A Constituição Federal promulgada em 1988 é considerada por juristas de todo o mundo como um dos mais modernos instrumentos de cidadania já aplicados em um país. Por outro lado, também recebe críticas por ser excessivamente ampla em garantias que, na prática, o Estado não é capaz de oferecer. Mas ainda há mais de cem dispositivos constitucionais que não estão em vigor por um motivo à parte: a absoluta falta de leis regulamentando o texto da Carta Magna.
INFOGRÁFICO: Veja quais são os dispositivos que ainda estão à espera de regulamentação
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“O direito é prometido, mas não é cumprido”, alerta o advogado Ivan Morais Ribeiro, que integrou a Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seccional Distrito Federal nos últimos três anos. A lentidão ou inoperância do legislativo, porém, já era prevista pelos constituintes. “Para combater essa inércia, que acontece no mundo inteiro, a Constituição tem dois instrumentos: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção”, completa Ribeiro. E o efeito é bem conhecido: o Poder Judiciário atua como legislador.
E essa mistura de funções entre poderes tem aumentado cada vez mais. Há 11 anos, o Supremo Tribunal Federal teve que decidir sobre o direito de greve do funcionalismo público, até então previsto na Constituição, mas ainda não regulamentado. Na época, o ministro Celso de Mello, hoje decano da corte, defendeu que os mandados de injunção fossem analisados de forma mais ampla, com o Judiciário solucionando as questões apresentadas. Os ministros decidiram que os servidores públicos tinham o mesmo direito à greve que os trabalhadores da iniciativa privada e Celso de Mello, no voto, destacou que “nada é mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente (...) em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”.
De lá para cá, a atuação legisladora do STF se ampliou ainda mais. “Há uma intromissão do Poder Judiciário, que assume o papel de protagonista por meio de uma posição ativista”, esclarece João Roberto Machado, advogado especialista em processo civil e professor do Núcleo de Práticas Jurídicas do UniCEUB. O fato pode ser encarado de forma positiva, já que o objetivo é atingido, mas também tem um efeito colateral para a democracia. “Foi deixado de lado todo o processo democrático, com debates no Congresso Nacional, por meio de representantes do povo que defenderiam suas concepções morais, filosóficas, religiosas, econômicas para atingir a finalidade da regulamentação”, defende Machado.
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O que falta regulamentar
Levantamento da Câmara dos Deputados feito a pedido da Gazeta do Povo aponta que 118 dispositivos constitucionais ainda estão pendentes de regulamentação por parte do Poder Legislativo para se tornarem efetivos, em todas as áreas: direitos e garantias fundamentais (13); organização do Estado (22); organização dos poderes (15); defesa dos estados e das instituições democráticas (7); da tributação e do orçamento (10); ordem econômica e financeira (10); ordem social (17); disposições constitucionais gerais (3) e transitórias (15); e emendas (6).
Entre os direitos e garantias fundamentais que aguardam a regulamentação estão incisos do art. 5º, que garante que todos são iguais perante a lei. A individualização da pena, a extradição de brasileiros, a criação de associações e cooperativas e a garantia de proteção a locais de culto e liturgia são alguns dos dispositivos que ainda não têm lei específica.
No art. 7º, sobre o direito dos trabalhadores urbanos e rurais, também faltam leis para regulamentar a proteção em face da automação, que já preocupava os constituintes muito antes da ameaça da economia disruptiva, com o uso de tecnologias que ameaçam os empregos tradicionais. “Essa proteção demanda regulamentação justamente para se ter uma noção do que é proteção do mercado de trabalho e do que seria proteção do trabalhador em termos de saúde e segurança em relação ao maquinário que é colocado na produção. A falta dessa regulamentação impede que o cidadão tenha conhecimento de até onde vai o seu direito, seja na qualidade de trabalhador ou empresário”, alega Machado.
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A falta de regulamentação em artigos sobre impostos também impede que a Constituição cumpra o papel imaginado há trinta anos. A taxação de grandes fortunas, discutida pelos candidatos à presidência da República, está prevista no art. 153. “A Constituição diz que compete à União taxar as grandes fortunas. Mas precisa de lei complementar para definir alíquota, base de cálculo, valores mínimos e estratégias de combate à fuga de capitais”, explica Ivan Morais Ribeiro. E por que a discussão não avança? “Há muito lobby em torno do assunto no Congresso Nacional e não está prevista nenhuma punição para a União por não regulamentar o tema”, completa.
Sem a regulamentação dos dispositivos, a Constituição Federal ainda é simbólica para alguns segmentos: “São promessas que há 30 anos foram colocadas na Constituição, mas que até hoje ainda esperamos a eficácia”.
*** Veja abaixo quais são os dispositivos que ainda estão à espera de regulamentação:
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