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Historicamente engajada em causas sociais, a elite artística do Brasil reduziu sua agenda a uma única pauta: a condenação severa aos envolvidos na suposta “trama golpista” contra o presidente Lula e nos tumultos ocorridos em Brasília no início de 2023.
Em shows, festivais de teatro e cinema, encontros literários e, mais recentemente, no Carnaval, o coro “Sem anistia” virou uma espécie de mantra puxado pelos artistas e repetido de forma catártica pelas plateias. Mesmo uma figura pouco politizada como a cantora Anitta embarcou na onda e conclamou seu público a repetir o refrão.
Mas não é difícil entender os motivos de tamanho apego a um lema que já foi defendido pelos apoiadores do regime de militar na época da transição democrática (quando se discutia a anistia dos presos políticos acusados de crimes). Ao direcionar toda sua crítica para os supostos golpistas, o setor cultural deixa claro o esvaziamento de sua agenda tradicional nestes dois primeiros anos do retorno da esquerda ao poder.
De 2023 para cá, o governo Lula não avançou nas pautas vendidas durante o período eleitoral, como reforma agrária, preservação do meio ambiente, demarcação de terras indígenas e igualdade de gênero (para piorar, um ministro de Estado, logo o dos Direitos Humanos, foi demitido por denúncias de assédio sexual contra mulheres).
E, como se não bastasse o descaso com esses temas tão caros à classe artística, a gestão do PT ainda se mostra desastrosa no campo econômico. Só sobrou, portanto, gritar “Sem anistia” — e silenciar diante de tantos retrocessos.
Gosto de vingança
O mantra "Sem anistia”, contudo, começou a ser disseminado antes do dia 8 de janeiro de 2023.
Na festa da posse de Lula, os cantores convidados para se apresentar no evento já puxavam o coro contra Jair Bolsonaro. A justificativa era o suposto “genocídio” comandado pelo ex-presidente durante a pandemia.
Mas, no fundo, a campanha tinha gosto de vingança. Afinal, Bolsonaro foi acusado de promover um desmonte da cultura durante seu governo — transformando o ministério responsável pela área em secretaria e, principalmente, reduzindo o acesso a editais de fomento.
A mobilização prosseguiu e foi ganhando corpo com as sucessivas crises do governo petista. Em um episódio emblemático, registrado em dezembro do ano passado, o público de um show de Caetano Veloso e Maria Bethânia vibrou quando viu o juiz Alexandre Moraes na plateia. E entoou, a plenos pulmões, o coro “Sem anistia” no estádio Allianz Parque, em São Paulo.
Após a apresentação, a atriz e empresária Paula Lavigne, mulher de Caetano, fez um aceno para o ministro do STF no Instagram. Em um vídeo, ela aparece no camarim avisando o marido que a gritaria se deve à presença de Moraes, e o baiano comenta: “Hoje [o protesto] está mais forte”.
Três anos antes, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, Paula visitou o Supremo Tribunal Federal com um grupo de atores e cantores para entregar um documento com pedidos da categoria. Na ocasião, a empresária parabenizou o magistrado por seu “trabalho de combate às notícias falsas e ao ódio” — um problema que, segundo ela, também afeta os artistas.
No entanto, nada contribuiu mais para a popularização do “Sem anistia” do que o sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”. O longa do diretor (e bilionário do setor bancário) Walter Salles serviu como uma luva para quem associa o regime militar à atual direita brasileira fazer os mais jovens acreditarem que a democracia no país vive sob constante ameaça.
A instrumentação política de “Ainda Estou Aqui” chegou ao ponto de o próprio presidente Lula se aproveitar do fenômeno, divulgando em vídeo conversas telefônicas com Salles e a atriz Fernanda Torres para parabenizá-los pelas indicações e o prêmio vencido no Oscar.
No dia da cerimônia americana, a ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, também capitalizou em cima do filme. “Hoje é dia de homenagear o cinema brasileiro e os que lutaram e tombaram na ditadura. O Brasil está com vocês, Fernanda e Walter. Democracia sempre, sem anistia!”, disse em um post no X.
Na semana passada, o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que originou o longa e filho do casal Eunice e Rubens Paiva, convocou a população para se mobilizar contra o perdão aos envolvidos no 8 de janeiro. “Estou sentindo falta das pessoas nas ruas, pedindo ‘sem anistia’ aos golpistas. Quem está nas ruas são os bolsonaristas”, disse ao portal UOL.

“Deserto de ideias”
Para o escritor e professor Franciso Escorsim, colunista da Gazeta do Povo, a adesão da elite artística ao lema “Sem anistia” reflete o que ele chama de “deserto de ideias” no qual a esquerda se encontra.
Segundo Escorsim, que dá aulas de Filosofia e Literatura, o esvaziamento da agenda progressista é um sintoma de sua própria fragilidade. “Essas pautas, de maneira plena, são insustentáveis no mundo real”, afirma.
Sem proposições, ele diz, resta aos esquerdistas “jogar com a pauta contrária”. “Eles acabam se pautando mais pelo que são contra do pelo que defendem”, afirma o escritor.
Escorsim ainda lembra que a esquerda brasileira se apoia numa “eterna lembrança do golpe de 64” — e por isso a campanha contra a anistia foi tão abraçada.
“Mas não sei se a anistia colocaria água na fervura política ou seria motivo para mais briga. Infelizmente, enquanto isso, pessoas estão sendo condenadas de uma maneira profundamente injusta, pagando um preço que não deveriam”, afirma.







