“A Ladeira da Memória”, o livro mais famoso de José Geraldo Vieira| Foto: Reprodução
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“Um tigre, quando nasce, é sempre o primeiro tigre do mundo”, ensinou certa vez o mais que inspirado Ortega y Gasset, extraindo da frase uma bela digressão sobre a diferença essencial entre felinos e humanos. Desconhecedor feliz da morte, prisioneiro do eterno instante presente, todo tigre se contenta com uma existência zoológica entre seus pares, e com eles mais disputa do que se identifica. Nasce, vive e morre nos limites de uma vida selvagem, indiferente a quaisquer nervuras do tempo. Um tigre não pode destigrar-se, enquanto muitos homens se empenham numa desumanização voluntária. Inútil: depois de Adão, nenhum humano pode almejar o “luxo alienante” de ser o primeiro homem. Quando nasce, já herda um legado magnífico feito de homens e livros — e isso, para seu gáudio ou sua desgraça, vai acossá-lo para sempre.

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A frase de Ortega y Gasset andava dormida no meio do palheiro de citações que ocupa cada vez mais espaço na memória — mas, semanas atrás, saltou com o brilho e agudez de uma agulha inesperadamente achada. Conversávamos num Café (eu e um velho amigo) sobre o declínio da literatura católica que sustenta o Espírito brasileiro, no século passado, e da qual parecíamos (nós dois e provavelmente alguns poucos leitores) tributários jurássicos. A certa altura, meu camarada de mesa bradou, num lamento um tanto cenográfico: “Mas para onde foram todos aqueles livros? Que fim levou o Vieira?”. Servindo-nos em silêncio sorridente até então, o garçom simpático por fim não se aguentou e arriscou a pergunta: “Perdão! Esse Vieira… é aquele velho jogador que virou técnico?” — mas logo ele mesmo percebeu o engano e se afastou, com a missão de renovar os capuccinos em nossa mesa.

Nunca pude saber a que “Vieira” se referia o garçom — mas logo me ocorreu, de estalo, que o jovem talvez preferisse ter nascido tigre, para não precisar administrar a pesada carga temporal e cultural dos humanos. Quanto ao “nosso” Vieira, continuamos a conversar sobre ele, tarde adentro: o escritor católico de origem açoriana José Geraldo Vieira (1897-1977), que encantou tantas e tantas horas de minhas leituras juvenis e que agora retornava, na vida pós-madura, como uma grata lembrança.

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Se Paris valeu bem uma missa, a ponto de converter ao catolicismo um monarca huguenote, o católico José Geraldo Vieira pode muito bem valer um artigo, capaz de converter à boas letras um novo punhado leitores — na hora, foi essa (e continua sendo) a ideia.

Uma dezena de ótimos livros

José Geraldo Manuel Germano Correia Vieira Machado Drummond da Costa — que o senso prático de seus primeiros editores abreviou para José Geraldo Vieira — era um bem-sucedido médico radiologista quando estreou em 1931 com o romance A Mulher que Fugiu de Sodoma, trazendo já os traços principais que marcariam sua trajetória de cerca de uma dezena de ótimos livros: as referências e metáforas bíblicas, o catolicismo explícito e um criatividade que logo seria tanto aplaudida quanto invejada pelos colegas de ofício. Na sequência vieram obras de ainda maior impacto, como Território Humano (1936), A Quadragésima Porta (1944), A Túnica e os Dados (1947) e A Ladeira da Memória (1950)que, para além da boa acolhida costumeira, veio a ser seu primeiro best-seller, anunciada desde a primeira tiragem: nada menos do que impressionantes 45 mil exemplares, simplesmente a maior edição de um romance brasileiro, até aquela data.

