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Ilustração do artista Airá Ocrespo para a capa do livro 'Longe do Ninho', de Daniela Arbex.
Ilustração do artista Airá Ocrespo para a capa do livro ‘Longe do Ninho’, de Daniela Arbex.| Foto: Divulgação/Editora Intrínseca

Na última quinta-feira (15), a Justiça condendou o Flamengo a pagar R$ 2,9 milhões à família de Christian Esmerio, um dos dez adolescentes mortos no incêndio ocorrido no Ninho do Urubu, o centro de treinamento do time, em 2019. Os pais de Esmerio eram os únicos que ainda não haviam feito um acordo com o Rubro-Negro. No entanto, como a decisão é de primeira instância, o clube ainda pode recorrer.

Recém-lançado pela editora Intrínseca, o livro 'Longe do Ninho: Uma Investigação do Incêndio que Deu Fim ao Sonho de Dez Jovens Promessas do Flamengo de se Tornarem Ídolos no País do Futebol', da jornalista Daniela Arbex, conta a história de cada uma das vítimas fatais da tragédia. Também traz provas de que o clube recebeu, ao longo de sete anos, inúmeros alertas por parte do poder público para evitar o pior — como mostra o trecho que selecionamos a seguir.

Apesar do vultoso aporte de recursos nas instalações do futebol profissional no Ninho do Urubu, a categoria de base não recebeu a mesma atenção. Entre os anos de 2016 a 2018, os adolescentes foram mantidos nos módulos operacionais em contêineres, apesar das diversas ressalvas feitas pela Promotoria de Defesa da Infância e Juventude e pelo Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor, o Gaedest.

Desde 2012, aliás, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) já demonstrava preocupação com as condições oferecidas pelo clube aos atletas em formação. Naquele ano, um inquérito civil foi instaurado após um adolescente que treinava no Ninho do Urubu levar 33 pontos na perna esquerda, em função de um corte que sofreu no canteiro de obras do CT.

O inquérito levou à realização de diversas diligências por parte da equipe do MPRJ, com foco inicial na saúde individual dos jovens atletas da base do clube e no envio de sugestões para a melhoria da área médica. O objetivo era que os direitos fundamentais da criança e do adolescente fossem observados, a partir da contratação de um profissional de emergência para apoio em procedimento de urgência e da implantação de ambulâncias no local, com equipe de suporte para o transporte de atletas vítimas de acidente.

As diligências culminaram, inclusive, na fiscalização dos centros de treinamento de outros clubes de futebol do Rio e seus respectivos alojamentos para atletas em formação. Em razão disso, nasceu uma parceria institucional entre o MPRJ e o Ministério Público do Trabalho (MPT), resultando não só na colaboração entre os órgãos, mas também na elaboração de um Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto, em 2014, pelos órgãos ministeriais para o Rubro-Negro.

O Flamengo foi notificado por meio do presidente Bandeira de Mello. Ele se recusou a assinar o TAC, que previa não só mudanças em relação aos aspectos de saúde, como “a regularização da situação precária dos atletas da categoria de base”, com “a adequação da estrutura física do espaço destinado ao acolhimento dos adolescentes residentes”.

Embora Bandeira de Mello admitisse o não cumprimento de uma série de condições, o presidente alegou, em manifestação assinada juntamente com o diretor jurídico Bernardo Accioly, que “as medidas estavam sendo providenciadas e/ou adequadas nos termos da legislação específica” e, por isso, o clube pedia o arquivamento do inquérito.

Entre os motivos elencados para a recusa de assinatura do acordo por parte do Flamengo, estava a cláusula que previa a formalização dos contratos de aprendizagem, com auxílio financeiro de bolsa aprendizagem no valor não inferior ao salário mínimo, à época, fixado em R$ 724.

A alegação do clube era de que o auxílio financeiro poderia ser livremente pactuado entre as partes. Os contratos de formação pagos pelo Flamengo variavam de R$ 300 a R$ 500, na categoria infantil, cuja faixa etária é de 13 a 15 anos, e podiam chegar até R$ 750 na categoria juvenil, que corresponde às idades entre 15 e 17 anos.

Outros itens alvos de discussão foram a necessidade de contratação de mais monitores para o período noturno — um por turno para cada dez atletas — e a adequação da estrutura física do espaço destinado ao acolhimento dos garotos.

Como parte dos apontamentos não foi atendida, incluindo a contratação de mais monitores, a questão foi judicializada em 2015. A Promotoria propôs o ajuizamento de ação civil pública que pretendia a interdição imediata do alojamento da base, o que só ocorreria após o incêndio de 2019, quase quatro anos depois.

A ação proposta ainda em 2015 cobrava não só a melhoria das condições de alojamento, segurança e saúde dos atletas em formação, mas também a regularização do CT junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). O registro no conselho só foi feito pelo Flamengo após a solicitação da Promotoria.

Na época, houve nova tentativa de celebração de um TAC, contudo o clube continuou se recusando a fazê-lo, sob a alegação de ter “atendido integral mente” a todos os itens de segurança e às exigências legais relacionadas às instalações oferecidas para os adolescentes e à ampliação do quadro de profissionais

Em 2016, durante novas visitas técnicas ao CT, para verificar se os problemas encontrados quatro anos antes haviam sido sanados, a equipe de psicologia da Promotoria da Infância e Juventude apontou melhorias em relação ao quadro observado em 2012, como a redução da carga horária de treinamento diário dos meninos — de quatro horas para três —, o oferecimento de transporte para os atletas jovens — antes o clube não arcava com esse custo — e a liberação do uso de telefones da agremiação para o contato dos garotos com suas famílias.

