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O conhecimento só é alcançado pelo reconhecimento da legitimidade da opinião contrária
O conhecimento só é alcançado pelo reconhecimento da legitimidade da opinião contrária.| Foto: Pixabay

A origem do conhecimento, se acontece no agente, no investigado ou, como sugeriu Sócrates, na interação entre ambos, ainda é uma discussão aberta na filosofia. Não seria exagero algum conjecturar que quase todos os grandes filósofos se debruçaram sobre a temática da origem do conhecimento.

“Então diante de tantas diferenças entre conhecimento e percepção sensorial, designarás ambos com a mesma palavra?” (Sócrates – Do conhecimento 186d)

Na obra: Do conhecimento, no entanto, Platão relata um diálogo no qual Sócrates defende que o desejo pelo conhecimento vem antes de dentro do próprio indivíduo, puxado para fora pelo educador, como num parto. Tal parto do conhecimento, para o filósofo ateniense, se daria por meio do diálogo, da conversa, do debate, da maiêutica ― técnica de questionamentos que faz com que o entrevistado chegue à verdade por meio das respostas que ele mesmo vai construindo e costurando ao longo da conversa.

“Com efeito, partilho do seguinte com as parteiras> sou estéril em matéria de sabedoria. A censura que tem sido dirigida amiúde a mim, isto é, de que interrogo as outras pessoas, mas que eu mesmo não dou resposta alguma a nada porque não possuo nenhuma sabedoria em mim, é uma censura procedente. E a razão para isso é a seguinte: o deus compele-me a atuar como parteiro, mas sempre proibiu-me que desse à luz”. (Sócrates – Do conhecimento 150c).

Entendia o filósofo que ele mesmo era estéril em conhecimento puro, que nenhuma inteligência aflorava naturalmente dele, mas que era preciso que alguém despertasse nele as conjecturas que o tornavam um homem mais sábio.

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Para Sócrates, o diálogo é o primeiro construtor de conhecimentos; aquilo que traz à luz as verdades particulares que, posteriormente, escalará às verdades supremas. A fim de que tal conhecimento aflore, no entanto, é necessário resiliência, interesse educacional, capacidade de argumentação e respeito pelas teorias e ideias divergentes. O que Teeteto haveria apreendido de Sócrates se, logo na primeira resposta tola do adolescente aprendiz, o rabugento pensador barbado tivesse se saído com um insulto de baixo calão? Reconhecer nas ideias opositoras uma estrada promissora para a verdade, liberdade e autodescobrimento é o exercício primordial para a humildade e para a reta consciência filosófica. É o início de uma anamnese intelectual verdadeira.

Dialogar não é praticar ecumenismo com o erro nem queimar os errados

No entanto, ser favorável e, de certa maneira, dependente do diálogo para a formulação de conhecimentos vigorosos, não é o mesmo que agir com falta de coragem e buscar no relativismo respostas fáceis para as questões centrais da humanidade. Após certo conhecimento adquirido, a razão humana está imbuída da capacidade de julgar e perceber, a partir própria realidade, certas restrições morais inerentes aos indivíduos. Como disse o crítico literário suíço Jean Starobinski: “Às vezes, a natureza, tão benevolente em sua maternal solicitude, nos lembra do limite que nos impôs”.

Desse ponto em diante, se opor a erros naturalmente identificados pela essência mesma do indivíduo passa a ser um dever moral que todos nós deveríamos cumprir. Sobre isso, diz Joseph Ratzinger que “existem valores em si que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”.

No entanto, não significa que tal dever moral tenha que ser imposto por meio da censura e da caça moral de adversários. Da mesma forma que seria imoral não balizar nossos anseios transloucados e primitivos, é igualmente errado suplantar a liberdade que outros têm de serem conscientemente imorais ou idiotas. O erro deve ser combatido e a busca pela verdade necessariamente passa pela condenação da não-verdade, mas entendam que estamos falando de condenação de ideias e não de seus portadores. Se a liberdade que tanto cantamos em nossa democracia é realmente livre, até a opção de sermos conscientemente burros deve ser levado em conta.

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O debate franco é o único campo em que a efetiva queima de (más) ideias é permitida sem que caiamos em tirania. O debate permite que as ideias errôneas sejam suplantadas, visões distorcidas sejam adequadas ao real e os sofistas sejam desmascarados. Mas nenhum desses processos inclui o achincalhamento moral de indivíduos e nem a orquestração de ataques de manadas a pessoas determinadas.

