Entre a música e a luta cristã, o U2 optou pelo rock, mas sem deixar os bons sentimentos cristãos de lado – nem na música, nem na vida.| Foto: Divulgação

Em um dos vídeos postados em seu canal no YouTube, Dante Mantovani, recém-nomeado na segunda-feira (2) presidente da Funarte, órgão responsável pelas políticas públicas federais de fomento às artes brasileiras, associou o rock a drogas, sexo, aborto e satanismo.

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Mas, sempre correndo o risco de colocar um refletor a mais sobre opiniões que poucos dias (ou horas) depois serão esquecidas e substituídas por novas polêmicas sem importância levantadas por algum outro membro do governo, vale a pena perder alguns minutos com a associação do rock às mazelas espirituais citadas por Mantovani.

É claro que muita gente está disposta a concordar com a influência nefasta do rock citada pelo maestro, que é autor de livros sobre música erudita e parece ter especial apreço em apontar características pouco abonadoras de gêneros musicais que considera inferiores – entre eles o rock, mas não apenas.

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Afinal, mesmo depois de seis décadas, e numa época em que o rock já perdeu praticamente qualquer relevância que um dia teve, ainda existe gente que torce o nariz para o requebrado sensual de Elvis Presley (isso para não citar Chuck Berry).

Voz dissonante

Livros poderiam – e foram – escritos sobre a importância que o rock teve na formação cultural, política e (por que não?) sexual das gerações do pós-guerra. Falar sobre essa importância não é meu objetivo aqui, até porque existe gente muito mais competente do que eu para tratar do assunto.

Mas a fala de Mantovani sobre o rock me fez lembrar de uma banda que sempre se colocou, algumas vezes de forma talvez bastante proposital e, segundo detratores, até marqueteira, a anos-luz de distância daquilo que o maestro cita como a má influência do rock.

Sim, eu estou falando do U2, a banda irlandesa surgida no fim da década de 1970 e que ao longo dos anos oitenta se firmou, para delírio dos fãs e desespero de seus muitos haters, como uma das vozes mais ressonantes (e talvez dissonantes) do rock mundial.

Embora hoje as novas músicas do ainda muito ativo U2 soem mais como trilha sonora de elevador (no extremo oposto daquelas canções de rock às quais Mantovani concede o mérito de nos manter acordados durante uma viagem de carro), a banda tem lugar de honra na história do rock e no coração de quem gosta de consumir música bem feita e capaz, muitas vezes, de elevar o espírito do ouvinte para longe do meramente terreno e carnal.

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Por mais que muita gente (inclusive fãs, como eu) não suporte o bla-bla-blá messiânico-esquerdista de seu vocalista Bono, é difícil passar incólume ao enlevo despertado por uma canção como "I Still Haven’t Found What I’m Looking For", segunda faixa do álbum The Joshua Tree, obra-prima do U2, lançado em 1987.

No ano seguinte, "I Still Haven’t Found..." ganhou uma versão ainda mais arrepiante (do ponto de vista estritamente espiritual, vejam bem) coestrelada pelo coral gospel New Voices of Freedom, de uma igreja do Harlem, em Nova York. Na música, Bono, autor de praticamente todas as letras do U2, diz que chegou a segurar a mão morna do diabo num momento em que sentia muito frio. Mas ele seguiu em frente e continuou sua busca, reconhecendo o sacrifício de Jesus ao carregar a cruz e seus pecados. Que adolescente, mesmo no ápice da ebulição hormonal, pensaria em sexo ouvindo uma coisa dessas?

E quem não pensaria duas vezes antes de usar drogas ao ouvir Bad (1984) e Running to Stand Still (1987), que falam, ainda que metaforicamente, sobre a dor de perder um amigo de infância para a heroína, cujo uso tomou contornos de epidemia na Irlanda da época?

Religiosidade e política

A religiosidade do U2 tem origem, sem dúvida, num exacerbado sentimento religioso que muitas vezes foi usado como arma política na longa história de resistência da Irlanda católica ao domínio dos ingleses, que tentaram impor o protestantismo ao país dominado e acabaram por dividido-lo. De um lado fica a Irlanda católica, independente desde 1922, e do outro a Irlanda do Norte, de maioria protestante e ainda hoje parte do Reino Unido.

Na década de 1970, quando Bono, The Edge, Larry e Adam eram adolescentes querendo criar uma banda de rock para mudar o mundo (e arranjar umas namoradas, por que não?), a Irlanda, então um dos países mais pobres da Europa, enfrentava um período violento de sua história, com atentados terroristas frequentes orquestrados pelo Exército Republicano Irlandês, o IRA, que continuava lutando pela independência da Irlanda do Norte.

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Naquele momento, seria fácil seguir no caminho da religiosidade politizada e tomar posição em um dos lados da briga. Mas, numa versão menos carnal do “faça amor, não faça guerra”, o U2 se posicionou veementemente contra a luta entre católicos e protestantes – até porque Bono é filho de um casamento misto, de mãe protestante e pai católico.

O terceiro álbum do U2, War, de 1983, começa com "Sunday Bloody Sunday", um lamento raivoso contra os atentados terroristas que matavam inocentes em nome de uma guerra que “a maioria dos irlandeses não quer”, segundo discurso feito por Bono no meio da música em 1988, nos EUA – país que ele percorreu pedindo aos americanos, em estádios lotados, que não apoiassem o IRA com dinheiro.

Se "Sunday Bloody Sunday" abre o álbum War com uma fúria quase sagrada, nada melhor para encerrá-lo do que "40", a versão do U2 para o Salmo 40, aquele que fala “Depositei toda a minha esperança no Senhor; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito de socorro”. Música, aliás, que já fechou muitos shows do U2, inclusive os da primeira turnê que eles fizeram no Brasil, em 1998. O efeito do salmo cantado para um público de dezenas de milhares de pessoas superexcitadas após duas horas de rock não poderia ser outro: calma e enlevo.

O próprio U2 sofreu com a aparente incompatibilidade entre o rock e bons sentimentos cristãos. Em 1982, seu álbum October, o segundo lançado pela banda, sofreu resistência do público e da crítica por ser sombrio e melancólico demais. Foi um período em que os integrantes do U2 faziam parte de um grupo de jovens cristãos que, ao penderem para o radicalismo comum na Irlanda da época, deram um ultimato aos rapazes: ou vocês continuam brincando de fazer rock, ou seguem sendo bons cristãos e estudando a Bíblia com a gente. O U2 optou por continuar com o rock, mas não deixou os bons sentimentos cristãos de lado, nem na música, nem na vida, aparentemente.

Ainda que lendas em torno de aventuras sexuais e traições sempre surjam aqui e ali, como é comum na vida de celebridades, Bono ainda é casado com a colega que conheceu na escola, com quem está junto há mais de 40 anos e tem quatro filhos, segue pregando a paz entre as diferentes religiões e escrevendo música que foge do lugar-comum do cancioneiro ocidental – e não apenas do rock –, quase sempre excessivamente marcado por sexo, dor de cotovelo e não exatamente bons sentimentos.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]