Dr. Naveen Rao, vice-presidente sênior de saúde da Fundação Rockefeller, fala durante encontro sobre saúde promovido pela revista TIME, em 17 de outubro de 2019, Nova York.| Foto: AFP

Uma comparação ajuda a entender a importância da decisão do magnata John D. Rockefeller de criar uma fundação. “Recentemente, a Fundação Bill e Melinda Gates emergiu como o player global mais renomado e influente. Um século atrás, a Fundação Rockefeller — também fundada pelo capitalista mais rico, implacável e inovador de sua época — era um player internacional ainda mais poderoso”, define Anne-Emanuelle Birn, professora da Universidade de Toronto, no artigo Philanthrocapitalism, past and present: The Rockefeller Foundation, the Gates Foundation, and the setting(s) of the international/global health agenda.

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Fundador e controlador da empresa de exploração e distribuição de petróleo Standard Oil, Rockefeller criou uma instituição tão poderosa em 1913 que, 35 anos depois, a Organização Mundial da Saúde foi fundada seguindo os parâmetros estabelecidos pela Fundação Rockefeller. A entidade havia se tornado sinônimo de política pública de saúde de alcance planetário.

No auge da carreira, no fim do século 19 Rockefeller havia dominado 90% de toda a produção de petróleo, e seu patrimônio pessoal equivalia a 2% de todo o Produto Interno Bruto dos Estados Unidos. Entre a década de 1910 e sua morte, em 1937, ele se dedicou à filantropia.

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Foco na saúde

John D. Rockefeller transformou a filantropia numa ação de nível planetário, mas não foi ele quem inventou o conceito. Desde a década de 1880, outro magnata, este do ramo do aço, Andrew Carnegie, já defendia que toda pessoa muito rica deveria dedicar uma parte de sua fortuna a melhorar a humanidade de formas mais produtivas do que simplesmente doar para a caridade. Como aponta Anne-Emanuelle Birn, essa era uma decisão que trazia dois retornos importantes: em termos políticos, ampliava a influência do investidor, que se tornava capaz de moldar ações de governos de todos os cantos do mundo.

Em termos financeiros, também havia uma recompensa: “Na América do Norte, fundações filantrópicas não pagam a maior parte das taxas, e as contribuições recebidas, tanto individuais quanto empresariais, também são dedutíveis, de forma que instituições filantrópicas privadas são parcialmente subsidiadas pelo contribuinte, que não tem voz na definição de como o dinheiro vai ser investido”, explica a pesquisadora.

“O senhor Rockefeller não poderia encontrar seguro melhor para sua fortuna do que investi-la para subsidiar as agências que buscam progresso social”, comentou, em 1915, o advogado Frank Walsh, que conduziu uma investigação a respeito da fundação.

Assim como a Fundação Ford, que surgiria duas décadas depois, a Fundação Rockefeller atuou — e atua — em diferentes frentes, do financiamento de veículos de imprensa supostamente independentes ao investimento em instituições acadêmicas. Mas, no caso dos Rockefeller, principalmente nas primeiras décadas de existência da fundação, o principal foco estava nas políticas de saúde.

Ações de porte para extinguir doenças tropicais se espalharam por dezenas de países. Logo nos primeiros anos, a fundação financiou a construção de 25 faculdades dedicadas ao tema, instaladas nas Américas do Norte e do Sul, na Europa e na Ásia.

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O envio de agentes de saúde era antecedido por investimentos pesados em pesquisa — antes mesmo de criar a fundação, Rockefeller já tinha sido decisivo na criação das universidades de Yale, Harvard, Columbia e Chicago. O magnata fazia questão que a abordagem dos problemas de saúde fosse a mais científica possível. “A fundação não apenas popularizou, praticamente sozinha, o conceito de cuidado com a saúde em nível internacional, como também exerceu uma enorme influência sobre a agenda, a abordagem e as ações nesse setor”, escreve Anne-Emanuelle Birn.

Revolução verde

Como parte do esforço para melhorar a saúde global, a fundação investiu na chamada “revolução verde”, que tinha por objetivo melhorar a produtividade da agricultura — curiosamente, esta também é uma das principais metas contemporâneas da Fundação Bill e Melinda Gates.