Lição número um: não confundir queima de más ideias com queima de detentores de ideias ― obviamente que muitos detentores de ideias, no processo de imanentizá-las, se tornam confessos criminosos, e para tais casos existem os devidos processos jurídico-criminais. No entanto, nem todos os portadores de ideias erradas são certamente criminosos. É sempre bom lembrar de tal regra, pois, o verbo “queimar” não se trata de mero sentido figurativo e nem de liberdade de escrita. Tais queimas de fato ocorreram e ocorrem ainda hoje.

A prudência para condenar indivíduos por causa das suas ideias deve vir acompanhada da lembrança de que podemos ser nós os sofistas do baile, aqueles que atuam além da linha da verdade, montando de maneira rebelde a nossa própria realidade com as peças do Lego ideológico que encontramos por aí, em livros ou redes sociais. Assim sendo, o questionamento retórico de Machado de Assis é sempre válido para aqueles que são rápidos em condenar sem ao menos conhecer e debater as ideias de seus interlocutores. Afinal, pergunta o escritor, “quem nos afirma que o alienado não é o alienista”?

Superando a pós-verdade

No diálogo O Sofista, Sócrates afirma que a ignorância é o ato de negarmos os fatos autoevidentes que contrariam as nossas ideologias, mesmo após receber a cartada final da verdade, mesmo após a realidade ser esfregada em nossas fuças. Sobre tal intento moderno de suplantação da realidade, comenta o psicanalista Jordan Peterson:

“A mente orgulhosa e racional, confortável com sua certeza, enamorada do próprio brilhantismo, é facilmente tentada a ignorar o erro e varrer a sujeira para debaixo do tapete. Os filósofos existencialistas literários, começando por Søren Kierkegaard, conceberam esse modo de Ser como 'inautêntico'. Uma pessoa inautêntica continua a perceber e agir de maneira que a própria experiência demonstrou serem falsas. Ela não fala com a própria voz”.

As nossas ideologias (ideias transformadas em religião civil) ― inimigas da realidade ― assumem orgulhosamente a característica de pseudoverdades a fim de ocupar o lugar da própria realidade que as rejeitou. A isso denominamos de “pós-verdade”: a ideia formatada que se coloca à frente do certo e do errado, que de tão particular, intocável e identitário se identifica como algo além da própria realidade.

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No final, os mais ou menos sensatos sabem que não passa da velha e desgastada falsificação da realidade; o mesmo truque que Satanás usa desde o famigerado fruto da árvore do bem e do mal, a tática demoníaca que levou John Milton a classificar o inimigo de Deus como o pai da mentira em Paraíso perdido. Diz Peterson: “Apenas a filosofia mais cínica e sem esperança insiste que a realidade poderia ser melhorada pela falsificação”.

De maneira firme e irrevogável, eis o Baal que religiosamente deveríamos combater em nome da realidade e do reto conhecimento. É ele mesmo o antidebate, o antidialética, o antiliberdade. Diante da pós-verdade, não há o que dizer: trata-se de um novo dogma ex cathedra promulgado no altar do progresso relativista. O relativismo, dessa maneira, ergue o maior dogma de todos: “Não há debate possível, pois tudo é verdade e nada é contestável. Afinal, a verdade está antes em minhas ideias do que na realidade”. A partir dessa mentalidade tudo passa a ser justificável. Tal atitude é, para Sócrates, a negação mesma do conhecimento.

“Então, o que ficou demonstrado que o sofista possui relativamente a tudo (a todos os assuntos) é uma espécie de conhecimento baseado na mera opinião, e não conhecimento verdadeiro” (Sócrates – O sofista 233c).

Construindo conhecimento

Tanto o antissemitismo quanto o aborto de bebês humanos são males autoevidentes e, ainda que culturas e objeções modernas possam tentar descaracterizar as suas asquerosidades, o mínimo de sinceridade intelectual e percepção crua da realidade bastariam para se compreender o erro que ambas as propostas carregam em seus bojos. Como aspirante a filósofo, “me [é] inteiramente vedado admitir uma falsidade ou destruir a verdade” (Sócrates – Do conhecimento 151d. Grifo meu). Na era da pós-verdade, contudo, matar judeus em nome de uma ideologia soou como um mal aceitável, assim como matar bebês humanos passou a ser considerado legítimo em nosso tempo, tendo em vista qualquer retórica política progressista que porcamente oferece um porquê esfarelado em patéticos arroubos de sensibilidade social.

Ainda assim, vejam, a própria oposição a tais ideias descabidas configura um contexto de debate. Se a sociedade moderna nos impõe a pauta do aborto legalizado, por mais absurdo que julgamos ser a ideia em si, isso definitivamente não deveria nos impedir de debater o assunto, nem que seja com a intenção de mostrar seu mais fulcral contrassenso.

