Comediante britânico Jimmy Carr em foto promocional do programa “Jimmy Carr Destrói Arte”, junto à assinatura de Hitler em uma aquarela similar à destruída no programa.| Foto: Divulgação / Channel 4 / Wikimedia Commons
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Um programa que estreou na TV britânica na semana passada inovou na forma de chocar, provocando a desaprovação da imprensa do país. No primeiro episódio, que estreou no dia 25 de outubro, o comediante Jimmy Carr e seus produtores do canal de televisão Channel 4 destruíram quatro obras de arte que compraram, após votação da plateia, incluindo uma pintura de autoria do ditador genocida Adolf Hitler, que foi retalhada com pequenas serras elétricas. No show, também foi apresentado um vaso feito por Pablo Picasso, poupado de destruição pela plateia.

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Carr é um experiente comediante britânico com um estilo de humor parecido com o do brasileiro Léo Lins. Seus especiais de comédia consistem em um encadeamento de muitas piadas, com pouca ou nenhuma construção narrativa que as conduza, sem limites: ele brinca com temas que têm o potencial de chocar a plateia, como o Holocausto. O humorista é um defensor da liberdade de expressão e já deu entrevista para o psicólogo Jordan Peterson na qual criticou a “cultura do cancelamento”.

A premissa do novo programa, intitulado Jimmy Carr Destroys Art (Jimmy Carr Destrói Arte, em tradução livre), não permite que a plateia poupe todas as obras. Elas são expostas aos pares, algo de desabonador é revelado pelo apresentador a respeito da biografia dos autores, duas personalidades midiáticas ou do mundo artístico atuam como advogados de acusação ou de defesa para cada uma das duas obras, e então a plateia presente (cujos membros também podem apresentar argumentos) vota qual será destruída. A pintura de Hitler, no entanto, foi exposta sozinha, sem uma rival.

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A desaprovação da imprensa britânica foi imediata e transcendeu divisões ideológicas. “Um programa idiota e patético”, disse já em seu título o resenhista do jornal conservador The Telegraph, Ed Cumming. “Quase todos os envolvidos” deveriam ter vergonha, reagiu ele. Louis Chilton, resenhista do jornal mais progressista The Independent, concorda que o programa “deve ser o mais idiota tratamento da ‘cultura do cancelamento’ já feito”. Para Chilton, o valor artístico das obras não é o que está em questão, pois seriam obras irrelevantes que poucos reconheceriam. Sem a atenção do programa, a pintura do nazista “viveria em ignomínia silenciosa”.

Arte vs. Arte

No primeiro e até agora único episódio do programa, cinco blocos entre os intervalos comerciais são dedicados à votação e potencial destruição de cinco obras. Na introdução, Jimmy Carr faz um pequeno monólogo sobre a destruição de estátuas pelo movimento Black Lives Matter especialmente desde os protestos de 2020, e menciona que artistas famosos em atividade têm apostado na destruição criativa. Entre eles Ai Weiwei, exilado crítico da ditadura da China; Banksy, grafiteiro britânico de identidade desconhecida que retalhou o quadro “Menina com um balão” com um dispositivo acionado a distância, assim que ele foi vendido por mais de um milhão de libras esterlinas em 2018 (R$6,9 milhões); e Damien Hirst, polêmico artista contemporâneo inglês com obras como um tubarão preservado em formol.

No primeiro bloco, as obras rivais foram a pintura de uma paisagem australiana feita pelo pedófilo condenado Rolf Harris, que antes da infâmia foi celebrado no Reino Unido, chegando a fazer um retrato da Rainha Elizabeth II em 2006; contra uma colagem de nove cartões de desenhos pornográficos que ridicularizam, entre outras, a figura de Jesus, de Eric Gil. Ele é criador da fonte “Gil Sans” utilizada no Microsoft Word e confessou em sua biografia ter praticado incesto, estupro de menor e zoofilia. A plateia votou contra Gil, e seus cartões foram destruídos com um lança-chamas.

