Caminhoneiros protestam em Buenos Aires contra a política econômica do presidente Eduardo Duhalde, em 2002. Na época, 50% da população argentina caiu na pobreza e 25% estava desempregada| Foto: ab/ppALI BURAFI

Desemprego em alta, dólar subindo rapidamente, incerteza no mercado e dúvidas sobre quanto tempo o presidente se sustenta no poder. Panelaços, gente nas ruas, crise econômica e escândalos de corrupção. A descrição caberia facilmente ao Brasil de 2017, mas é a sinopse de um filme mais antigo: a Argentina de 2001. Na virada do século, nossos vizinhos viveram uma das crises mais graves de sua história, que dezesseis anos depois ainda tem efeitos na vida cotidiana e política do país.

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Em meio a sua própria crise sem fim, o Brasil pode se tornar uma nova Argentina? Especialistas consultados pela Gazeta do Povo apontam as semelhanças e diferenças entre os dois casos. 

Uma longa crise 

Um século antes da crise de 2001, na virada do XIX para o XX, a Argentina parecia caminhar em outra direção. Sustentada pela exportação de carnes e cereais, a economia do país entrou os anos 1900 numa linha ascendente que a colocava como a nação mais promissora da América Latina. Nessa época, a renda per capita dos argentinos chegou a níveis comparáveis aos de França e Alemanha e, em 1928, antes da Grande Depressão, o país atingiu o posto de sexta maior economia do mundo. Desde então, nunca mais chegou a uma posição tão alta – e, a partir do governo Perón e da sua derrubada, as dificuldades econômicas se tornariam uma parte inseparável do cotidiano político do país. 

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Até hoje, levar ideias que se dizem peronistas de volta ao poder — ou tirá-las de lá — é um elemento central na maneira como o país é gerido. Nos vinte e um anos após a deposição de Juan Domingo Perón pela chamada “Revolução Libertadora” de 1955, o país viveu quatro golpes de Estado. Mesmo quando os militares deixaram o poder em 1983, a estabilidade política e econômica foi uma raridade.

Como o restante do continente, a Argentina sofreu com hiperinflação e endividamento ao longo de toda a década, e só encontraria alguma estabilidade nos anos 90, que coincidiram com a presidência de Carlos Menem (1989-1999). Adotando políticas de cunho neoliberal e dolarizando a economia do país, Menem obteve alguns avanços provisórios, mas que acabariam levando à grande crise que se seguiu ao seu governo. 

“Hoje a Argentina é uma sombra da que emergia no início do século XX, e reflete, em parte e de modo mais cruel, o que aconteceria com a América Latina de forma geral. O capitalismo aqui não conseguiu se desenvolver do modo que fizeram os capitalismos asiáticos, que se basearam em outros arranjos sistêmicos”, comenta o historiador Hernán Ramiro Ramírez, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul.

“O problema não está apenas na nossa classe política, mas também no tipo de burguesia que construímos, que depende sobremaneira do subsídio estatal e na exploração de recursos naturais e da mão de obra local. Nossos grandes players são uma amostra disso: fabricantes de cervejas, produtores de carne, produtos de baixo conteúdo tecnológico”, afirma Ramírez.  

Herança maldita de Menem

O governo Menem buscou combater a hiperinflação do final dos anos 80 adotando a chamada “Lei de Convertibilidade”: o governo deveria manter suas reservas de moeda local e de dólar no mesmo nível e, com a adoção do novo peso argentino em 1992, cada peso passou a valer um dólar. A inflação se reduziu rapidamente e, com a paridade das moedas, muitos argentinos passaram a viver com confortos antes impensáveis: importações, viagens ao exterior, tudo ficou ao alcance.

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Como o Brasil de Lula que aproveitou o boom das commodities para aumentar a renda média e o PIB, sem no entanto modernizar a produção, Menem tirou proveito de medidas que só teriam efeito positivo no curto prazo, mas deixou o país a descoberto para o futuro.  

