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Salão da Assembleia Geral, no Conselho de Estado,em Paris | Reprodução / Wikimedia commons
Salão da Assembleia Geral, no Conselho de Estado,em Paris| Foto: Reprodução / Wikimedia commons

Com as eleições se aproximando, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai ganhando destaque nas discussões públicas, na medida em que concentra dois dos maiores problemas da Justiça brasileira: a ineficiência e o ativismo judicial exacerbado. Isso o arrasta, juntamente a todo o Judiciário, ao centro de muitas celeumas do país. 

Predominam soluções que apostam em reformas institucionais para resolver essas questões, mas vem se fortalecendo a percepção de que a raiz desses problemas, notadamente do ativismo e da crise de legitimidade pela qual passa a Justiça, talvez nasça de insuficiências morais e de compreensão mais profundas, para as quais a ética clássica pode oferecer algumas soluções. 

O problema começa na montanha de processos. A cada dia útil, no Brasil, nada menos do que 116 mil novos casos são abertos no Judiciário. De acordo com o levantamento mais recente do Conselho Nacional de Justiça, o Poder Judiciário finalizou o ano de 2016 com 79,7 milhões de processos em tramitação, aguardando uma solução definitiva. Para atender essa demanda, a Justiça conta com 280 mil servidores e, em 2016, custou R$ 84,8 bilhões, ou seja, R$ 411,73 por brasileiro, consumindo 1,4% do Produto Interno Bruto do país. 

Mesmo muito demandada, a confiança da população brasileira na Justiça é baixa. Segundo dados do Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), apenas 24% dos brasileiros confiam na Justiça. A pesquisa mostra que a população brasileira considera o Poder Judiciário lento (81%), caro (81%), nada ou pouco honesto (78%), difícil de usar (73%), nada ou pouco competente (73%) e nada ou pouco independente (66%). 

Entre as razões para a falta de confiança na Justiça, um elemento importante é a baixa previsibilidade dos resultados. Na prática, quando um cidadão se sente de alguma maneira lesado e busca a reparação na Justiça, é difícil saber o que esperar do processo, uma vez que há elevado grau de heterogeneidade nas sentenças, com muitas decisões diferentes sobre os mesmos assuntos. 

 Um estudo feito por Luciana Yeung, professora de Direito e Economia do Insper, que analisou 1.412 decisões em ações de cobrança entre credores e devedores proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), entre 1998 e 2008, concluiu que mais da metade (54.3%) foi total ou parcialmente reformada em relação à decisão colegiada de segunda instância. 

“A estabilidade das decisões judiciais e sua coesão perante a sociedade são de suma importância para que se possa conferir ao jurisdicionado uma igualdade de tratamento e uma expectativa de que, ao mesmo caso concreto, o Poder Judiciário concederá solução jurídica similar”, avalia o magistrado Ricardo Leite, juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e professor de Direito no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 

O sistema jurídico 

Mas como organizar o sistema jurídico para dar conta dessa demanda? Ao longo dos séculos, foram basicamente dois os caminhos traçados por diferentes nações para a construção de um entendimento comum sobre Justiça: o sistema da civil law, em que predomina o direito escrito e positivo, e o da common law, de direito costumeiro, aplicado pela jurisprudência, com base na coerência dos fundamentos das decisões. 

“O sistema da civil law é o sistema da tradição romano-germânica, o qual é adotado nos países do continente europeu, especialmente na Itália, na França, na Alemanha, na Espanha e em Portugal, assim como em toda a América Latina colonizada por portugueses e espanhóis. O sistema da common law é o sistema do direito inglês, norte-americano, canadense, australiano etc., implantado principalmente em países oriundos das antigas colônias britânicas”, explica Leite. 

De acordo com a professora Luciana Yeung, há um debate na literatura especializada entre os que defendem que a tradição do sistema jurídico é determinante para a consolidação de uma jurisprudência mais harmonizada, e os que consideram que, no Direito do século XXI, já há uma convergência entre os ferramentais dos dois sistemas. 

De fato, no Brasil, em que pese a predominância do direito positivo, há elementos do direito jurisprudencial que vêm sendo incorporados, como a edição de súmulas vinculantes, instituídas pela Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45, de 2004), que determinou que tribunais de instâncias inferiores passassem a seguir as decisões dos tribunais superiores em casos de reiteradas decisões sobre o mesmo tema. 

