é uma distorção grosseira dos fatos.” 

Paglia rejeita “o rancor mal-humorado contra os homens”. Quanto à divisão tradicional do trabalho, ela cita aquele tempo bem anterior à década de 50 – sua referência constante –, quando suas duas avós “tinham uma majestade e um poder espantosos e uma estatura maior que a de qualquer feminista que eu já conheci... mas raramente saíam da cozinha, o santuário acolhedor do lar, do amanhecer até a meia-noite”. Quanto à maternidade, ela, que é mãe, denuncia a ausência de qualquer descrição positiva de crianças, que seriam no máximo “um problema a resolver, a serem delegadas aos cuidados de babás da classe trabalhadora” ou a creches, isso quando o problema não foi “resolvido” antes. Paglia, que está longe de ser “pró-vida” (ou seja, antiaborto), expõe a frieza do sine qua non feminista que não leva em conta a violência do aborto.

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Votar para a natureza 

Sua insistência em que olhemos para as evidências e em “voltar para a natureza” se manifesta mais fortemente quando ela trata do desejo sexual. Sendo uma católica relapsa e de origem mediterrânea, Paglia é alérgica à “cultura protestante repressora, confinada, negadora do corpo” que domina uma parte tão grande do feminismo americano. “Deixar o sexo a cargo das feministas seria como deixar seu cachorro tirar férias com um taxidermista”, ela fala. Diferentemente de suas irmãs feministas “ingênuas e pudicas” – como Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin –, ela é “pró-sexo” (para que não fique nada oculto: isso inclui ser pró-pornografia). Paglia defende uma visão “hobbesiana”: ou seja, que o sexo é uma “chama vermelha” envolvida com “os ritmos profundos e terrenos” da natureza: vitalidade, tesão e glamour, mas também agressão, poder e conflito. No caso dos homens, essa agressão assume a forma da caça, da perseguição e captura e, é claro, do estupro. No caso das mulheres, assume outra forma, principalmente a forma da maternidade possessiva. Paglia defende a igualdade de oportunidades. 

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Pelo fato de negar tudo isso e rejeitar as precauções sociais, dizendo às mulheres “que elas podem fazer qualquer coisa, ir a qualquer lugar, dizer o que quiserem, vestir o que quiserem”, é o feminismo que deixou as mulheres vulneráveis, diz Paglia, e não os homens. “Uma mulher que se deixa ficar totalmente bêbada numa festa universitária é uma tola. Uma mulher que vai a um quarto sozinha com um dos rapazes numa festa universitária é uma idiota. As feministas dizem que isso é ‘culpar a vítima’. Eu digo que é bom senso.” É seu “realismo” que alimenta as críticas virulentas de Paglia ao conceito de “date rape” [quando uma mulher sai para um encontro e acaba estuprada] – as aspas são dela – e aos regimes e campanhas contra o assédio sexual, voltando ao passado até o affair Anita Hill e incluindo o mais recente festival de queixas contra homens, o movimento #MeToo. 

Elogio da transcendência 

O “realismo” de Paglia é revigorante, especialmente quando comparado à única narrativa hoje permitida no discurso público, segundo a qual os homens são agressores, as mulheres são vítimas, e a culpa é do patriarcado. Isto dito, apesar da seriedade com que encara a natureza humana, Paglia é tão a favor de transcendê-la quanto é de identificar nela as raízes das diferenças entre os sexos. Na realidade, boa parte de seu discurso favorável aos homens é movido pelo fato de que os homens são os principais responsáveis pela “transcendência” da natureza por meio da arte, ciência e política, graças à sua capacidade geral de projetar (um talento expresso na própria fisiologia deles). 

Em sua obra “Personas Sexuais”, ela escreveu: “Se a civilização tivesse sido deixada a cargo das mulheres, ainda estaríamos vivendo em choupanas de capim”. Esse elogio da transcendência não seria alarmante, especialmente para quem já tem uma compreensão mais clássica da natureza humana (vendo-a como inerentemente própria à criação cultural). Mas, tendo uma visão “pagã” da natureza (o adjetivo é o que ela própria usa), Paglia não pode deixar de opor a transcendência à natureza. Isso fica muito claro quando ela afirma: “Temos o direito de frustrar as compulsões reprodutivas da natureza, por meio da sodomia ou do aborto. A homossexualidade masculina talvez seja a mais valorosa das tentativas de fugir da femme fatale e de derrotar a natureza.” E “meu direito absoluto sobre meu corpo tem precedência sobre as exigências brutas da mãe natureza”. 

Mesmo assim, o “realismo” de Paglia lhe confere mais consciência que a maioria das feministas das limitações de tal projeto. Quer se trate de promiscuidade, do adiamento da gravidez das mulheres jovens, de ignorar a divisão tradicional do trabalho, da homossexualidade ou do aborto, o julgamento de Paglia é claro: “Existem certos princípios fundamentais da vida humana que voltam sempre... Tenho sérias dúvidas quanto a se a androginia poderia ser estendida utilmente como plano mestre para a raça humana.” De fato, “Free Women, Free Men” está repleto de avisos apocalípticos sobre colapso cultural em uma era engajada com “extravagâncias envolvendo experimentos de gênero”. “Há muitos paralelos a traçar entre nosso tempo e o do Império Romano. Sempre que temos culturas cosmopolitas que são muito tolerantes e permissivas ... parece ser fato que essas culturas estão próximas ao colapso”. 

Desafio necessário 

O livro é uma mistura heterogênea, sem dúvida. Mesmo assim, oferece um desafio muito necessário às premissas do feminismo mainstream. E, o que talvez seja ainda mais importante, recomenda alguma cautela às mulheres de viés tradicional que sentem a tentação de subir no bonde feminista mais recente, na esperança de vender seu pacote moral (bom). Todas concordamos que o estupro (quando é estupro) é perverso, assim como é perverso exigir favores sexuais em troca de promoções e papéis no cinema. Mas os motivos e as “soluções” propostas por quem está conduzindo esse bonde não são os nossos. Elas querem androginia: indivíduos abstratos, desencarnados, intercambiáveis, sem relação natural uns com os outros, sem um caminho comum, sem um projeto comum. É isso o que queremos? Será que queremos realmente promover um mundo em que a eletricidade natural entre homens e mulheres foi desligada, ou pela ameaça de ação judicial (por um simples elogio) ou, para citar um dos desafios mais recentes de Jordan Peterson, a implementação de um código de vestimenta mais rígido, por exemplo uniformes de Mao para todo o mundo? 

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O que vamos realizar se, em estado de “choque” diante das revelações mais recentes sobre erros de conduta, ajudarmos a soterrar os últimos resquícios de um mundo pré-andrógino? Um mundo em que homens e mulheres estudando e trabalhando lado a lado ainda são reconhecidos como justamente isso – um mundo, portanto, feito de eros, atração e flerte, ao lado da modéstia e do cavalheirismo que orientavam essas coisas, em um namoro, na direção de um casamento frutífero e vitalício. 

Ao reconhecer certas evidências (naturais) e questionar caricaturas dominantes e críticas unilaterais, Paglia abre o caminho para um projeto mais amplo, um projeto que teria fontes mais antigas e profundas que suas próprias fontes hobbesianas, com certeza. Esse projeto aproximaria homens e mulheres sobre uma base mais positiva. 

 

Margaret Harper McCarthy é professora assistente de Antropologia Teológica no Instituto João Paulo II de Estudos do Casamento e da Família, da Catholic University of America, e editora do Humanum Review.

Tradução por Clara Allain

©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês

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