Mas sempre houve bem mais do que um punhado de cifras garantindo a especificidade dos livros de José Geraldo Vieira. Ele fazia, efetivamente, uma literatura diferenciada: em plena vigência modernista, seus romances acenavam para cenários e vocabulário clássicos; na terra dos regionalismos, produzia uma ficção cosmopolita, de personagens cultos e sofisticados e escrita com olhos voltados para a parte mais importante do planeta, na época: a Europa, a quem nossos artistas tratavam de voltar as costas. E havia ainda uma pletora de referências a livros, quadros, sinfonias e autores, que para os homens de boa vontade representava a oportunidade generosa de conhecer uma cultura que não atravessava nossas fronteiras provincianas — mas, aos de má vontade, soava como arroubos de gente pedante e “exibicionista”. Definitivamente, o caráter universalizante daquela prosa de ficção causava desconforto indisfarçável, num ambiente temperado pela aridez geográfica e verbal dos Gracilianos e Josés-Lins de plantão.

Tente o leitor resumir o caudal das grande bacias hidrográficas num copo d’água — assim é pretender apresentar a grandeza e a importância da obra de José Geraldo Vieira num breve artigo. Mas vale a pena apresentar pelo menos uma trinca de livros,  à guisa de aperitivo aos interessados na aventura de os garimpar na internet ou nos alfarrabistas dispersos pelas grandes cidades: A Quadragésima Porta, A Túnica e os Dados e A Ladeira da Memória. 

Três vezes a grandeza

Publicados em sequência, entre 1944 e 1950, A Quadragésima Porta, A Túnica e os Dados e A Ladeira da Memória constituem a trindade essencial da ficção de José Geraldo Vieira, pois permitem que por meio deles alcancemos (ainda que limitadamente) toda a obra.

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Ambientado numa grande agência de notícias sediada na capital francesa, A Quadragésima… traça um painel da época (Primeira Guerra, Revolução Russa, Guerra Civil Espanhola, ascensão do nazifascismo, etc.) e seus impactos sobre os protagonistas, integrantes de uma tradicional família portuguesa. As indagações metafísicas e religiosas das personagens de José Geraldo Vieira alçavam a Literatura nacional ao patamar dos grandes autores franceses e russos.

Mencionar uns tantos personagens (e eles são muitos, de diversas nacionalidades) só confundiria o leitor, como nas páginas monumentais de Dostoiévski — e a comparação não é em nada descabida: o livro é, de fato, um grande painel, pleno de citações de artistas, políticos e filósofos; de modelos de carros e aviões; de cidades,  bares e restaurantes, em meio a transcrições em latim, inglês, alemão e francês. Ainda hoje há quem se refira a A Quadragésima Porta como “uma grande reportagem”, talvez porque a dificuldade de absorver os temas metafísicos seja maior do que digerir o grande volume de informações factuais (sempre secundários, numa ficção).

A segunda menção-destaque é A Túnica e os Dados, certamente o romance mais explicitamente católico do autor — a partir do próprio título, que se refere ao sorteio (nos dados) que os soldados romanos fizeram da túnica inconsútil de Cristo, após a Crucificação. Com a ação concentrada numa Semana Santa e nos dramas de uns poucos personagens (entre eles, o Coronel Rogério, Anália Faraó, o menino Jaiminho e o velho Bernardo), abundam no livro as epígrafes bíblicas (Eclesiastes, Êxodo, mas sobretudo os quatro Evangelhos), temperando no fim das contas uma história de inesperada ambientação regionalista. Mas, em lugar dos romances regionalistas e realistas brasileiros, a universalidade se sobrepõe incólume no romance — pois nada é simples e geograficamente limitado numa histórica católica (do grego katholikós: “universal”).

Por fim, mas não menos relevante, vem A Ladeira da Memória, que na obra de José Geraldo Vieira significou muito além do que um fenômeno editorial: trouxe uma importante guinada dramática, com a sublime história de amor de Jorge e Renata, ambientada no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra. Uma vez mais, as delimitações de espaço-tempo não aprisionam o principal, a saber, os desdobramentos psicológico-morais do relacionamento: Renata é casada e a fé católica e os deveres conjugais (não estamos numa telenovela!) a impedem de ceder aos desejos da carne nos braços de Jorge. Assistimos assim ao desenrolar de um amor trágico, com final infeliz, nos limites do sublime e do sacrificial.

