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O filósofo José Ortega y Gasset
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset, autor de “A Rebelião das Massas”| Foto: Reprodução

Na fortaleza da solidão de cada homem, há sempre uma janela que se abre para o jardim da infância – e ali vivem ainda as fábulas e histórias por onde toda vida principia. Para muitos, certamente, a vida começou pela fábula dos cegos que entram em contato com o elefante. Como é provável que a maioria a conheça, é prudente optar pelo resumo mais curto:

Eis que um grupo de cegos se deparam pela primeira vez com o estranho animal chamado elefante, e para conhecê-lo contam sobretudo com o sentido do tato. Eis que a mão do primeiro cego pousou sobre a tromba e ele sentenciou: “É semelhante a uma cobra”. A mão do segundo, ao tocar a orelha, levou-o a concluir que era um animal flexível e invertebrado – como se fosse um leque. E assim por diante. O terceiro tocou uma das patas: “Parece um tronco de árvore”. O quarto cego, que tocou o animal na barriga: “É uma grande parede”. Ao quinto, coube tocar o rabo: “Não passa de uma corda enrolada”. E eis que o sexto, por fim, teve contato com a presa de marfim do paquiderme: “É liso e afiado, parecido com uma lança”.

O tempo, que traz o fim da infância, só fez reforçar em mim o sentido principal desta parábola: todo conhecimento parcial é falho, incompleto – e perigoso. Se querem um retrato fiel, olhem em volta: o mundo é como o elefante da fábula, e os filósofos, cientistas e intelectuais quase sempre se comportam como os cegos, na triste façanha de fatiar a realidade em pedaços isolados. E, tomando a parte pelo todo, tratam de fazer o mundo caber no pequeno oco de suas cabeças.

Mas há as exceções de praxe, é claro – e entre elas se destaca a obra extensa e fabulosa do espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), que se recusou a esquartejar o mundo-paquiderme, preferindo arriscar que existe apenas um objeto digno de estudo: o universo.

O elefante Ortega y Gasset e os cegos de hoje

Diante de uma obra tão vasta e variada como a de Ortega, a maioria dos filósofos e historiadores contemporâneos acaba cedendo à tentação da cegueira ou da visão segmentada. E assim temos um Ortega-orelha: o “pensador político”. Ou o Ortega-tromba: o “estudioso das artes”. Ou o Ortega-presa: o “ativista liberal e laico”. Para que prosseguir, nesse território dos cegos? Melhor é tirar as escamas dos olhos e apostar que nosso espanhol foi um exemplo raro entre os contemporâneos: em vez de se encastelar como um “especialista disso ou daquilo”, ergueu e legou ao mundo um sobrado claro e arejado, com corredores largos e muitas janelas, todas elas abertas para o mundo real.

Exageros à parte, é válido colocar Ortega y Gasset na mesma vasta tradição que remonta aos gregos – em especial, a Aristóteles. Afinal, como o Estagirita, o filósofo espnhol também recusou as especializações; também foi professor e conferencista generoso, difundindo oralmente suas ideias; e, consequência direta, também nisso “imitou” o filósofo grego, pois grande parte de sua obra só chegou até nós graças às transcrições dos alunos e discípulos – com todos os riscos de distorções e equívocos que isso acarreta.

Antes de estrear em livro em 1914, com o magnífico Meditações do Quixote, Ortega já tinha uma presença atuante na imprensa, seguindo os passos da tradição doméstica: a família de sua mãe era dona do jornal madrilenho El Imparcial, onde seu pai José Ortega y Munilla era o editor. A experiência no jornal da família pode não ter durado muito, mas o jornalismo nunca mais saiu dele. Que o digam vários de seus livros, publicados originalmente em capítulos na imprensa – mas que o diga acima de tudo seu estilo ágil, claro e objetivo. Não por acaso, é de Ortega uma das melhores definições de clareza estilística: nada menos do que uma “cortesia para com o leitor”.

Este é um retrato inevitavelmente incompleto do claro e gentil filósofo-escritor Ortega y Gasset. Até porque uma biografia ou uma análise de corpo inteiro da obra são tarefas que renderiam grossos volumes e exigiam a dedicação de toda uma vida. Sem falar que nada seria mais irônico e infiel do que alguém pretender se tornar um... “especialista” em Ortega!

