A tradicional Parada do Orgulho Gay (ou LGBTI+) de São Paulo levou milhões às ruas hoje. E mais não digo. Não digo porque não posso dizer. Como consequência de uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal, qualquer coisa que eu escreva aqui pode ser usada contra mim no futuro se o leitor, por ignorância ou má-fé, entender que estou sendo homofóbico.
E de nada adiantará eu recorrer à minha biografia para me defender. Se eu disser, por exemplo, que não sou homofóbico porque convivo com pessoas que se enquadram naquela famosa sigla, dirão que só convivo com elas para poder usá-las como escudo retórico.
Nossas convicções: Liberdade de expressão
No meu caso, são vários os agravantes que me impedem de contar o que aconteceu na Parada de Orgulho LGBTI+ hoje. Não bastasse ser homem, sou também branco, cristão, de classe média, sem nenhuma deficiência assim mais aparente e, pecado dos pecados, heterossexual – apesar dos modos que mais de um amigo já comentou serem bastante delicados. Meu lugar de fala, hoje, é o silêncio.
E é por isso que não posso falar sobre nada do que aconteceu. E muitas coisas aconteceram, suponho. Porque o próprio objetivo de um desfile idealizado como manifestação política é fazer acontecer algo digno de nota, algo de relevante, talvez até algo de revolucionário, algo de controverso que, como a própria palavra sugere, tem dois lados necessariamente antagônicos, o que não quer dizer que sejam dois lados necessariamente hostis.
Efeito colateral
A decisão do STF de criar o crime de homotransfobia tem, como todas as medidas autoritárias travestidas de bondade, um efeito colateral extremamente danoso para a saúde da democracia, essa dama que costumava dormir em sedosos lençóis de liberdade: ela simplesmente torna invisível, quando não marginaliza ou lega ao calabouço (físico ou moral), qualquer debate sobre essa característica (ou conjunto de características) comum que levou milhões às ruas de São Paulo.
Ela também inviabiliza qualquer forma de humor que use estereótipos associados a essas pessoas que têm orgulho de si mesmas, mas não, curiosamente, dos estereótipos associados a elas. Porque parte dessas pessoas considera os estereótipos ofensivos, capazes de ferir a dignidade, sufocar a autoestima, estrangular a honra dos atingidos. Palavras ferem, dizem – e há quem acredite. Pior: há quem as criminalize. Só espero que o humor autodepreciativo ainda esteja protegido pelo desgastado Artigo 5º da Constituição, porque sou uma drama queen – e ninguém vai tirar isso de mim.
“Quem não deve não teme”, logo vai aparecer alguém me dizendo. Mas, neste caso, como mensurar a dívida e, consequentemente, o temor pela punição injusta? Aliás, no caso da homotransfobia aplicada à expressão, o que de tangível a justiça põe nos pratos daquela balança? Quanto pesa a palavra e quanto pesa a honra ferida? Palavras têm peso? Honra tem peso? Como condenar um homem que, por exemplo, só quis fazer rir e sem querer exagerou nas purpurinas de suas piadas?
E mais importante: como não temer uma injustiça quando se está caminhando às cegas pelo subjetivíssimo pântano do bom-senso?
Hoje houve uma parada em São Paulo. Parada do Orgulho LGBTI+. Ela levou milhões às ruas. Aconteceu isso e aquilo. E mais não digo. Não porque não queira, mas porque não posso. Porque bastam uma palavrinha a mais aqui e uma leitura amarga ali para eu ter colada em mim a pecha de um criminoso, um assassino do orgulho alheio – orgulho que, veja bem, nem a fragilidade eu posso apontar.
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