Por certo, eventuais mentalidades corrompidas pela atual deterioração dos costumes hão de entrever tédio ou pieguice onde existem apenas grandeza e redenção. Tristes sinais dos tempos...

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Teológico, cristão – católico

Em sua Teoria do Romance, o húngaro György Lukács — marxista e ateu — diagnosticou  que “o romance é a epopeia de um mundo abandonado por Deus”. Isso não deixa de estar historicamente correto, na medida em que o gênero narrativo marcado pelo romance floresce e se desenvolve no século XIX, época do famigerado “desencantamento do mundo”, da secularização oficial dos Estados nacionais.

Mas é preciso ir além: trata-se de uma definição ontologicamente estreita — como é intrínseco ao enfoque marxista. Se a ficção romanesca é o laboratório por excelência da aventura humana, e se os homens são a própria imagem de Deus, segue-se que a Literatura será sempre visceralmente religiosa, teológica, cristã — numa palavra, católica.

A rigor, essa tradição literária católica está presente na obra de autores que parecem cientes de que a natureza humana encontra sua teleologia não na simples Beleza, ou numa prosaica “inclusão social” – mas na Salvação. Cada escritor (em especial os católicos) tem feito isso, com as respectivas idiossincrasias: Georges Bernanos, Liev Tolstoi e Fiódor Dostoiévski, por exemplo. E, no Brasil: Octavio de Faria (autor da Tragédia Burguesa)e nosso José Geraldo Vieira.

Tudo computado, não é mero rompante estilístico arriscar: do ponto de vista espiritual, e até mesmo artístico-literário, toda a produção recente é apenas uma nota proverbial nota-de-rodapé na literatura, da mesma forma que a vida do Espírito no mundo contemporâneo não passa de uma sombra pálida do que já foi plenamente em tempos idos.

A morte na ponta dos dedos

Depois dessa tríade bem sucedida, José Geraldo Vieira ainda escreveu vários livros — entre eles O Albatroz (1951), Terreno Baldio (1961) e A Mais Que Branca (1973). No total, foram cerca de dez romances e mais uns volumes de poesia — quase uma quinzena.  Numa época em que os parâmetros de quantidade e qualidade se misturam e se superpõem, costuma-se medir a importância e o fôlego de um autor pelo número de títulos publicados — e, no caso, nunca faltaram críticos e resenhistas perguntando por que as publicações de José Geraldo Vieira foram escasseando até se rarefazerem, nos últimos anos de vida.

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Culpa das armadilhas do tempo — tanto de sua falta, quanto de suas garras fatais, que no fim das contas nos consomem e abatem. José Geraldo Vieira acabou se dispersando nas atividades de professor e crítico de arte, mas também em saraus na Academia Paulista de Letras (irresistivelmente próxima à sua casa). No fim, acabou fatalmente abatido por um câncer implacável nos dedos das mãos — fruto de uma fatura vencida, dos seus tempos como médico radiologia (numa época pioneira em que subestimavam-se os riscos e afrouxavam-se os cuidados com a radiação).

Consta que, nas últimas fotografias, José Geraldo Vieira trazia curativos nas pontas de todos os dedos das mãos. Também consta que o rosto não transmitia nenhum indício de dor ou angústia, sinais tão comuns naqueles que não acreditam na transcendência e na Salvação. Mas ele acreditava. Não sendo um tigre, sabia que não era o primeiro homem nem seria o último, na aventura humana neste terreno baldio que habitamos.

(Que fim levou o garçom do Café, que a seu modo parecia se imaginar o primeiro garçom, servindo o primeiro capuccino? Gosto de acreditar que ele vá ler este artigo — que nunca será o primeiro. Ou melhor, talvez sim. Ou pior, ao menos para ele...)