Abdicar da liberdade de ditar os rumos da própria economia cobraria seu preço: o governo argentino seguiu se endividando e recorrendo a auxílios do Fundo Monetário Internacional (FMI), a entrada de dólares causada pelas privatizações começou a arrefecer quando Menem já havia se desfeito das principais estatais (entre elas, a petroleira YPF, que seria renacionalizada por Cristina Kirchner em 2012).

Novas crises internacionais afetaram com força a Argentina. A crise asiática de 1997 e a quebra russa de 1998, somadas ao câmbio flutuante adotado pelo Brasil em 1999, levariam a uma perda de competitividade da Argentina no mercado exportador. 

Engolido pela crise e também por escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro e até mesmo tráfico de armas, Menem não conseguiu fazer um sucessor: o indicado de seu partido, Eduardo Duhalde, foi derrotado por Fernando de la Rúa no pleito de outubro de 1999. Herdando uma economia em retração, De la Rúa não fez as reformas necessárias: temendo o custo de popularidade que a desvalorização do peso traria, buscou manter a paridade com o dólar, ao mesmo tempo em que aumentava a dívida pública. 

Em mais uma mostra de continuísmo, De la Rúa deu a pasta da Fazenda ao economista Domingo Cavallo — o ex-ministro responsável por iniciar a “convertibilidade” nos dias de Menem. “Era o ‘super-ministro’, como ficou conhecido, um dos principais responsáveis pelos rumos que o país tomou a partir de 1991”, assinala o historiador Matias Pinto, apresentador do podcast Conexão Sudaca, sobre história e cultura da América do Sul. “Suas medidas tiveram como consequências a balança comercial desfavorável, fuga de capitais e queda da indústria nacional. Ou seja, a corrupção e a política econômica eram um contínuo entre Menem e De la Rúa”. 

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A explosão de 2001 

Manifestante com máscara do então ministro da economia Domingo Cavallo protesta em frente à Bolsa de Valores de Buenos Aires, em dezembro de 2001, durante uma das piores crises econômicas enfrentadas pelo país 

Com o país em uma rápida espiral para o fundo do poço, 2001 marcaria o mais grave momento econômico vivido pela Argentina desde a Grande Depressão. Ao final do ano seguinte, a economia argentina registraria uma contração de 20% desde 1998 e o desemprego formal superaria a casa dos 25%. O governo De la Rúa foi definitivamente inviabilizado em dezembro daquele ano, quando Cavallo anunciou o chamado “Corralito”: o congelamento de depósitos e a restrição a saques bancários, com o objetivo de evitar uma corrida aos bancos e uma fuga ainda maior de dólares do país. 

A população imediatamente tomou as ruas em resposta. Sem apoio e com as avenidas de Buenos Aires lotadas de manifestantes, De la Rúa renunciaria ao cargo em 20 de dezembro de 2001, apenas dezoito dias após o lançamento do Corralito. O vice de De la Rúa já havia pedido afastamento anteriormente, e a Argentina viveu um vácuo de poder sem precedentes, semelhante ao que pode ocorrer no Brasil em caso de renúncia de Michel Temer: nas duas semanas seguintes, o país teria quatro presidentes em exercício diferentes. 

De la Rúa deu lugar ao presidente do Senado, Ramón Puerta, que governou o país por três dias até a eleição indireta de Adolfo Rodríguez Saá. Uma semana depois, foi a vez de Saá renunciar por falta de apoio, dando início a uma nova gestão provisória, agora do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Camaño, que permaneceu como interino por quatro dias. Finalmente, outra eleição indireta no Congresso decidiu que o novo presidente da Argentina deveria ser o peronista Eduardo Duhalde — o político derrotado por De la Rúa nas eleições de 1999 — que assumiu em 2 de janeiro de 2002. 

Em meio à crise, a Argentina ainda anunciou o calote à dívida externa, e acabaria por dar fim à paridade de sua moeda com o dólar. Na prática, a paridade já não existia: moedas paralelas já circulavam nas diferentes províncias do país (em Buenos Aires, por exemplo, usava-se o chamado “bono patacón”), e estrangeiros que visitavam a Argentina eram coagidos a pagar suas contas em dólar, mesmo que oficialmente o peso ainda tivesse valor equivalente. Quando a Lei de Convertibilidade foi revogada, ainda em janeiro, a moeda entrou rapidamente em colapso: já nos primeiros dias, eram necessários quatro pesos para comprar um dólar (hoje, a cotação está em 16 pesos por dólar). 

