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Mohamed Morsi, ex-presidente do Egito, deposto em 2013 e morto em 2019
Mohamed Morsi: figura importante da Irmandade Muçulmana, foi eleito presidente em 2012, mas ficou no poder apenas até julho de 2013, quando foi deposto por um golpe militar. Morreu na prisão, em 2019| Foto: EU/Shimera/Etienne Ansotte

No dia 8 de abril deste ano, a Corte Criminal do Cairo condenou à prisão perpétua por assassinato e terrorismo Mahmud Ezzat, 76 anos, chefe de uma organização secreta chamada Irmandade Muçulmana. Conforme a acusação, essas ações criminosas teriam sido cometidas em 2012, quando, na esteira da Primavera Árabe, um golpe de estado, com grande apoio popular e endossado pela Irmandade Muçulmana, derrubou o presidente Hosni Mubarak. A rebelião resultou na vitória final de Mohamed Morsi, eleito presidente do Egito num pleito democrático, após trinta anos sob a ditadura de Mubarak. Depois de sobreviver na clandestinidade por mais de oito décadas, finalmente a Irmandade Muçulmana, na qual Morsi era uma figura proeminente, tinha chegado ao poder do mais importante e populoso país árabe do Oriente Médio.

O condenado Ezzat era adolescente quando se filiou à Irmandade Muçulmana, uma organização fundada em 1928 por Hassan Al Banna (seu neto foi acusado de estupro na França), então com apenas 22 anos de idade, professor de ensino secundário da cidade de Ismailia, próxima do canal de Suez.

A motivação inicial de Banna foi a insurgência contra o colonialismo britânico. Era uma proposição incipiente, mas que logo fermentou ao ser complementada pela pregação da necessidade de um vigoroso ressurgimento da religião islâmica que, segundo Banna, poderia elevar todo o Islã a um patamar capaz de confrontar o Ocidente além de livrar o Egito da opressão colonial, gerando uma liberdade que poderia se estender a outros países da região.

Banna a princípio não optou por dotar sua organização de rígidas diretrizes políticas. Preferiu dar-lhe um cunho mais espiritual e passou a empreender ações assistenciais que resultaram na adesão de milhares de seguidores. Nessa moldura, era natural que o nacionalismo islâmico se infiltrasse na Irmandade e promovesse atos de violência fora do controle de Banna. O monarca Farouk, do Egito, temendo que a dita organização pudesse ameaçar a estabilidade do trono, decretou sua ilegalidade, obrigando a Irmandade a sobreviver na clandestinidade.

Em 1948, um de seus jovens membros, um estudante de veterinária, assassinou o primeiro-ministro Nokrashy Pasha. A repressão foi de tal maneira violenta, que Banna saiu a público e declarou: “Este rapaz não é nosso irmão e muito menos um verdadeiro muçulmano”. Foi em vão. O cerco à Irmandade foi desfechado com tal impetuosidade que em 1949 a organização sofreu forte abalo com o assassinato do próprio Banna. A Irmandade teve que se conformar em continuar vivendo nas sombras. Os assassinos de Banna decerto haviam agido com a conivência das autoridades egípcias e nunca foram encontrados.

Além do Oriente Médio

Porém, àquela altura, a capilaridade da Irmandade era irreversível. A organização apresentava um acentuado quadro da junção de duas vertentes: iniciativas humanitárias independentes de filiações partidárias, tais como formuladas por Banna nos primórdios da organização. Em paralelo foram crescendo movimentos nacionalistas, autodenominados revolucionários que passaram por mutações em diversos pontos do Oriente Médio e alguns chegaram ao século 21 como, por exemplo, o Hamas na faixa de Gaza e a fracassada oposição ao regime de Assad, na Síria.

Os adeptos da Irmandade Muçulmana foram bem além do Oriente Médio e alcançaram a Turquia e o Irã. No entanto, seu epicentro era, e continua sendo, o Egito onde há muitos anos enfrenta recorrente divisão interna. Parte dos integrantes da Irmandade quer a criação de um braço armado terrorista, enquanto outra corrente permanece fiel ao caminho sem armas. Esta prefere permanecer oculta e apenas tentar influir nos rumos de diferentes países. A rigor, tem poucas chances de sucesso porque são praticamente inexistentes verdadeiros processos democráticos nos países do Oriente Médio e do Golfo Pérsico.

