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Com dados, faz-se de tudo. Suponha-se que cientistas torcedores do Coritiba, interessados no aprimoramento do desempenho do seu time, se unam para descobrir se o uso de cuecas da sorte pela torcida durante as partidas contribui para vitórias. Primeiro, eles assistem a três partidas com cuecas da sorte. Todas as partidas são vitoriosas. Depois, assistem a mais três partidas sem as cuecas da sorte. Todas são derrotas. Estariam prontos, portanto, para enviar um paper ao (hipotético) Harvard Journal on Lucky Underwear Studies [Jornal Acadêmico de Harvard sobre as Cuecas da Sorte] que mostra existirem indícios de que o uso de cuecas da sorte está associado à vitória do time. A CNN noticiaria, e os jornais brasileiros repercutiriam. Alguns times ameaçariam de expulsão os torcedores sem cueca da sorte, enquanto que outros, de diretoria mais sensata, apontariam que a amostra foi de apenas seis jogos, e que cientistas corintianos vêm tendo resultados dessemelhantes, com uma amostragem muito maior.

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Tudo isso poderia ser razoável, se, além de dados brutos e habilidade com planilhas, a ciência não exigisse bom-senso e noção de causalidade. Faz muito mais sentido procurar os motivos do desempenho em razões técnicas, administrativas e até aleatórias, do que na cueca que os torcedores usam. Ainda assim, quem porventura escolhesse essa via teria dados e mais dados a coletar. E papers e mais papers para fazer. E manchetes caça-clique às pencas.

Existem estudos que são bons para fazer manchetes caça-clique. A toda hora não descobrem uma comida mágica responsável pela prevenção do câncer e, mais recentemente, do mal de Alzheimer? É muito simples: todo o mundo pode ser dividido entre os que comem cúrcuma e os que não comem cúrcuma, ou os que têm uma dieta mediterrânea e os que não têm. Pegue-se uma divisão binária dessas, aplique-se aos pacientes de câncer ou Alzheimer, e algum número irá aparecer. O paper será publicado em um periódico qualquer, um jornalista científico fará o caça-clique, e a Bela Gil fará alguma coisa repulsiva com o ingrediente mágico.

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Médicos brancos seriam todos Mengele

O estudo caça-clique da vez, porém, fomenta racismo e aponta para hospitais black only como medida salutar à saúde de bebês negros. Conforme noticiou a CNN, mostra-se-ia que bebês negros têm três vezes mais chances de morrer no primeiro ano de vida caso sejam atendidos por um médico branco, em vez de um médico negro. Os dados seriam acachapantes: quase dois milhões de bebês entre 1992 e 2015 na Califórnia.

Acontece que quatro gênios, três da área de administração e um de saúde pública, um da Harvard Business School, dois da Universidade de Minnesota e outro da Universidade George Mason, pegaram os dados da Califórnia e simplesmente lançaram o modelo. Nem puseram o pé no hospital, nem viram a cara de um paciente. Eles escolheram começar por 1992 por ser o ano em que a burocracia começou a registrar a cor dos bebês. Descartaram os bebês que não foram classificados nesse período, ou que receberam outra classificação. Quanto aos médicos, não há registro de cor; por isso, os quatro luminares se deram ao trabalho de olhar as fotos e classificá-los. A despeito de a pesquisa ser relativa ao primeiro ano de vida, todos os bebês são chamados de newborns, ou recém-nascidos.

Providenciadas as divisões raciais binárias, essas pessoas brilhantes dividiram os bebês entre os que completaram o primeiro ano de vida e os que morreram no hospital, para em seguida analisar os impactos da “concordância racial” entre médico e paciente. “Concordância racial” é o nome que deram ao fato de o médico e o paciente terem a mesma cor. Há alguns senões: nem todos os bebês que morreram no hospital foram cuidados por médicos, o que quer dizer que bebê negro que morreu atendido por socorristas entra na estatística de bebês negros mortos. Outra divisão, portanto, é a entre bebês que morreram no hospital nas mãos de um médico, e os que morreram lá sem médico. Além disso, foi considerado se o bebê tinha seguro (que é coisa de pobre, nos EUA) ou se pagava privado; se tinha comorbidades; se os “efeitos” da comorbidade foram “consertados” pelo médico, e quanto tempo viveram. Os estudiosos pontuaram que os médicos negros costumam tratar mais pacientes do que médicos brancos, que tratam mais pobres (“underresourced”) do que os brancos, e que tratam, ainda assim, mais brancos do que negros. (Como a Califórnia não é nenhuma Bahia, e está mais para um Paraná, é de se supor que existam mais pobres brancos pelo simples fato de existirem mais brancos.) Os negros seriam mais pobres, e as mães negras, mais propensas a problemas de saúde durante a gravidez, tais como eclâmpsia, pré-eclâmpsia e parto prematuro.

