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Os principais alvos da internação forçada, seja ela involuntária ou compulsória, em geral são viciados em drogas e pacientes com doenças mentais | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Os principais alvos da internação forçada, seja ela involuntária ou compulsória, em geral são viciados em drogas e pacientes com doenças mentais| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

A internação compulsória, quando um juiz obriga alguém a ingressar em um estabelecimento de saúde para fazer um determinado tratamento, é legal no Brasil e está prevista na Lei Antimanicomial (Lei 10.216 de 2001). Na prática, porém, muitas vezes juízes e especialistas não entram em um consenso, errando para um dos dois extremos: ou com dureza desmedida, que atrapalha o objetivo de preparar o interessado para a reinserção em sociedade ou, por outro lado, com omissão, quando seria necessário agir antes e evitar tristes consequências.

Atualmente, a internação compulsória é utilizada em casos excepcionais, normalmente em decorrência de uma ação penal, quando a pessoa é condenada por um crime e precisa ser internada em um manicômio judicial. Nesse caso, é de praxe que a determinação do juiz seja amparada por um laudo médico indicando a necessidade de internamento.

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Além da compulsória, a lei prevê outros dois tipos de internação: a voluntária e a involuntária. A primeira decorre do consentimento do próprio paciente para a sua internação; e a segunda geralmente é pedida pela família ou por um responsável legal e executada contra a vontade do paciente. “Nesse caso, o estabelecimento em que a pessoa foi internada tem até 72 horas para comunicar o Ministério Público sobre a internação e os motivos dela”, explica advogada Fernanda Schaefer, professora do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Tanto a internação voluntária quanto a involuntária são amparadas por solicitação médica.

Os principais alvos da internação forçada, seja ela involuntária ou compulsória, em geral são viciados em drogas e pacientes com doenças mentais. “São casos de dependência química, com alteração grave de comportamento, quadros psicóticos, principalmente esquizofrenia. Muitas vezes, a família recorre à Justiça pela total incapacidade de controlar o paciente e seus hábitos. O internamento compulsório visa a proteger a sociedade dos atos que o indivíduo não tem controle, principalmente em casos de agressão”, explica o psiquiatra Dagoberto Requião, professor do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Tempo de internamento

Atualmente, com as terapêuticas e o avanço de medicamentos que controlam as crises de agressividade o tempo de internamento de um paciente é bem menor do que antigamente. “Não há tempo mínimo ou máximo do internamento, isso vai depender de laudo médico dizendo que o paciente está estabilizado, que entende o seu comportamento, tem noção do que está acontecendo consigo, de onde está e o que fez”, frisa Requião.

Embora a Lei 10.216 tenha priorizado a desospitalização das pessoas com doenças mentais, é fato que poucas famílias têm condições educacionais e emocionais de trabalhar o dia a dia dessa pessoa dentro de casa, o que resulta em situações conflitivas ou de perigo para a família. “Então, quando o sistema do hospital-dia não dá conta, as pessoas procuram a internação involuntária para dar tratamento pelo menos para aquela crise ou surto”, observa Fernanda.

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Além da previsão na Lei Antimanicomial, existe o decreto 891/1938 que, em tese, autoriza o Estado a pedir uma ordem judicial para a internação obrigatória de ébrios e toxicômanos em caráter de interesse da saúde pública. Logicamente, a letra da lei não está imune a controvérsias. “Hoje estamos num momento em que se trabalha a autonomia da pessoa, a autodeterminação do que é melhor para si. Pessoas que são ligadas à área social entendem que esta é uma intervenção indevida do Estado, que se a pessoa não quiser se tratar ela não deve ser submetida a essa coerção”, comenta Fernanda.