“O direito brasileiro estabeleceu no Código de Processo Civil de 2015 o sistema de precedentes obrigatórios. Obedecidos certos requisitos legais, os julgadores devem conferir ao mesmo caso a mesma solução jurídica”, complementa Leite. 

Na visão do juiz federal Peter J. Messitte, professor da American University de Washington D.C., o preceito fundamental do sistema de Justiça é que os litigantes em condições iguais devam ser tratados de forma substancialmente igual.

“Esse é um objetivo básico da justiça americana. Sobre o prédio da Suprema Corte está gravada a frase: ‘Igualdade de Justiça sob a lei’. É claro que isso nem sempre funciona, pois alguns juízes podem avaliar alguns fatores, em um caso, com maior ou com menor peso do que outros. Mas a justiça igualitária sob o mando da lei é sempre o objetivo final”, avalia Messitte.

Os parâmetros de controle 

Esse é um objetivo que decorre da própria noção de direito. No Brasil, o primeiro parâmetro de controle da atuação de juízes é a Constituição Federal e as leis que devem aplicar. Segundo o professor da Universidade de Brasília (UnB) e juiz federal aposentado Pedro Paulo Castelo Branco Coelho, a Constituição determina que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas. “O juiz não pode fugir da regra, pois obedece aos parâmetros legais do nosso ordenamento”, explica. Para ele, o sistema de freios e contrapesos existente hoje no Brasil permite que decisões equivocadas sejam corrigidas em instâncias superiores. 

“O Estado tem seus mecanismos de controle bem estabelecidos”, diz Coelho. De acordo com o magistrado, em eventuais casos de abuso, pode-se ainda recorrer ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instância administrativa de controle do Judiciário, também criado pela Reforma do Judiciário de 2004. 

Mas a avaliação sobre a efetividade do CNJ como órgão de controle não é unânime. Em 11 anos de atuação, em um universo de 18 mil juízes em atividade, o CNJ apreciou somente 66 processos administrativos disciplinares, aplicando um total de 87 punições, das quais 55 com pena máxima – aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais pelo tempo de trabalho. 

“As ferramentas de controle da Justiça brasileira não são efetivas pelo simples fato de que tanto o CNJ quanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) são controlados pelos integrantes das instituições que deveriam controlar. Da forma como existem hoje, elas não funcionam e não têm como funcionar como verdadeiras ferramentas de controle”, avalia o professor Júlio Aguiar de Oliveira, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). 

A professora Elza Boiteux, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), destaca o caráter essencialmente administrativo do CNJ, criado para garantir o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. “A Constituição não impõe limites à sua atuação, mas o Supremo Tribunal Federal já decidiu que os seus próprios membros não estão sujeitos a esse controle, em decisão criticada por juristas. A criação de um órgão de controle revela um avanço, mas a restrição à sua aplicação demonstra os seus limites”, diz. 

Zonas cinzentas

O corporativismo é um elemento que também dificulta o funcionamento de outro mecanismo importante para a boa aplicação da Justiça: as situações de suspeição e de impedimento por parte de juízes. O impedimento é objetivo: ocorre em situações inquestionáveis, por exemplo, quando o próprio juiz é parte do processo. Já a suspeição tem caráter subjetivo, quando o magistrado, em foro íntimo, sente-se relacionado a uma parte e, por iniciativa própria, não quer atuar no caso. 

O novo Código de Processo Civil brasileiro, em vigor desde 2015, buscou deixar mais claros os casos em que juízes devem se declarar suspeitos ou impedidos de julgar determinada ação, inclusive ampliando o detalhamento dos casos de relações familiares e de amizade previstos na lei, não apenas com as partes do processo, mas também com advogados, defensores e promotores envolvidos. 

À época da aprovação do novo Código, houve reações negativas por juízes, argumentando, até com certa ironia, que muitas famílias teriam de ser apartadas, uma vez que as relações familiares do mundo jurídico no Brasil são bastante próximas e até mesmo entrelaçadas. 