Das tabelas feitas com esses dados, os estudiosos concluem que é importante manter a “concordância racial” para salvar a vida de bebês negros, que é um problema existirem muitos médicos brancos, e que os elaboradores de políticas públicas devem levar essa maravilha de estudo em conta. Tudo isso sem pôr o pé num hospital de verdade, apenas olhando tabelas e fotos de médicos. Eles apontam também que a “concordância racial” não tem nenhum efeito sobre as mortes das mães negras, mas ainda assim um viés favorável à própria raça faria com que bebês negros morressem nas mãos de médicos brancos, sem que se passasse o mesmo com as mães negras. Estranho viés.

Apesar de falar em “concordância racial”, o estudo não cobre os seus efeitos em bebês brancos. Dado que os médicos negros têm uma clientela de maioria branca, é de se imaginar que um eventual apartheid hospitalar lhes tirasse empregos.

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Por detrás da tabela

Existe uma infinidade de fatores que podem determinar a maior mortalidade entre um grupo do que outro. Um ano é um período grande o suficiente para haver muitas razões para a morte de um bebê, para além do atendimento médico. Digamos que os pais sejam desses de mundo cão, que matam os filhos e vão parar no Datena. Se o filho chega ainda com vida ao hospital e é atendido por um branco, entra na estatística; se morre em casa, não entra. Se houver um médico branco cujo plantão coincida com os horários de maiores acidentes de carro, e os bebês chegarem ainda com vida às suas mãos, esse médico aparecerá como um Josef Mengele na tabela. Inclusive, se o médico branco for um “antirracista” do quilate desses pesquisadores, poderá dar as costas aos bebês negros para não aumentar o número de bebês negros mortos nas mãos de médicos brancos. E se o médico branco for um racista convicto, que quer acabar com a minoria negra nos Estados Unidos, poderá despachar as crianças doentes do hospital e dizer que estão bem. Assim, passará por bom médico na tabela, desde que essas crianças morram bem longe de si; de preferência, em casa, atacadas por um mal não tratado.

Essa tabela é tão sensata quanto uma de cuecas da sorte.

Deixando-se de lado a moralidade dos médicos e pais envolvidos, não será uma boa ideia pensar na qualidade da formação dos médicos? Felizmente, esses cientistas dos Estados Unidos pensaram nisso. Traduzo-os, para o leitor não achar que estou inventando coisa: “Pesquisas sugerem, ademais, que treinamento especializado [em quê??] pode render benefícios superiores no cuidado clínico. Uma forma particular de treinamento [qual??], a certificação baseada na especialidade [qual??], na qual os médicos completam estudos de um a três anos adicionais, recebeu atenção considerável. As pesquisas sugerem que tal treinamento aumenta o entendimento da nuance das doenças, aumenta a lembrança das informações e acelera a reação a informações novas. Portanto replicamos nossas estimativas dividindo a amostragem entre os médicos que são certificados em […rufam os tambores...] pediatria [OH!] e os que não são. Os resultados estão na tabela 4. Duas descobertas interessantes se veem. Primeiro, a pena de mortalidade absoluta para recém-nascidos negros é menor entre pediatras negros e brancos, comparada a não-pediatras. Segundo, vemos benefícios significativos da concordância racial entre pediatras certificados e não-pediatras (em ambos os casos, a pena de mortalidade negra é praticamente a metade). Isso sugere que treinamento adicional pode reduzir a magnitude da pena de mortalidade negra, mas não parece eliminar essas diferenças. Resultados com neonatologistas rendem resultados consistentes.”

Mas que surpresa. Treinar os médicos em pediatria para atender bebês reduz a mortalidade de bebês. Quem diria, não? O próximo passo será descobrir que obstetras são melhores em fazer parto do que urologistas. Contentemo-nos em supor que um dia esses pesquisadores se perguntem pela qualidade dos hospitais que atendem os negros, em vez de ficar etiquetando médico com raça.