Há quem considere o Decreto 891 inconstitucional, mas alguns tribunais ainda o citam ao aplicar decisões, segundo a advogada, embora se presuma que toda internação compulsória deva se pautar exclusivamente pela Lei Antimanicomial. “É importante frisar que, independentemente da origem da internação (voluntária, involuntária ou compulsória), o paciente mantém diversos direitos, como por exemplo o tratamento humanizado, o sigilo dos seus dados, o acesso a meios de comunicação, receber informações claras e precisas sobre a sua saúde e tratamento, entre outros”, destaca Fernanda.

Muitos dependentes químicos e pacientes com transtornos mentais resistem à internação. No caso dos dependentes, essa dificuldade tem a ver com o quadro que a doença desencadeia no psiquismo do indivíduo. De acordo com Dagoberto Requião são três os mecanismos de defesa do paciente: a negação – “Você pergunta para um indivíduo que está alcoolizado se ele bebeu, e ele diz que não. É um mecanismo de defesa, que o protege da realidade”, explica. O segundo é a racionalização: o paciente arranja motivos para justificar por que bebeu. E o terceiro é a projeção. Ele projeta nos outros a culpa pelo que está acontecendo consigo.

“O maior desafio no atendimento ao dependente químico é no momento em que você, fazendo a avaliação, chega à conclusão de que ele precisa ser internado, tentar fazê-lo aceitar, o que é muito difícil, que ele precisa de tratamento”, diz o psiquiatra. Segundo ele, há casos de doenças mentais gravíssimas, que requerem o internamento, tanto para a segurança do paciente e outras pessoas, quanto para dosar a medicação corretamente e para acompanhamento médico.

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Interdição

Apesar de a internação compulsória representar para muitos uma ameaça à autonomia indiviual, Requião observa que a realidade do internamento hospitalar para tratar as questões de saúde mental hoje em dia é bem diferente. “Não dá para negar que realmente existiram hospitais psiquiátricos que eram depósitos de pacientes. Mas existiram e existem também hospitais altamente competentes na recuperação de pacientes, que conseguem estabilizar um usuário de drogas em 28 a 35 dias, ou um psicótico em 60 a 90 dias, contra mais de 1 ano como era antigamente. Então, a controvérsia é o movimento antimanicomial achar que todo hospital onde o paciente fica em tratamento é um manicômio e onde ele fica jogado e não recebe atendimento. Isso não é a realidade”, pontua.

Até porque, segundo ele, a rede de atendimento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) não dá conta da demanda. E muitos pacientes precisam ser mantidos internados pela gravidade do quadro. “A discussão é mais pela falta de conhecimento e pela questão emocional e ideológica de que hospital é uma coisa danosa para as pessoas. Não é assim”, sentencia.

Para o professor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie Carlos Eduardo Nicoletti Camillo a internação compulsória viola o princípio universal da autonomia, que é um princípio da bioética, de que não se pode submeter ninguém a um tratamento contra a sua vontade. “O artigo 15 do Código Civil diz que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Inclusive o Código de Ética Médica também prestigia essa principiologia. O profissional da saúde só poderia intervir na saúde do paciente caso este esteja inconsciente ou em casos de urgência”, comenta.

Porém, nos casos de doença grave, como câncer, por exemplo, o paciente não é obrigado a se submeter ao tratamento. “É a autonomia da vontade. A questão da internação compulsória passa por isso: é como se houvesse uma intervenção para resolver a autonomia da vontade. E por isso que é polêmico”, explica.

O cerne da questão, segundo Camillo, é que a legislação que autoriza a internação compulsória não prevê a interdição da pessoa, ou seja, um ato legal que demonstra a incapacidade completa dela de responder pela sua vida civil. Desse modo, a internação legítima seria apenas a voluntária.

“Fora dessa perspectiva, qualquer internação vai se transformar numa forma ilegítima de tratamento, porque você não resolveu o problema da representação. Será que apenas um atestado médico resolve essa questão? Existe a norma, mas ela não foi fruto de um debate profundo. A internação compulsória também pode ser uma ferramenta de exclusão social, se for mal utilizada. Por isso a gente precisa repensar esse modelo”, afirma.

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