Mas é possível fugir ao “especialismo” dos contemporâneos e ao mesmo tempo criticar cada um deles. Isso é tudo que posso prometer aqui, neste pequeno perfil de um grande filósofo.

A clareza como “tranquila posse espiritual”

A frase que resume a filosofia de Ortega y Gasset aparece logo na primeira obra, Meditações do Quixote: "Eu sou eu e minha circunstância – e, se não salvo a ela, não salvo a mim". Partindo do circunstancial – quer dizer, do contingencial, eventual e fortuito –, Ortega se propõe chegar aos fundamentos da vida real e concreta (um dos nomes com que ele se referia ao universo), e a partir daí demonstrar que o Eu é diferente da realidade à sua volta, sendo ao mesmo tempo inseparável dela.

Mas Meditações do Quixote é muito mais do que uma frase emblemática. No livro também estão presentes outros dois pontos medulares do pensamento de Ortega.

O primeiro é sua definição de clareza, a já mencionada “cortesia para com o leitor”. Para Ortega, “clareza significa a tranquila posse espiritual, o domínio suficiente de nossa consciência sobre as imagens, a ausência de inquietação diante da ameaça de que o objeto apreendido nos escape”. Como corolário, temos que todo esforço da cultura é no sentido de ser uma interpretação da vida – uma “explicação, esclarecimento, exegese”. E a vida, ressalta Ortega, é o Texto Eterno, a sarça ardente à beira do caminho. (E também nisso podemos vê-lo como herdeiro do legado filosófico que vem de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, entre outros tantos gigantes.)

O segundo ponto a destacar é que Meditações já sugere e anuncia a variedade de temas e interesses que viriam a marcar sua obra ampla e diversificada. Apesar do título (ou melhor, à margem dele), o livro tenta abarcar “muita coisa ou quase tudo”, desde a questão dos gêneros literários até a noção de patriotismo, passando por Goethe, Flaubert, Darwin, a busca e necessidade de sentido, os conceitos de “profundidade e superfície” e uma gama de assuntos que seria tedioso enumerar – e que aqui devem funcionar como um convite à leitura integral do livro.

Meditações do Quixote se anuncia como a primeira de uma série de “reflexões” sobre as múltiplas facetas desse objeto único de interesse – o Universo. Mas, inaugurando uma série de guinadas feitas para surpreender seu crescente público cativo, Ortega preferiu “virar a página” e mudar de assunto – embora não de foco, nem de objeto. Foi a forma que encontrou para mostrar que o verdadeiro filósofo, como os poetas autênticos, está sempre “falando de outras coisas”.

Sendo impossível analisar – ou meramente enumerar – todos os seus livros nos limites de um artigo, contentemo-nos com mencionar os mais famosos, que são também exemplarmente representativos da obra toda. Por ordem de notoriedade, mas não necessariamente cronológica, temos:  A Rebelião das Massas (1930), que apresenta o conceito decisivo de homem-massa, fundamental para se compreender a História contemporânea; A Desumanização da Arte e Ideias sobre ao Romance (1925), em que ele submete a crivo severo as ideias de vanguarda e modernidade estética; Origem e Epílogo da Filosofia (1947); O Que É Filosofia (a partir de um curso ministrado em 1928-29 e publicado postumamente, em 1957); O Tema de Nosso Tempo (1923), Ideias sobre o Teatro (1946), Meditações do Povo Jovem – mas paremos por aqui, nesta lista “interminável”.

Para fins didáticos, simplificando mas sem fugir à verdade, cabe ainda citar o esquema com que o pensamento de Ortega costuma ser apresentado nos manuais de Filosofia, fatiado em três etapas:

  1. Estágio objetivista (1902-1914): Influenciado pelo neo-kantismo alemão e pela fenomenologia de Husserl, Ortega ainda defenderia a primazia das coisas (e ideias) sobre as pessoas (não custa lembrar que é anterior a sua estreia em livro);
  2. Estágio Perspectivista (1914-1923): Inaugurado com Meditações de Quixote, marcaria também o início das preocupações de Ortega com a situação da Espanha;
  3. Estágio Raciovitalista (1924-1955): Preferido por “nove entre 10 cegos-especialistas”, marcaria a fase de maturidade de Ortega – com destaque para o sempre lembrado A Rebelião das Massas.