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Os efeitos de 2001 ainda são sentidos. “Apesar da ligeira recuperação econômica no governo Néstor Kirchner (2003-2007), o argentinos ainda convivem com uma sociedade dolarizada, devido à desvalorização crescente do peso”, diz Matias Pinto. “Centenas de milhares de trabalhadores nunca recuperaram os seus postos e subsequentemente o seu padrão de vida, gerando a diminuição da classe média e a emigração da mão-de-obra qualificada, principalmente no meio acadêmico”, aponta o historiador. 

As lições argentinas para o Brasil de 2017 

Quando a crise apertou, os argentinos recuperaram uma antiga tática de protesto surgida nos anos 70, no Chile, e utilizada pelos opositores do socialista Salvador Allende: os panelaços. O ruído das panelas batendo também soou no Brasil nos últimos anos, cada vez que a ex-presidente Dilma Rousseff fazia um pronunciamento em rede nacional.

No Brasil de 2017, como na Argentina de 2001, os políticos convivem com um descrédito em todos os níveis, e a economia vai mal. Mas há um ponto importante que os estudiosos consideram a grande diferença entre os dois casos: lá, a crise política foi um combustível a mais para o drama econômico; no Brasil, é o contrário. 

“Aqui, o elemento da crise política é mais grave do que a economia, embora o Brasil tenha dois anos de recessão. O que aconteceu na economia argentina não é em nada comparável ao que os brasileiros vivem: havia fechamento de fábricas, havia moedas paralelas por província, havia assembleias populares em Buenos Aires”, diz o cientista político Javier Vadell, professor da PUC-MG. 

Para Vadell, os pontos de contato devem ser procurados na falta de apoio popular: “De la Rúa chega ao poder com o apoio da classe média, em uma situação muito crítica, e propõe ajustes parecidos aos que o governo Temer está implementando agora. Mas, na Argentina, é a própria classe média que mais sofre com os ajustes. No Brasil, agora, não há um consenso na sociedade brasileira quanto às reformas, e o governo também sofre uma crise de legitimidade”.

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Mesmo assim, Vadell considera que a presença nas ruas brasileiras hoje é muito pequena para ser comparada à vista no país vizinho: “na Argentina o povo fica mais na rua. Isso constrange mais, muito mais, um governo impopular. Essa questão não é uma variável menor”.  

No que diz respeito à economia, argumenta Hernán Ramírez, “o ponto em comum é que a crise foi apressada artificialmente com manobras de choque de mercado”.

“A coincidência que existe se concentra no fato de que os presidentes eram ou são fracos, e as coalizões governantes estavam em decomposição, com uma oposição muito forte. Na atual conjuntura, De la Rúa e Temer inclusive se parecem mais: os dois representam políticos tradicionais que, por causa de acasos, chegaram ao topo do poder”. 

Os especialistas lembram que, apesar de a crise argentina ter sido profunda e afetado a credibilidade dos políticos, no longo prazo o que aconteceu foi uma reestruturação dos grupos já existentes: refundações de partidos e novas organizações com os mesmos nomes do antigo cenário político. Nas eleições de maio de 2003, convocadas antecipadamente por Eduardo Duhalde, os dois candidatos que chegaram ao segundo turno representavam o mesmo Partido Justicialista (de viés peronista), e o mais votado no primeiro turno foi o próprio Carlos Menem – que acabou abdicando de concorrer, deixando a presidência nas mãos do segundo colocado Néstor Kirchner

No Brasil, argumenta Ramírez, “as reformas têm que ser importantes, mas não se pode extirpar ou manter no ostracismo por muito tempo uma opção política: isso gerará grande instabilidade no sistema por muito tempo. É uma reforma que precisa ser global: a falência no Brasil não é apenas da classe política – é sistêmica.”

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