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Estátuas dos ditadores da Coreia do Norte Kim Il-sung e Kim Jong-il, pai e filho, em Pyongyang.
Estátuas dos ditadores da Coreia do Norte Kim Il-sung e Kim Jong-il, pai e filho, em Pyongyang.| Foto: EFE/Andrés Sánchez Braun

No início, não era apenas Kim Jong-un quem disputava a liderança da Coreia do Norte. De fato, sendo o caçula de três irmãos, era improvável que fosse designado como o herdeiro principal. Da sua parte, ele sempre demonstrou uma certa tenacidade na busca dos seus objetivos, e isso não passou despercebido aos olhos do seu pai, Kim Jong-il.

Em 1980, o ex-ditador da Coreia do Norte tem certeza de que será sucedido pelo filho mais velho, Kim Jong-nam, nascido do seu caso extraconjugal com a atriz Song Hye-rim (1937-2002). A existência da criança permanece ocultada até ela completar quatro anos de idade. Uma vez reconhecido pelo pai, Jong-nam começa a crescer na luxuosa casa da família em Pyongyang, ganhando também um apelido: seguindo os passos do avô, descrito como um “grande líder”, e do seu pai como um “líder corajoso”, Jong-nam se torna “o pequeno general”. Ele é nomeado chefe da contraespionagem da polícia secreta, mas, com o tempo, mostra-se um tipo pouco confiável, sujeito a vícios, como prostitutas e jogos de azar. Em meados da década de 1990, amadurece em Kim Jong-il a ideia de ter que escolher outro filho em quem projetar expectativas futuras.

Mesmo o segundo filho, Kim Jong-chul, filho da dançarina japonesa Ko Young-hee (1952-2004), parece pouco inclinado a comandar. Ele estuda na Suíça desde criança e adora escrever poesia. De acordo com o livro de Hyung Gu Lynn, 'Bipolar Orders: The Two Koreas since 1989' [Ordens bipolares: As Duas Coreias desde 1989, sem edição no Brasil], esta é uma das suas citações: “No meu mundo ideal, não há armas ou bombas atômicas, e todas as pessoas são livres”. Ok, ele também não pode definir-se como o orgulho do papai.

Voltando a Kim Jong-nam, para tirar qualquer dúvida sobre o seu futuro como líder, haverá um episódio que o rotulará para sempre com a marca da desonra.

Em 2001, no posto fronteiriço do aeroporto de Narita, a polícia prendeu um rapaz dominicano chamado Pang Xiong. A autenticidade do passaporte está para ser verificada, mas o que levanta as principais suspeitas é o nome: pang xiong em chinês significa “urso gordo”. A coincidência é muito estranha, até porque o jovem tem feições exclusivamente asiáticas, então as autoridades japonesas contatam a embaixada chinesa para uma verificação.

Pang Xiong é deportado para Pequim e, durante o interrogatório, revela a sua verdadeira identidade: trata-se de Kim-Jong-nam, filho do líder supremo da Coreia do Norte. Ao ser questionado sobre o motivo de ter entrado clandestinamente no Japão, a sua resposta é desarmante: “Eu queria visitar a Disneylândia de Tóquio”. Uma desculpa esfarrapada para encobrir uma operação de espionagem ultrassecreta? Não, a pura verdade. Kim Jong-nam realmente só queria visitar a Disneylândia, e a notícia é tão absurda que ela logo estará dando a volta ao mundo. Envergonhado, Kim Jong-il cancela a sua visita anual a Pequim, marcada para a semana seguinte. A relação entre pai e filho está às avessas, e agora é certo que as chances de uma transferência de poder são menores que zero.

Resta quem? Kim Jong-chul, por sua vez, passou de poeta sensível a roqueiro. Em 2006, a inteligência sul-coreana relata que ele foi flagrado na Alemanha, durante um show de Eric Clapton, seu guitarrista favorito. Jong-chul segue as turnês várias vezes; as câmeras japonesas o imortalizam cantando a plenos pulmões usando jaquetas de couro, óculos escuros e brincos. Na sua autobiografia, o ex-cozinheiro pessoal de Kim Jong-il escreve sobre o quanto o líder norte-coreano odeia o seu segundo filho: “Para o seu pai, Kim Jong-chul tem o coração caloroso de uma mulher. Um sujeito muito efeminado para liderar uma nação viril como a Coreia do Norte”. O que Kim Jong-il quer dizer com o adjetivo “efeminado” não está claro. Ele provavelmente está se referindo às suas roupas, às suas posições antiguerra ou ao seu estilo de vida ocidental. Ou talvez signifique que Kim Jong-chul é gay, fato considerado ainda mais grave visto que a homossexualidade na Coreia do Norte ainda hoje é inaceitável.

A última esperança do líder supremo é Kim Jong-un, o filho caçula. Na realidade, haveria também duas filhas, mas, se a Coreia do Norte é “muito viril” para Jong-chul, que esperança têm as mulheres?

Por sorte, Kim Jong-un tem uma aptidão natural para a liderança, bebe muito e nunca admite a derrota. O seu pai, que também costuma beber e eliminar os oponentes o mais rápido possível, está entusiasmado com isso. Até a semelhança física entre os dois é impressionante.

Como os dois irmãos antes dele, Kim Jong-un estudou disfarçado na Suíça, provavelmente na Escola Internacional de Berna. Segundo o jornal Hebdo (não, não é o francês Charlie, este é o suíço), ele teria usado o nome Pak Chol.