Mais uma vez: por ser impossível insistir na proposta de traçar um perfil abrangente deste grande filósofo, cabe mencionar mais um aspecto diferenciador de sua obra.

Todos sabem que a chamada consciência histórica é hoje uma parte substancial da herança cultivada pela civilização judaico-cristã, a ponto de dominar e estreitar nosso horizonte cultural e espiritual. Como uma espécie de “Segunda Queda”, o homem contemporâneo se viu expulso da Cosmogonia antiga, que concebia o mundo a partir de uma ideia de eternidade em que o Cosmos inteiro se inseria. Entre meados do século XVIII e a aurora do XIX, a historicidade (até a palavra é horrível!) cresceu e floresceu com nomes diferentes, mas sempre fiéis a um mesmo paradigma: “Ciência da História”, “Filosofia da História”, “Progresso”, “Evolução”, etc.… a lista é tão extensa quanto sombria. Não por acaso, a ideia dominante sobre a gênese do universo hoje se restringe a investigações sobre a origem… da matéria! Como se as leis que determinam sua formação não precisassem preexistir a ela!

Sem o caixilho imprescindível de uma concepção de Eternidade, a dimensão temporal passou a ser todo o campo de visão socialmente dominante. No plano teórico, passaram a ganhar espaço e finalmente a dominar as ideias de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Augusto Comte, Karl Marx, Charles Darwin e Émile Durkheim – não necessariamente nesta ordem. Também nisso temos que reconhecer a originalidade corajosa de Ortega y Gasset: mesmo não conseguindo fugir às questões urgentes e incontornáveis da tal  historicidade, ele ao menos ousou abordar o problema fora dos parâmetros então em voga – e que patinavam entre o Evolucionismo e o Hegelianismo, o Positivismo e o Marxismo. E isso, convenhamos: diante do cenário de terra arrasada que encontrou, não foi pouca coisa.

“Dize-me quem te segue e eu te direi…”

Todo filósofo pode (e deve) ser avaliado pela dupla herança de sua obra e de seus seguidores. Em Ortega y Gasset, o saldo é até promissor: sua obra é vasta e diversificada (e delaeste artigo é tão somente um retrato desbotado) e a lista dos herdeiros inclui nomes de peso, com vários deles ultrapassando o horizonte da língua espanhola. Para citar apenas alguns: Julián Marías (1914-2005), Xavier Zubiri (1983), Francisco Ayala (1906-2009), María Zambrano (1883-1942) e Manuel García Morente (1883-1942).

Num mundo perfeito, este seria certamente o sonho de todo pensador: ser lembrado pelo patrimônio moral e intelectual que transmitiu ao mundo. Mas, mesmo vivendo no melhor dos mundos possíveis, o fato é que a injustiça e a incompreensão também fazem parte dele – e, no caso de Ortega y Gasset, contribuíram para distorcer uma herança que atualmente se vê reduzida a um punhado de discussões estéreis, pretendendo determinar se ele era um liberal ou um conservador, republicano ou monarquista, laicista ou livre-pensador, agnóstico ou…?

Se, entre as múltiplas facetas do elefante-Ortega, quase todos os cegos-especialistas preferem apostar as fichas no ativista e pensador político, isso é um sinal que nem mesmo ele conseguiu escapar ao historicismo que tentou combater – e, menos ainda, ao horizonte que um famoso militar e estadista corso tratou de estreitar para as gerações seguintes: a conquista, manutenção e ampliação do poder, e nada mais. Este foi o legado fatídico de Napoleão Bonaparte: “A política é o destino concreto de nossa época”. A política, tout court – a arte da conquista, manutenção e ampliação do poder. Não olhe agora, leitor, mas nesta simples frase parece estar resumido o triste futuro dos homens.

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