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Primeiro-ministro canadense Justin Trudeau durante visita a clínica: apoio a lei que facilita eutanásia.
Primeiro-ministro canadense Justin Trudeau durante visita a clínica: apoio à lei que facilita eutanásia.| Foto: Adam Scotti/PMO

Nunca foi tão fácil morrer no Canadá.

Um novo relatório do governo canadense mostra que o número de pessoas mortas em suicídio assistido atingiu o ponto mais alto desde a prática foi legalizada, em 2016. O Canadá agora é o país com mais mortes por eutanásia: 13.241 pessoas foram submetidas a esse tipo de procedimento em 2022, o que representa 4,1% do total de óbitos no país no ano.

Uma forma de entender a dimensão desses números é compará-los a outras estatísticas. As vítimas de homicídios, acidentes de trânsito e afogamentos no Canadá em 2022, somadas, não chegam a 25% do total de mortes por eutanásia no país. Na província do Quebec, onde fica Montreal, 6,6% das mortes (uma em cada 15) foram por suicídio assistido. Os dados aparecem em um relatório anual recém-divulgado pelo Departamento de Saúde do governo canadense.

Desde 2021, o processo de suicídio assistido no Canadá se tornou simples e rápido — assustadoramente simples e rápido. É possível fazer o pedido de manhã e receber uma injeção letal de tarde. Isso explica a expansão dos números da eutanásia no país.

Em termos absolutos, o Canadá já ultrapassou os Países Baixos como o país com mais mortes por eutanásia no mundo. Proporcionalmente os Países Baixos ainda aparecem com um índice mais alto (lá, 5,1% das mortes em 2022 foram por eutanásia).

Mas é provável que, a partir do ano que vem, o Canadá passe a ocupar o topo da lista também nesse critério.

Rejeição mínima

Em 2022, 16.104 canadenses entraram com um pedido de eutanásia. Apenas 560 (3,5%) tiveram a solicitação rejeitada. Os outros pacientes não atendidos desistiram da solicitação ou morreram antes que a eutanásia fosse autorizada.

A média de idade dos pacientes mortos por eutanásia foi de 77 anos, e o câncer (63%) é citado como o motivo mais comum. Outras doenças comumente apontadas como causa do suicídio assistido foram a esclerose múltipla, a demência e o Parkinson.

Mas o relatório do governo canadense também mostra situações mais nebulosas. Em 2022, 463 pessoas morreram por eutanásia mesmo sem terem uma doença fatal (a aplicação do suicídio assistido também é prevista em lei para esses casos, embora as normais exijam uma espera de 90 dias). Eram pacientes com problemas neurológicos, múltiplas comorbidades ou "outras condições".

O documento mostra casos de pessoas que tiveram a eutanásia aceita por perda de visão, perda de audição, "quedas frequentes", osteoporose, osteoartrite, diabetes, dor crônica ou simples "debilidade".

Lobby pró-eutanásia

Mais de 1.800 profissionais de saúde canadenses estão autorizados a realizar o suicídio assistido (não está claro quantos deles exigem pagamento à vista). O número aumentou quase 20% em um ano, e a categoria se articulou a ponto de organizar o próprio lobby para influenciar políticos. Os médicos e enfermeiras que aplicam a eutanásia têm a própria associação. A entidade afirma publicamente que esses profissionais têm a "obrigação" de oferecer o suicídio assistido a pacientes que cumprem os requerimentos. A lei não proíbe que isso aconteça. Por isso, é comum que pacientes com doenças graves (não necessariamente no estágio terminal) recebam esse tipo de proposta de profissionais de saúde.

No relatório anual, o ministro da Saúde, Mark Holland, diz que o governo busca “promover os princípios fundamentais da segurança, acessibilidade e proteção das pessoas que podem ser vulneráveis, em todo o sistema MAID.” A sigla se refere ao termo inglês para “Assistência Médica na Morte”.

A eutanásia envolve uma ação para provocar a morte (geralmente por meio da aplicação de substâncias letais). A prática se difere da chamada ortotanásia, que é a simples suspensão dos cuidados médicos em pacientes em situação irreversível.

A banalização da eutanásia têm gerado críticas de grupos conservadores no Canadá. Em maio deste ano, por exemplo, os bispos da Igreja Católica divulgaram uma carta pública pedindo que o governo repense os planos de expansão do programa de eutanásia.