Os colegas de escola de Kim Jong-un acreditam que ele é o filho de um dos motoristas da embaixada norte-coreana. Eles o descrevem como alguém tímido e desajeitado, mas um amante de esportes coletivos, especialmente do basquete. O seu ídolo nos esportes é Michael Jordan, e o seu ator favorito, Jean-Claude Van Damme. Ele aprende inglês, francês e alemão, mas já não se deixa seduzir pelos hábitos ocidentais, e a impressão é que se sente sempre um peixe fora d’água. Aos quinze anos, sem nunca ter feito o exame final, volta para casa para frequentar a academia militar. Kim Jong-il começa a preparar o caminho da sucessão, conferindo ao filho cargos de prestígio. Em menos de dez anos, Kim Jong-un é nomeado general e membro da Comissão de Defesa Nacional. Com o agravamento da saúde do pai, que se recuperava de graves ataques cardíacos, o jovem começa a aparecer cada vez mais, ganhando o apoio do público, que lhe canta canções de glória.

Uma câmera escondida que terminou mal

Nesse ínterim, temos notícias fragmentadas do pobre Kim Jong-nam. Ele é localizado pela imprensa em Moscou, Paris e Bangkok; dizem que vive numa villa blindada em Macau, a Las Vegas asiática, onde continua a esbanjar a sua fortuna entre festas e cassinos. Em 2009, ao tomar conhecimento da nomeação do irmão como futuro líder do país, deu uma entrevista à TV japonesa: “A sucessão por herança não é permitida. Eles não fizeram isso nem para Mao: não é socialismo. O meu pai era contra isso”.

De todo modo, o governo norte-coreano continua negando a sua distância de Pyongyang. Mas a sua ausência, tanto durante o funeral do pai quanto na cerimônia de posse do irmão, causa grande rebuliço. Se Kim Jong-nam realmente está em Pyongyang, por que perder dois eventos de tamanha importância?

Em 2011, novos rumores relatam que Kim Jong-nam está em Pequim sob vigilância dos serviços secretos e protegido de possíveis tentativas de assassinato por assassinos norte-coreanos.

As opiniões sobre a legitimidade da sucessão são conflitantes. Para muitos, Kim Jong-nam nunca poderia ter subido ao poder porque é fruto de um caso extraconjugal. Por outro lado, outros acreditam que a liderança do país pertence a ele, e não a seu meio-irmão Kim Jong-un. Para evitar mal-entendidos, o regime emite a sua sentença: Jong-nam deve ser eliminado.

Em 2016, alguns diplomatas entraram em contato com Kim Jong-nam
pedindo-lhe que voltasse para casa, mas ele se recusou. Mesmo quando um emissário do governo aparece em frente à sua villa em Macau, Jong-nam devolve a mensagem ao remetente e continua a ganhar tempo. Ele escreve uma carta ao irmão pedindo-lhe que poupe a sua vida, mas não obtém resposta. Apesar disso, os serviços secretos chineses continuam a protegê-lo. Em parte porque não querem problemas em casa; em parte, porque a hipótese de alguns jogos de poder já se estende há algum tempo.

Preocupada com a falta de disciplina de Kim Jong-un, à mercê dos seus mísseis e jogos de guerra nuclear, Pequim está considerando uma possível substituição caso os Estados Unidos peçam-lhe para manter os caprichos de Pyongyang sob controle. Ter um Kim na manga, para ser puxado quando necessário, não é uma má ideia.

Infelizmente, o ás na manga não dura muito. Às nove da manhã de 13 de fevereiro de 2017, Kim Jong-nam se encontra na fila do portão de embarque no aeroporto de Kuala Lampur, na Malásia, para embarcar em direção a Macau, quando duas garotas se aproximam dele com uma lata de spray nas mãos: em uma fração de segundo, elas borrifam um líquido no seu rosto e dão no pé.

O pobre Jong-nam tem tempo apenas para alertar a segurança e ser levado para a área médica. Ele morre vinte minutos depois, dentro da ambulância, devido a uma parada cardíaca. Mais tarde, testes de autópsia confirmarão que um agente neurotóxico em concentração letal foi a causa da morte. As duas meninas, capturadas pela polícia, declararam no interrogatório que não sabiam o que continham as latas e que haviam sido contratadas por uma produtora de televisão. A sua tarefa era pregar peças nas pessoas que passavam.

Esses esquetes iriam ao ar mais tarde em um programa de câmera escondida.

Isso significa que alguém as enganou.

A história do trote de brincadeira vaza por todos os lados. Segundo a polícia malaia, as meninas agiram como profissionais: um único esguicho daquele líquido também as teria matado. Pelo contrário, nenhuma apresentava sinais de intoxicação e, após a emboscada, ambas correram para o banheiro para lavar as mãos. Observando-as a distância, também haveria quatro agentes norte-coreanos, filmados por câmeras de segurança. Uma verdadeira equipe apoiada por uma rede de espionagem que o RGB (serviço de inteligência) de Pyongyang supostamente desenvolveu na Malásia usando restaurantes e pequenas empresas têxteis como cobertura. Pena que a verdade oficial nunca será revelada.

O texto acima é parte do livro 'A Dura Vida dos Ditadores', do escritor italiano Simone Guida, lançado no Brasil pela editora Avis Rara.

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