A equipe técnica do serviço social também ressaltou avanços encontrados no CT, como o registro feito no CMDCA-Rio, a contratação de profissional de pedagogia para integrar a equipe técnica e de educadores na perspectiva de uma atuação 24 horas com os adolescentes residentes. Citou, porém, a necessidade de melhorar a ambiência, “em particular a dada no alojamento contêiner”.

Em outro relatório, o Grupo de Apoio Técnico Especializado do Ministério Público do Rio de Janeiro (Gate Saúde) também destacou melhorias em relação a 2012, como o aumento da área física do Departamento Médico, embora sem espaço suficiente para absorver os serviços oferecidos, entre os quais a fisioterapia. Os técnicos periciais ainda reiteraram que o CT continuava sem ambulância básica ou avançada para transporte de atletas vítimas de acidentes.

Em resposta aos apontamentos, o diretor jurídico do Flamengo, Bernardo Accioly, informou ao Ministério Público, em 22 de março de 2017, que o CT estava com as obras concluídas em plena utilização desde a pré-temporada daquele ano e que o Flamengo possuía o Certificado de Clube Formador, obedecendo “a todas as exigências legais impostas pela Lei nº 9.615/98 em relação às instalações e ao quadro de profissionais que acompanham os jovens atletas”.

Em maio de 2017, em mais uma vistoria técnica no CT, realizada a pedido da Promotoria da Infância e Juventude, um técnico pericial do Gate, da área de arquitetura e urbanismo, constatou “significativas alterações nos componentes construtivos”. Na ocasião, ele destacou a mudança dos atletas residentes da categoria de base para uma edificação nova (no caso, os módulos operacionais em contêineres), informando que “os cômodos que compõem o alojamento se encontram em condições apropriadas ao uso dos residentes”.

Em 8 de dezembro de 2017, o gerente jurídico, André Galdeano, informou à Promotoria da Infância e Juventude sobre as melhorias que implementara no CT do Flamengo, como um plano de contingência para casos emergenciais — no lugar da exigência de uma ambulância —, a renovação do registro no CMDCA, a readequação dos planos de trabalho da psicologia, da assistência social e da pedagogia e, ainda, a mudança de layout nos contêineres utilizados como dormitório pelos atletas da base para melhor atendê-los, conforme recomendações do Ministério Público.

Em 18 de junho de 2018, nova vistoria técnica foi feita pela equipe do Grupo de Apoio Técnico Especializado do MPRJ no centro de treinamento. Na ocasião, o médico Victor Augusto Louro Berbara, designado para a tarefa, descreveu como precária a situação da casa de alvenaria onde os atletas em teste no Flamengo ficavam alojados. Também ressaltou a existência de um extintor de incêndio vencido havia mais de dois anos no local.

Sobre o alojamento da base, ele informou — novamente — à instituição que os jogadores estavam “acomodados provisoriamente” em contêiner. O que o médico não sabia é que os módulos operacionais, aos quais ele mesmo se referia, não constavam como área edificada no último projeto de licenciamento municipal do CT, aprovado pela Prefeitura do Rio dois meses antes. No projeto protocolado junto à prefeitura, a área em questão não estava descrita como dormitório, mas como estacionamento.

No relatório enviado à Promotoria, o perito citou o número reduzido de instalações sanitárias no alojamento dos atletas da base e a falta de área física no dormitório para o desenvolvimento de atividades de leitura, estudo e lazer. Além disso, fez apontamentos preocupantes:

Quanto ao período noturno, persiste a presença de apenas um monitor, responsável tanto pela casa quanto pelo contêiner onde ficam os jogadores federados. Este funcionário seria o responsável pelo primeiro atendimento a uma eventual situação de emergência, acessando a ambulância conveniada ao clube. O único monitor presente ao tempo da vistoria não foi capaz de responder, com segurança, aos questionamentos feitos por este técnico pericial em relação a uma possível situação de emergência noturna.

Na conclusão do relatório, o perito afirmou que a área destinada aos atletas da base, ainda que provisória, era “inapropriada como alojamento”. Por último, ele fez um alerta: “Esses fatos, mesmo levando-se em consideração a grande capacidade técnica e experiência dos médicos do clube, podem trazer dificuldades em caso de uma situação de grande emergência.”

O último relatório sobre a base do Flamengo feito antes do incêndio foi recebido pelo Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor em setembro de 2018. Nele constava a informação de que os atletas continuavam em “alojamento provisório”, mas seriam transferidos em novembro daquele ano para o antigo prédio dos jogadores profissionais, que, por sua vez, passariam a ocupar as novas instalações (CT2).

Em 31 de janeiro de 2019, o promotor de justiça do Gaedest, Pedro Rubim Borges Fortes, solicitou que a nova vistoria nas dependências do Centro de Treinamento George Helal fosse anexada ao inquérito civil em tramitação desde 2015. Decidiu, ainda, enviar ofício ao Clube de Regatas do Flamengo com pedido de esclarecimentos sobre o motivo da “piora das condições dos atletas adolescentes integrantes das categorias de base do clube e as providências adotadas para sanar as irregularidades”.

O Ofício nº 010/2019, de 6 de fevereiro de 2019, foi endereçado ao presidente recém-empossado do Flamengo, Rodolfo Landim. Na ocasião, o promotor Pedro Rubim deu 30 dias ao clube para esclarecer a situação do futebol de base encontrada pelo perito. Solicitou, ainda, que providências fossem adotadas para sanar as irregularidades encontradas na vistoria.

Não deu tempo. Dois dias depois daquela data, o alojamento onde 24 jogadores dormiam foi destruído pelo fogo.

De 1º de março de 2012 a 8 de fevereiro de 2019, o Flamengo recebeu, por parte de órgãos públicos do Rio de Janeiro, inúmeras oportunidades de se adequar. Já os jovens atletas vítimas do incêndio não tiveram nenhuma chance.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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