Ainda assim, para o governo, o aumento no número de pessoas que optam pelo suicídio assistido é uma forma conveniente de reduzir os gastos com previdência e saúde em um país que tem uma população envelhecida e um sistema semelhante ao SUS brasileiro — com filas de espera cada vez maiores.

Casos devem aumentar em 2024

A eutanásia passou a ser legal no Canadá há sete anos. Mas, desde 2021, não é mais necessário ter uma doença em estágio terminal para requisitar o suicídio assistido. As normas atuais estabelecem que o paciente deve ser maior de idade e ter o diagnóstico de uma condição médica grave e incurável, em um estágio de declínio irreversível e que cause sofrimento psicológico ou físico duradouro.

O número de pessoas que recorreram ao suicídio assistido aumentou de forma constante desde 2016. Naquele ano, foram 1.018 casos de eutanásia. Em 2019, o número havia quintuplicado. Em 2021, o país ultrapassou a marca de 10 mil mortes. Entre 2021 e 2022, o salto foi de 31,2%.

A lista de condições aceitas como justificativa para a eutanásia está prestes a aumentar. A partir de 2024, será possível pedir o suicídio assistido com base apenas em transtornos mentais — mesmo que elas não sejam fatais.

O grande problema é que, por definição, um transtorno mental coloca em xeque a capacidade de escolha do indivíduo. Se alguém tem uma doença mental grave o bastante para buscar a eutanásia, a doença mental provavelmente também o impede de decidir livremente sobre a própria morte.

Indagado a respeito em uma audiência no Parlamento canadense no ano passado, o médico Derryck Smith — professor emérito de Psiquiatria da Universidade da Colúmbia Britânica, afirmou que a capacidade mental do paciente é simplesmente presumida. “Os pacientes psiquiátricos, como qualquer pessoa, têm a presunção de serem capazes até que se prove o contrário. Nós não presumimos que você não é capaz apenas por ter esquizofrenia, depressão, ou distúrbio de personalidade", argumentou.

Uma pesquisa de opinião feita em fevereiro deste ano mostra que, embora apoie a eutanásia legal, a maioria dos canadenses é contra a inclusão de distúrbios mentais como causa para o suicídio assistido.

Eutanásia a jato

O jornalista canadense Alexander Raikin, que tem publicado uma série de reportagens investigando a expansão da eutanásia em seu país, explica que para as pessoas cuja morte é previsível, o processo não tem qualquer espera mínima. “Muitos pacientes solicitaram a eutanásia e morreram de eutanásia no mesmo dia — e a solicitação pode ser feita por telemedicina”, explicou ele à reportagem da Gazeta do Povo.

Alexander acrescenta que, ao contrário do que ocorre na Bélgica e nos Países Baixos, o Canadá não exige que os pacientes busquem algum tipo de tratamento antes de se candidatarem ao suicídio assistido. "O Canadá não tem qualquer exigência de algum tratamento médico básico para que o paciente possa solicitar a eutanásia", ele diz.

No Canadá, há até enfermeiros autorizados a conduzir o processo de eutanásia. Ou seja: é possível se submeter ao suicídio assistido sem jamais ter sido consultado por um médico.

A eutanásia a jato é autorizada nos casos em que houver “morte previsível”. O termo não se aplica apenas a pacientes terminais (que, em termos médicos, são aqueles cuja morte é esperada nos próximos seis meses). Alguém que acabou de receber um diagnóstico de Alzheimer pode ter mais de uma década de vida pela frente mas, como apresenta uma condição grave, irreversível e que eventualmente levará à morte, já pode pedir a eutanásia de forma imediata.

Pressão sobre idosos

A rápida expansão da eutanásia no Canadá também pode estar mudando as normas sociais quanto à velhice. Muitos idosos passaram a se sentir pressionados a optar pelo suicídio assistido como forma de facilitar a vida da família.

Entre os que passaram por eutanásia em 2022, 35,3% das pessoas mencionaram como motivo "o fardo sobre familiares, amigos ou cuidadores” e 17,1% falam em "isolamento ou solidão" (os entrevistados podiam dar mais de uma resposta). O número real pode ser ainda maior, já que os dados são relatados ao governo pelos médicos e não diretamente pelos pacientes.

Para Alexander, o primeiro-ministro canadense e seus aliados falharam. “Isso é o contrário do que foi prometido por políticos canadenses como Justin Trudeau — e esse é um programa de iniciativa dele. Eles prometeram que nenhum paciente iria morrer por se sentir um fardo ou não ter apoio. E agora que isso é um problema, os políticos não se importam”, diz.

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