Ou seja, para vencermos a pós-verdade e o pensamento dogmático dos reacionários e dos progressistas só há um caminho possível: mais debates, mais livre circulação de ideias, menos censura e mais respeito aos divergentes.

É num sincero debate que se forja vigorosos argumentos e, se o contraditório nunca for colocado, as apologias de nossas próprias ideias naturalmente tendem a se atrofiar e morrer por inanição. A oposição, ainda que absurda, tem a virtude de estimular o aprofundamento das defesas das retas questões.

A escola austríaca jamais seria o que é hoje se não existissem as teorias contrárias dos economistas estatistas, já que muito dos esclarecimentos internos da própria teoria liberal se deram por meio das contestações de seus opositores. O que seria do calvinismo e da sua “teologia da eleição”, por exemplo, sem o duro contraponto do clássico “livre arbítrio” católico? Por vezes parece que o absurdo arregimenta o sensato e, por mais basbaque que seja uma oposição malfeita, o seu argumento pode melhorar sensivelmente ao respondê-la.

Se a pauta se apresenta na sociedade é porque há quem a defenda e, se há quem a defenda, o debate é o meio legítimo de se instaurar uma escola de conhecimento verdadeiro e a derrubada legítima dos sofismas. Sócrates com certeza debateria com uma abortista, assim como Cristo andou com prostitutas. Não porque se compadecessem das ideias e ideais de vida que seus companheiros de tertúlia apresentavam, mas porque seus interlocutores eram verdadeiros terrenos férteis para o cultivo do Logos, isto é, da verdade que liberta. Sem falar que, não raro, somos nós os sofistas com ideias absurdas que merecem ser corrigidas. Não raro somos nós a moça do poço de Jacó, com deuses e maridos estranhos.

O medo do debate e a tática de manada

A modernidade, no entanto, assentada nos pilares da liberdade democrática moderna, parece ter relaxado em seu dever de respaldar as liberdades de crença e expressão. Ora, se o debate é o caminho para o conhecimento e se debater pressupõe dois lados discordantes, sem a liberdade para crermos e nos expressarmos diferentemente não há conhecimento possível. Não é à toa que, numa ditadura, o conhecimento real só consegue aflorar quando encontra qualquer ilha de liberdade contestativa ― seja tal liberdade real ou fantasiosa.

Mas o debate no Brasil está sendo previamente repelido por castas dogmáticas. Dois grupos ― um à direita e outro à esquerda ― que previamente anulam qualquer diálogo possível com processos judiciais, achincalhamentos virtuais, codinomes, pechas e desmoralizações pessoais. Antes mesmo de se instaurar uma conversa sensata e uma franca troca de argumentos, tais gados ideológicos encerram os assuntos num incêndio assustador de frases prontas, xingamentos e ameaças. Usam verdadeiras táticas de guerrilha para proteger os seus amos e as suas ideologias.

A primeira e última lição da filosofia

O debate está em extinção em terra tupiniquim, seja pela hegemonia universitária que se fecha numa bolha bizarra de militâncias progressistas, seja na Internet, onde a direita-manada atua como inquisidora daqueles que divergem do Sistema Único de Pensamento Aceitável (SUPA). O fato é que não adianta assistir a 300 aulas de filosofia e ler 1000 livros sobre humanidades se, no final de sua jornada ostentadora, você não entendeu a primeira lição do pai da filosofia: a dialética (debate) é o único caminho para o conhecimento.

Se você sequer entendeu que a opinião opositora é o caminho para a sua grandeza intelectual, que respeitar minimamente os divergentes é o mesmo respeitar O próprio conhecimento, que buscar num debate a vitória da verdade é um ato de caráter e de nobreza civilizacional, se você não entendeu isso ainda, então você sequer fez a matrícula para a caminhada filosófica.

Geralmente, diante de um questionamento difícil, a principal resposta de Sócrates era: “não sei, mas creio que podemos responder juntos se debatermos”. É simplesmente a mais desconcertante argumentação da milenar história da filosofia até os dias atuais. Ninguém vai debater com um notório sábio esperando um “não sei”. Ou seja, até Sócrates dizia: “não sei”. Mas o jovem internauta conservador e a militante psolista têm todas as respostas, opiniões e soluções para o Homem e para o mundo. Aqueles que nunca lavaram as próprias roupas têm o antídoto gnóstico para salvar o planeta e sanar as misérias da humanidade. Sócrates não sabia, mas os militantes de ciências sociais da USP sabem.

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