No segundo bloco, foi apresentada de um lado uma fotografia em preto e branco de uma menina de quatro anos nua, tirada por sua mãe, a fotógrafa Sally Mann, em um estilo que lembra o celebrado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado — o problema, para alguns, é que expõe a criança contra a sua vontade e potencialmente a sexualiza, mas investigações da fotógrafa nada revelaram de más intenções. Do outro lado estava uma obra de Marcus Harvey, pintor inglês, uma versão menor de um retrato gigante da assassina em série Myra Hindley, que matou cinco crianças, junto com um parceiro nos anos 1960. O rosto da assassina, reproduzido de uma foto da polícia, é composto pelas impressões da palma da mão de crianças, postas na tela por Harvey com estêncil. A última obra perdeu no voto do público e foi destruída com tiros de bolas de tinta.

No terceiro bloco, veio a pintura de Hitler, sozinha. Trata-se de uma aquarela não muito rica em detalhes de uma torre com relógio, vista de um ângulo baixo, dentro de um contexto urbano, com folhagem de árvore no plano da frente. Data de 1921 e tem a assinatura do ditador nazista. A autenticidade da aquarela foi assegurada pela casa de leilões que a vendeu ao Channel 4 por 11.500 libras (R$65.720,00). O quadro teria sido dado pelo líder nazista ao militar Hermann Göring.

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A plateia votou pela destruição, e, em uma estrutura parecida com uma guilhotina, o quadro foi pressionado contra pequenas serras elétricas, que o partiram em tiras. O “advogado de defesa” da pintura lembrou que Hitler foi responsável pela destruição de mais de 1.600 obras artísticas. Descendente de alemães, ele disse que condenava Hitler, mas que havia valor histórico na pintura, para lembrar os erros do passado. Os nazistas organizavam também exposições de “arte degenerada” para ridicularizar obras de judeus entre outros grupos que perseguiam.

No quarto bloco, as obras competidoras tratavam, ambas, de raça. A destruída foi um busto de uma pessoa negra feito por Rachel Dolezal, americana que sofreu críticas por ter passado anos fingindo ser negra fazendo bronzeamento de pele e alterando a textura do cabelo. Ela chegou a presidir uma filial local de uma das maiores organizações não-governamentais voltadas à defesa de pessoas negras nos Estados Unidos. Um documentário sobre Dolezal na Netflix mostra que ela foi criada em um ambiente psicologicamente abusivo por seus pais, e sua identidade “trans-racial” pode ser uma forma de se afastar desse passado. Sua escultura foi atirada por Jimmy Carr do segundo andar do galpão em que foi gravado o programa, estilhaçando-se no vão interno do prédio. A obra poupada foi uma charge racista do século XIX, feita pelo caricaturista John Leech, que mostra um negro de traços exagerados rasgando um mapa dos Estados Unidos.

No quinto e último bloco, o “advogado de acusação” disse que um vaso em forma vaga de mulher feito por Pablo Picasso era uma imitação indevida de arte africana. A “advogada de defesa” insistiu que não era uma imitação, mas só uma inspiração. O apresentador contou que Picasso é agora infame por sua “misoginia abusiva”, já que ele teria chegado a apagar um cigarro no rosto de uma de suas companheiras. Duas cometeram suicídio. Havia um pesado bloco de metal pairando sobre o vaso, sustentado com uma corrente e fios de novelo. Os votos da plateia incluíam a possibilidade de cortar um fio, caso a pessoa quisesse. Se mais de 50% dos fios fossem cortados, o bloco esmagaria a obra. A maioria optou por não cortar, poupando o vaso.

Programas polêmicos não são novidade no Channel 4. Em 2016, a emissora lançou um show de encontros em que um participante escolhe quem é de seu interesse entre candidatos completamente nus com a face oculta. Houve protestos contra os nus frontais, mas o programa não foi censurado e persiste até hoje. Em 2020, foi ao ar um programa mostrando pênis eretos. O canal foi o quarto criado na Grã-Bretanha, após dois canais da estatal BBC e do canal privado ITV, em 1982, sob o governo de Margaret Thatcher. Atipicamente para esse governo, foi criado como propriedade de uma agência estatal, como ainda é hoje, mas, diferentemente da BBC, é financiado por publicidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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