Casos de grande repercussão no Judiciário brasileiro demonstram que essa proximidade é uma realidade. Por exemplo, o ministro do STF Gilmar Mendes, mais de uma vez em processos relacionados à Operação Lava Jato, foi questionado pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot de que deveria ser impedido de atuar em alguns casos, como por exemplo por ser padrinho de casamento da filha do réu ou ter sua esposa atuando no escritório de defesa dos investigados. Em sua resposta, em vez de se defender, Mendes contra-atacou, dizendo que o próprio Janot também mantinha relações com os investigados. 

Na prática, é a Presidência da Corte que decide sobre pedidos de impedimento ou suspeição apresentados pelas partes, sozinha ou remetendo à decisão ao plenário, que delibera em sessão fechada. Mas sobre esse tema o corporativismo também impera: nos últimos dez anos, foram solicitados pelo menos 80 pedidos de suspeição ou impedimento no STF, mas simplesmente nenhum foi acatado (ouça mais sobre isso abaixo, no Podcast Ethos). 

Para a professora Conceição Gomes, pesquisadora da Universidade de Coimbra e Coordenadora Executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, a sociedade deve buscar construir mecanismos institucionais para melhorar o escrutínio sobre as decisões do Judiciário. A professora cita o exemplo da Holanda, que determinou que os juízes tornem pública toda sua trajetória profissional, inclusive com relação a dados econômicos e patrimoniais anteriores à atuação como magistrado. 

Para Conceição Gomes, os órgãos de controle externo do Judiciário também devem ser fortalecidos, mas desde que sua composição seja minimamente paritária entre juízes e membros externos (no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça é composto por 15 integrantes, dos quais 9 são magistrados e 6 são externos). 

Mas nem todos os caminhos para uma maior transparência têm caráter normativo: “A solução que de fato pode ser mais efetiva para minimizar os efeitos da parcialidade na Justiça deve ser a construção de uma pressão forte por parte da opinião pública, uma vez que a neutralidade é um tema de caráter essencialmente ético”, avalia a pesquisadora. 

Razão prática

A busca por previsibilidade e equidade na Justiça, não quer dizer, é claro, a busca por um pensamento único. Diferentes pessoas avaliam de forma diferente os mesmos fatos. É a divergência a própria razão de ser do direito: afinal, se todos pensassem da mesma forma, não haveria sequer a necessidade de um sistema de Justiça. 

Para o professor José Luiz Delgado, decano da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro “Curso de Direito Natural”, o papel do juiz é o de aplicar as leis, mas para isso é preciso que ele tenha certa maleabilidade. “O que o juiz faz é perguntar a um cidadão e ao outro: ‘Por que o senhor acha que tem razão’? Isso é a mesma coisa que perguntar: ‘Por que o senhor acha que tem direito’? Razão e Direito são coisas absolutamente inseparáveis”, diz o professor. 

“O Direito é apenas o sistema das leis? Eu acho que não. Só se entende o Direito quando se compreende que o Direito é a solução que todas as sociedades humanas adotaram para resolver os conflitos segundo a razão”, explica Delgado. 

Esse entendimento remete ao pensamento clássico, da tradição ética de Aristóteles e São Tomás de Aquino, que viam no juiz um sábio e, no direito, a aplicação de uma sabedoria de caráter prático e concreto. “Segundo Aristóteles, a interpretação de leis não tem o caráter de uma ciência, mas sim o de prudência”, explica o professor Oliveira. 

“Afirmar que a interpretação do direito é uma prudência significa que ela é uma virtude. Mais especificamente, uma virtude intelectual. Não obstante, uma virtude intelectual diferente da sabedoria, uma vez que se volta para a ação, e não para a teoria. De fato, se é próprio da justiça, por exemplo, enquanto virtude ética, o dar a cada um o seu direito, a descoberta do direito no caso concreto é função da prudência”, diz. 

Em artigo, o professor Júlio Oliveira explica que São Tomás de Aquino aprofunda o entendimento de Aristóteles ao apontar que, como reconhecimento da situação concreta para a ação concreta, “a virtude da prudência demanda, como pré-requisito, a capacidade de uma silenciosa observação da realidade”. 