O braço beligerante da Irmandade obteve fugaz primazia em 1981, quando uma facção denominada Takfir Wal-Ajira planejou e executou o assassinato do presidente Anuar Sadat. Foi um protesto contra o acordo de paz que Sadat havia assinado dois anos antes com Israel e por ele ter dado abrigo ao Xá do Irã, depois de deposto pelos aiatolás. Os terroristas se vestiram com fardas do exército egípcio, obtiveram um veículo militar e se juntaram ao desfile comemorativo da participação do país na guerra do Yom Kipur, contra Israel, em 1973. Os terroristas alvejaram com rajadas de metralhadoras os ocupantes do palanque oficial, matando o presidente Sadat. O vice Hosni Mubarak, sentado ao seu lado, escapou por milagre. Dentre os terroristas presos, cinco foram executados e vinte condenados à prisão perpétua.

Nessa circunstância, é óbvio perceber a repulsa de Mubarak à Irmandade Muçulmana, quando assumiu o poder. Durante 30 anos a repressão foi implacável e incessante. Os líderes da Irmandade foram impiedosamente perseguidos e encarcerados.

Vitória democrática e ocaso

Porém, depois de 84 anos sombrios a Irmandade Muçulmana começou a viver dias radiantes em junho de 2012 quando Morsi, um de seus mais ativos líderes, foi eleito presidente. Dois meses depois, no entanto, ele cometeu o erro de ordenar transformações radicais nas cúpulas das forças armadas. Foi a semente da insatisfação dos militares. Ao mesmo tempo, a nova assembleia do país, contando com maioria da Irmandade Muçulmana, começou a pressionar para que o país elaborasse uma nova constituição.

Houve resistência por parte dos militares que afirmavam ser impossível um partido com consolidadas raízes islâmicas poder dotar o Egito de uma configuração democrática que viesse a incluir com justiça os direitos de minorias como os coptas e os cristãos. O ambiente no Cairo era tão tenso que uma revista americana publicou: “Parece uma reedição de São Petersburgo em 1917”.

O governo de Morsi e a primavera da Irmandade Muçulmana duraram pouco mais de um ano, só até julho de 2013, quando Morsi e seus seguidores foram depostos por um golpe militar comandado pelo general Abdel Fattah Al-Sisi. Após um breve período de governo interino, logo ao tomar posse definitiva o novo regime egípcio baniu a Irmandade Muçulmana e prendeu seus mais destacados ativistas, acusando-os de terrorismo e assassinato, dentre os quais o citado Mahmud Ezzat. O presidente Morsi também foi arrolado e morreu no cárcere em 2019.

A Irmandade retomou o caminho da clandestinidade no qual já dominava todas as formas de sobrevivência. O governo Sisi atacou em duas frentes. No plano interno, empenhou seus serviços de inteligência para detectar e capturar a liderança da Irmandade. No plano externo, para erodir sua credibilidade, desenvolveu uma campanha de falsas informações apontando a existência de uma ligação entre a Irmandade e o fundamentalismo islâmico em atos terroristas.

Ligação com o Irã

No entanto, a Irmandade detém firme resiliência. Segundo os mais recentes dossiês dos serviços de inteligência ocidentais vem ocorrendo uma importante renovação em seus quadros dirigentes e também na sua ideologia por conta de uma recente aproximação com o regime totalitário do Irã.

Na verdade a Irmandade já era ativa no Irã desde a década de 70, quando vinha acompanhando de perto os aiatolás na sua cruzada para derrubar o Xá e se apossar do poder. Mais do que isso, a Irmandade, com base em sua longa experiência de expansão, assessorou o regime de Teerã para que este absorvesse técnicas de infiltração em associações estudantis dos Estados Unidos e sobretudo da Alemanha além de dominar a manipulação da mídia. Este entendimento se solidificou em 2012, quando o presidente Morsi fez uma visita oficial ao Irã.

Por causa dessa aproximação, o mundo ocidental tende a considerar a Irmandade Muçulmana como uma organização terrorista, mas esta percepção não é compartilhada de modo informal pelos mais credenciados serviços de inteligência, nem de modo formal pelo Departamento de Estado americano. A Irmandade Muçulmana vai permanecer ativa nas sombras até que algo substancial e transformador aconteça na vida pública do Egito e favoreça sua volta para a luz do dia.

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