“A fundação Rockefeller foi um agente importante na promoção do desenvolvimento de uma nova ciência agrícola”, escreve o professor John H. Perkins no artigo The Rockefeller Foundation and the Green Revolution, 1941-1956. Seus programas no México e na Índia foram decisivos para difundir novas práticas agrícolas. Um pesquisador da fundação, Norman E. Borlaug, ganhou o prêmio Nobel de 1971 em função dos seus esforços na direção de aumentar a produtividade das plantações.

Por outro lado, as novas técnicas acarretaram problemas ambientais graves. “Os críticos argumentam que a revolução verde resultou no desaparecimento da diversidade genética, resultado do uso exaustivo de pesticidas e fertilizantes”, escreve o professor Perkins. Além disso, ele alega, a falta de preocupação com a melhoria na distribuição dos alimentos resultou em desperdício e aumento das desigualdades sociais.

No Brasil, a fundação se instalou já em 1916, no Rio de Janeiro, com campanhas para tratar problemas endêmicos, como a dengue, a febre amarela e a ancilostomose. Na época, o médico Plácido Barbosa comentou a chegada dos americanos: “Mas que vergonha! Eles estão nos passando atestado de incompetência. Os recursos que estão nos propondo não são dinheiro, mas atividade e eficiência. São os nossos ricos vizinhos, orgulhosos, bem-educados e cheios de compaixão, que batem à nossa porta para pedir licença para limpar nossas casas das pestilências que não conseguimos eliminar. Só temos que lhes desejar boas-vindas e aplaudi-los, mas vendo que nosso país é obrigado a admitir sua incapacidade de resolver seus problemas administrativos, todavia tão pouco complicados, só nos resta enrubescer de vergonha”.

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Defesa da eugenia

Em 1923, a campanha da fundação para combater a febre amarela motivou o médico sanitarista Belisário Penna a escrever uma carta crítica ao médico e político Raul Leitão da Cunha. “Se algum dia nos advier alguma contrariedade por aceitarmos a colaboração da Rockefeller, não se dirá que não foi ela prevista e denunciada”, ele escreveu.

“A fundação filantrópica permaneceu no Brasil por décadas, angariando prestígio e ambição. Em um contexto geral, trabalhar para a Rockefeller era uma posição almejada, afinal, em termos financeiros, ganhava-se muito mais se comparado ao valor pago pelo governo brasileiro”, relata o historiador Leonardo Dallacqua de Carvalho no artigo Soberania Nacional em Risco: uma crítica de Belisário Penna à ação da fundação Rockefeller no Brasil (1923).

Nos anos 30, a parceria com o presidente Getúlio Vargas levou à eliminação do mosquito Anopheles gambiae, transmissor de malária. Mas, a partir de meados dos anos 1940, a fundação reduziu suas operações no país, ainda que suas práticas tenham sido incorporadas pelos órgãos locais de saúde pública.

Havia uma certa eugenia nas ações da fundação no Brasil — ou seja, uma proposta de “regenerar” a raça humana a partir de ações sanitaristas. “Na década de 1920, enquanto os Estados Unidos e a Alemanha se esforçavam em desenvolver uma raça pura, os cientistas brasileiros se esforçavam para se livrar da acusação de ‘degenerescência mulata’”, informam as pesquisadoras Elisabete Kobayashi, Lina Faria e Maria Conceição da Costa no estudo Eugenia e Fundação Rockefeller no Brasil: a saúde como proposta de regeneração nacional . “A Fundação Rockefeller participou do movimento eugenista brasileiro, por uma via alternativa, por meio do movimento sanitarista”.

Atualmente, a Fundação Rockefeller mantém suas atividades, ainda que tenha perdido relevância e impacto. O foco na saúde pública se mantém, agora mais voltado à África. Um projeto recente, anunciado em setembro deste ano, promete investir US$ 100 milhões para prevenir 6 milhões de mortes até 2030. Sinal de que suas práticas continuam semelhantes e ainda influenciam o trabalho de fundações contemporâneas, em especial a de Bill Gates.

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