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Política é assim mesmo: desperta o senso estético de gente extravagante. Quem ganha é o nosso anedotário.
Política é assim mesmo: desperta o senso estético de gente extravagante. Quem ganha é o nosso anedotário.| Foto: Reprodução/ Youtube

Pocotó, pocotó, pocotó: lá vem o Templário de Itajaí, cavalgando de capa e espada por um campo verdejante, com a bandeira do Brasil à mão. Anuncia que vem “de longe, em sagrada missão”. De onde vem? Para onde vai? Está parado. Vemô-lo contemplar a paisagem à frente e percebemos um cabelão liso e comprido de metaleiro. Não sabemos de onde vem, nem sua parada final, mas sabemos – pois ele convida – que irá para a manifestação do dia 15 de março contra os comunistas e os traidores da pátria.

Close para o olhar zangado ou determinado que o capacete não tapou. Ele é jovem e branco. E continua: “Vamos resgatar nosso país, nossa bandeira!”. Close no escudo e no cavalo, que estão enrolados em panos com um símbolo e um BR legível. Ao que parece, resgatar nossa bandeira implica traduzir o seu lema para o latim.

Nisso, diz, e, corajoso, ainda põe na legenda: “Ordinen et progressus. Venit ad lux.” Lux é luz em latim, e uma luz mágica brilha da ponta da bandeira. O latim está todo capenga: “ordinen” não existe, “venit” é terceira pessoa do indicativo singular, quando provavelmente ele queria um imperativo para dizer “Vem para a luz!”. E “ad” pede acusativo, então o certo seria “ad lucem”.

Depois, sai correndo. Ou melhor, cavalgando. Para onde?

Alemães comedores de aipim

O Brasil rural e branco carece de observadores finos. Quem tapou essa lacuna foi Sándor Lénárd, um refugiado húngaro da Segunda Guerra Mundial, fluente em alemão, que encontrara a paz no Vale Catarinense. Lá, segundo seu contemporâneo Paulo Rónai, “cumulava as funções de farmacêutico, médico, curandeiro e pajé no meio de algumas centenas de alemães acaboclados, entregando-se nas horas vagas a estudar o dialeto inquinado de brasileirismos e o sincretismo religioso de seus pacientes”. Rónai escreveu tudo isso em húngaro. Publicava numa revista cultural de húngaros editada em São Paulo e colocou essas histórias também em um livro húngaro que ganhou tradução para o inglês antes de, finalmente, ser traduzido para o português. É O vale do fim do mundo (Cosac Naify, 2013).

O vale do fim do mundo fica lá, depois do último banheiro e do último anão de jardim. Ao contrário de Rónai, Lénárd não tinha apreço pelo português e se sentia em casa em área onde se falava alemão. Pois essa área começava com um negro, o Pedro Preto, que chegara a ser preso por Vargas na Segunda Guerra Mundial por falar alemão em público. Pessoalmente, Lénárd se identificava com uma indiazinha filha de uma infanticida contumaz. Ela fora resgatada das brasas por alemães e criada como alemã luterana. Lénárd, que estivera certo da própria morte em campo de concentração,  achava que a sobrevida de ambos, a dele próprio e da indiazinha germanófona, eram provas de que o mundo não tem nenhuma ordem ou lógica – ainda bem!

O húngaro era um humanista de mão cheia. Por isso, se espantava com o ideal de vida dos colonos do vale: um italiano podia passar o dia inteiro fumando cachimbo e olhando pro campo. As ovelhas o proviam de tudo. Qual era o maior êxito que alguém podia lograr? Montar uma fábrica de bolos. Os italianos viviam à base de polenta; os alemães, de aipim. E a vida passava na calmaria e na fartura. Nesse meio, como mais uma prova de que o mundo não tem lógica mesmo, Lénárd escreveria um best-seller que lhe garantiria reconhecimento mundial: Winnie ille Pu, a tradução do Ursinho Puf para o latim.

“Venho de longe!”

Felizmente, o cavaleiro traz o nome do site. Nele, consigo achar a identidade de uma única pessoa da Lux, o seu presidente Emilio Dalçoquio Neto, natural de Itajaí-SC.

Um Power Point traz a biografia do sujeito, cujo sobrenome é um aportuguesamento de Dal Zocchio e tem idade demais para ser o nosso cavaleiro. Ele se orgulha de trabalhar desde criança no negócio familiar e é um empresário caminhoneiro. Dalçoquio serviu um ano no exército, ficou profundamente admirado com o Presidente Figueiredo e, a partir daí, parece ter se impressionado com o comunismo.

Outra coisa marcante em sua vida é a paixão pela música de Ennio Morricone.

Itajaí é uma cidade de IDH alto, não muito longe da Dona Emma habitada por Lénárd. Parece ser a sequência temporal daquele mundo de fartura e tédio descrito pelo húngaro. As pessoas trabalham, ganham dinheiro e prosperam. Elas têm a ideia de morar num lugar muito afastado de centros importantes – aqueles lugares que à época de Lénárd tinham geladeira, anão de jardim, banheiro e até edição de revistas.

É um fim de mundo próspero e endinheirado, ao qual os nativos só dão valor quando vão à Alemanha e descobrem que lá se vende banana pela unidade. É uma mentalidade bastante diferente das ex-capitais Salvador e Rio de Janeiro, que são centradas em si mesmas e têm uma vida cultural bastante intensa, mesmo que o IDH vá mal das pernas.

Nem só de IDH vive um homem. Assim, o caminhoneiro itajaiense e seu companheiro cavaleiro deram asas à imaginação e inventaram uma salada mista que inclui esforços de latinista, motivos medievais, nacionalismo brasileiro e luta contra o comunismo. Providenciaram cavalo, logomarca, design, impressão em tecido, filmagem, etc. E lançaram ao Brasil sua mensagem, com todo um senso de importância.

Precedente

O governador-frasista Otávio Mangabeira dizia que na Bahia todo absurdo tem precedente. A frase vai ficando datada à medida que o Rio e os seus políticos produzem absurdos inauditos. Mas na seara dos doidos a Bahia segue muito bem.

Veja-se que ainda há poucos anos circulava pelo centro de Salvador um homem conhecido como Jayme Fygura. Usava armadura e capacete. Em vez do verde e amarelo brasileiros, ele tinha predileção por coisas em azul e vermelho, cores da bandeira da Bahia. Trazia colados na armadura adesivos do Esporte Clube Bahia e da campanha de ACM Neto.

Para as câmeras do eventual cinegrafista curioso, ele fazia discursos anticapitalistas. Ainda assim, tinha uma adesão real a ACM Neto, e não à esquerda, e até chegou a ser aproveitado pela campanha eleitoral. Tal como o templário de Itajaí, Jayme portava uma bandeirona eleitoral e declarava sua mensagem política ao mundo.

Não consta que alguém tenha votado em ACM Neto por causa de Jayme Fygura. O doido foi aceito pelos baianos comuns como uma espécie de folclore ambulante, enquanto os baianos cult o veem como artista plástico e performer. A paixão de Jayme por Neto teria impacto exclusivamente pessoal.

Em 2016, ele bebeu todas para comemorar a vitória do seu líder quando foi atropelado. Nunca se recuperou, mas contou com amplo apoio da imprensa com uma campanha para comprar remédios.

Torçamos, então, para que os itajaienses digiram o seu doido de armadura tal como os soteropolitanos digeriram o seu. Política é assim mesmo: desperta o senso estético de gente extravagante.

Quem ganha é o nosso anedotário.

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