Em Santo Tomás, a prudência só é possível com a concorrência de três elementos: a) memória, no sentido de preservar os eventos de acordo com a realidade; b) docilidade, no sentido de se manter a mente aberta, capaz de ouvir e de aprender com o outro; e c) sagacidade, que permite a aplicação da prudência de forma tempestiva em um evento súbito. 

O próprio termo jurisprudência, que contemporaneamente designa o conjunto de decisões sobre interpretações das leis feitas pelos tribunais de uma determinada jurisdição, tem origem na incorporação do conceito aristotélico-tomista da prudência ao “juris” no sentido de Justiça. 

“A solução de um conflito depende de critérios legais e da prudência do magistrado. Como afirmou Aristóteles, cada qual julga bem as coisas que conhece, e dessas coisas ele é um bom juiz. Se o conhecimento da lei depende do intelecto e a prudência depende da experiência, o magistrado deve dar atenção aos dois critérios para que sua decisão se revele equitativa”, explica a professora Elza Boiteux. 

Decisão conjunta

Na visão do professor Delgado, a busca pela harmonização da Justiça passa ademais pelo respeito ao princípio da colegialidade, que significa o ato de um juiz respeitar a decisão anterior proferida coletivamente, mesmo sem concordar com ela. 

O decano da UFPE cita como exemplar o caso, ocorrido em abril deste ano, no curso do julgamento sobre um pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula da Silva, quando a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber votou contrariamente à sua convicção pessoal, sabidamente oposta à prisão após condenação em segunda instância, voto que formou maioria de 6 a 5 de definiu o destino do ex-presidente da República à prisão. 

Ela argumentou que, como pouco antes o mesmo STF havia se posicionado, também por 6 a 5, a favor da prisão após segunda instância, mesmo ela própria tendo aderido à corrente minoritária (e derrotada), os ministros deveriam passar a seguir o entendimento vencedor, independentemente de suas convicções individuais. 

Para que o princípio da colegialidade passa ser efetivamente aplicado, é preciso que os tribunais de fato criem entendimentos em comum, construídos de forma pensada, refletida e conjunta por seus integrantes – e não a partir de uma jurisprudência das circunstâncias, criada com base na sorte de haver uma ou outra composição de ministros em uma sessão qualquer. Não é possível construir uma jurisprudência consolidada se o simples fato de um ministro do STF ficar doente um dia e sua falta configurar a mudança de entendimento da Suprema Corte do país. 

Na avaliação do professor Oliveira, a dificuldade de consolidar uma jurisprudência reside no fato de que as discussões nos tribunais do país – desde o STF aos tribunais de primeira instância – não configuram uma verdadeira deliberação. De praxe, cada juiz chega à sessão plenária com um voto já previamente escrito, muitas vezes nem escuta os votos de seus colegas e muitíssimo raramente muda de opinião ao ouvir posição em contrário. As próprias sentenças são publicadas como uma sequência de votos, mesmo quando a decisão é unânime, sem que haja uma condensação de uma posição colegiada do tribunal. “O STF decide, mas não delibera”, argumenta Oliveira. 

“A ausência da deliberação implica em decisões desprovidas de uma fundamentação argumentativa, o que significa um impedimento à realização da virtude da prudência em um nível elementar”, analisa o professor mineiro. “É claro que argumentos são apresentados nos votos individuais, mas considerando a prática antideliberativa do STF, é impossível definir quais argumentos sustentam a decisão tomada pelo voto da maioria (e isso vale ainda que a decisão tenha sido tomada de forma unânime). Essa impossibilidade fica evidente na inexistência de uma fundamentação unificada do tribunal no corpo das decisões”, complementa. 

Se houvesse uma mudança de postura deliberativa por parte da Suprema Corte brasileira, com os ministros aplicando de fato os três postulados fundamentais da prudência tomista – fidelidade aos fatos (memória), mentes abertas para a discussão (docilidade) e tempestividade das decisões (sagacidade)–, talvez fosse possível iniciar uma real e efetiva construção jurisprudencial que pudesse orientar a busca por uma harmonização da aplicação da Justiça no Brasil. Enquanto isso não ocorre, reformas institucionais podem até melhorar um aspecto ou outro do problema, conforme a necessidade, mas não resolverão o déficit de fundo da cultura jurídica brasileira.

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