Lembrando Sowell

Com tudo isso, não queremos aqui dar a certeza de que os médicos brancos dos Estados Unidos são todos igualmente humanos com os bebês de qualquer cor. É possível que bons cientistas sociais ponham os pés em hospitais, entrevistem médicos e pacientes, elaborem tabelas, e encontrem algum tipo de problema relativo a raça com médicos brancos de uma dada localidade. Por outro lado, pegar os dados de médicos brancos atendendo negros na Califórnia e universalizar automaticamente é coisa de racista, que acha que brancos e negros têm comportamento determinado pela raça e não pela cultura, que varia de lugar para lugar.

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Quanto aos negros dos Estados Unidos, não se alardeia tanto a precariedade geral da sua situação? Os lares sem pai, a alta taxa de encarceramento, os maus hábitos alimentares, o uso de drogas… Se for assim mesmo, fará algum sentido atribuir a mortalidade de bebês negros exclusivamente a cuidados médico-hospitalares, desconsiderando-se o lar?

Thomas Sowell trata, à exaustão, da degradação dos negros norte-americanos, e a atribui às políticas de bem-estar social, que tiram das famílias a responsabilidade de cuidar das crianças. Decerto é uma tese que, como qualquer outra, merece contestação. No entanto, a querela de Sowell diz mais respeito aos fatos do passado do que do presente: segundo Sowell, a família negra já foi estável, até ser destruída pelo Estado; segundo progressistas, os negros são meras vítimas que nunca saíram da lama desde a escravidão. Se Sowell e os progressistas estão de acordo quanto a haver muitos drogados e criminosos entre os negros dos EUA, não é de surpreender que seus bebês morram mais.

A hipótese de Sowell não tem nada de racista. Ele explica a situação social de um grupo humano a partir da forma como um Estado obcecado por raça resolveu tratar esse grupo humano. Diz ele: “Por ter as necessidades materiais providas por um Estado assistencial, como se fossem animais em uma fazenda, essa subclasse tem ‘uma vida esvaziada de significado’, como diz Dalrymple, já que não pode nem mesmo se orgulhar de conseguir pagar a própria comida e a própria casa como fizeram as gerações anteriores.” Tiro este trecho da sua apresentação do livro A vida na sarjeta, onde Dalrymple, médico do serviço público inglês, conta suas histórias de mundo cão. Diz Sowell: “Como médico do serviço de emergência, Theodore Dalrymple atende jovens que foram espancados na escola a ponto de precisar de cuidados médicos – por tentar ir bem na escola. Quando isso acontece nos guetos norte-americanos, as vítimas são acusadas de ‘agir como os brancos’ por tentar uma boa formação. No outro lado do Atlântico, tanto as vítimas quanto os agressores são brancos.”

Qualquer cientista social que saiba quem é Max Weber concordará que valores são importantes para explicar o destino de uma sociedade. Valores não podem ser apreendidos com uma tabela burocrática de hospital.

Hospital black only é só mais um passo rumo ao admirável mundo progressista

Mas de onde esses “cientistas” tiraram a ideia de “concordância racial” como fundamental? Segundo eles mesmos informam, é só mais um passo dado no sentido de dividir a humanidade em caixinhas de sexo e cor: “Os pesquisadores da sociologia notaram os benefícios da liderança feminina para as mulheres jovens que trabalham em firmas. […] Economistas mostraram que o desempenho acadêmico é mais alto quando os estudantes compartilham a raça [sic] com seus professores. Ademais, acadêmicos de direito descobriram taxas mais altas de encarceramento entre réus pareados com juízes de raça diferente. No entanto, apesar da prevalência dessas descobertas, pouca evidência do efeito da concordância racial e de gênero existia até há pouco.”

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No mundo dessa gente, homens e mulheres devem viver separados como no Irã. Cidadãos do Ocidente devem regredir à condição dos Estados Unidos ou da África do Sul no começo do séc. XX: escolas e hospitais devem impedir o contato humano entre brancos e negros, os quais devem ser categorizados racialmente desde bebês.

Por sorte, os valores da gente comum do nosso Brasil são muito superiores ao dessa gentalha metida a iluminada. Mas como na nossa cúpula burocrática e intelectual sempre há quem queira copiar essa escória, fiquemos atentos. Quando aparecer na nossa imprensa progressista notícias do gênero, ou essa mesma notícia, olhemos com desconfiança.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]