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Tudo indica que, nesta quarta-feira (4), o Brasil vai parar. Dividida, a nação acompanhará o julgamento do habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF) pela defesa do ex-presidente Lula. Já condenado em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), o petista tem como objetivo permanecer em liberdade até o trânsito em julgado da condenação – ou seja, acabadas as possibilidades de recurso. 

A decisão ganha ares de grandiosidade não apenas por tratar do futuro de um ex-presidente, mas porque a mais alta corte do país vai rediscutir, pela segunda vez em menos de 10 anos, a constitucionalidade da prisão após a condenação em segunda instância, conhecida como execução provisória da pena. E, caso o entendimento mude, não é só Lula que será afetado. 

Professor de Direito da FGV-Rio, Thiago Bottino explica que, em sua concepção original, o Código de Processo Penal (CPP) brasileiro previa a prisão automática após a condenação em primeira instância, independentemente da interposição de recurso. Estar o réu preso, portanto, era requisito para apelar. 

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É preciso lembrar que o Código de Processo Penal data de 1941, com inspiração autoritária, uma vez que estava em vigor a Constituição Federal de 1937, outorgada no mesmo dia em que foi implementado o Estado Novo – a ditadura de Getúlio Vargas.

A possibilidade de responder ao recurso em liberdade chegou apenas em 1973, quando foi aprovada a Lei 5.941, que, embora tenha mantido a prisão após condenação em primeira instância, dava ao juiz a alternativa de não decretar a prisão imediata caso o réu fosse primário ou tivesse bons antecedentes. 

A legislação ficou conhecida popularmente como “Lei Fleury”, pois teria sido aprovada para beneficiar o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, investigado por envolvimento com o tráfico de drogas à época. 

A situação poderia ter mudado em 1988, como queriam alguns, com a promulgação da “Constituição Cidadã”, que trouxe em seu texto, no inciso LVII do artigo 5ª, a previsão de que 

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 

“A Constituição mudou, mas a composição do STF continuou a mesma. E quem estava no Supremo na época manteve a jurisprudência construída com base nos artigos [do Código de Processo Penal] de 1941 e nas Constituições anteriores”, afirma Bottino. 

A Constituição, contudo, não proíbe de forma literal a prisão antes do trânsito em julgado – apenas que o indivíduo seja considerado culpado antes de esgotadas todas as possibilidades de recurso. Caberia, portanto, ao Supremo decidir a questão da execução provisória da pena, o que de fato fez em 1991, no julgamento o habeas corpus (HC) 68.726, quando a Corte reconheceu a possibilidade da prisão do condenado, ainda que pendente a análise de recurso. 

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O ano de 2008, no entanto, trouxe novidades. O Congresso Nacional revogou dois artigos do Código de Processo Penal: o que impunha a prisão como condição para o condenado recorrer da sentença e o que tratava da prisão após condenação pelo Tribunal do Júri.

Em 2009, seguindo a tendência, o STF decidiu de forma favorável aos réus. Ao julgar o HC 84.078/MG, a Corte entendeu, num placar de 7 a 4, pela inconstitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância, se pendente o julgamento de recursos nos tribunais superiores. 

Em 2011, o Legislativo chancelou o entendimento do Supremo e promoveu mais uma alteração no CPP, que revogou a prisão automática, transformando em exceção o encarceramento do réu que ainda não tenha sobre si uma sentença condenatória transitada em julgado:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). 

“Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade”, escreveu o então ministro do STF Eros Grau, relator do HC, à época. Na mesma linha, Celso de Mello apontou ser “importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição”. 

A discussão jurídica

Mas, em outubro de 2016, o tribunal reconheceu, ao rediscutir o tema em Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) propostas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que a execução provisória da pena não é inconstitucional. Para Bottino, com a decisão, a corte acabou passando por cima da lei. 

“Em 2009, o entendimento [do STF] mudou para acompanhar a lei, que também havia mudado [em 2009]. Dois anos depois veio outra mudança legislativa, para deixar tudo mais claro ainda. Não é uma questão que está aberta, para ser interpretada. Se cada vez que mudar a composição do STF quiserem examinar essa questão, vai ficar impossível”, opina o professor da FGV-Rio. 

Por outro lado, o procurador federal André Uliano, em texto publicado no Instituto Politeia da Gazeta do Povo, argumenta não só que a Constitução Federal não veda a execução a partir da condenação em segunda instância como também que a alteração legislativa de 2011 não impede essa execução, uma vez que os recursos para os tribunais superiores não tem efeito suspensivo.

Para o procurador, o princípio da presunção da inocência impõe duas obrigações ao poder público: uma regra probatória, que impõe sobre o órgão de acusação o ônus de provar a culpa do acusado, e uma regra de tratamento: “A lei pode determinar que alguns efeitos jurídico- penais ocorram já durante o processo, desde que sem ofender o núcleo essencial da presunção de inocência”, escreve.

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“As consequências jurídico-penais são gradualmente deflagradas no decorrer da persecução penal à medida em que a culpa vai sendo comprovada, restando a plenitude dos efeitos penais condenatórios reservada para após o trânsito em julgado”, argumenta.

Já o desembargador Otávio Augusto de Almeida Toledo, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), argumenta que, além de os processos chegarem aos tribunais superiores em “número diminuto”, duas condenações em desfavor do réu já legitimariam a prisão. 

“Não é que o sujeito foi condenado por apenas um juiz, como acontecia antigamente. Para não se incorrer em injustiça, a condenação é revista em tribunais colegiados, por outros três magistrados”, diz. O desembargador comenta que uma discussão antiga nos tribunais estaduais é de que não existiria o que se convencionou chamar de terceira instância. “Não foi essa a ideia dos tribunais superiores, ou o processo praticamente não teria final”. 

Toledo também reforça o argumento utilizado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que se manifestou nas ações sobre o tema que tramitam no STF. Na visão de Dodge, a execução provisória não configura excesso estatal, pois o “segundo grau de jurisdição é a última instância judicial em que as provas e os fatos são examinados”. É nesse momento, portanto, que o réu tem sua última oportunidade para contestar os fatores que o ligam ao crime. 

“Por isso, o réu que for condenado à pena de prisão pelo tribunal intermediário, é alguém cuja culpa já foi definida em caráter definitivo, afastando a presunção de inocência”, argumenta Dodge.

Como resolver? 

Toledo reconhece que os ministros do STF são livres para mudar de posicionamento, mas é preciso muito cuidado para que não se gere insegurança jurídica, em especial para que a mudança de opinião não se dê em cima de casos pontuais. Para Bottino, é preciso que haja um mínimo de previsibilidade ao se recorrer ao Supremo. Ele afirma que “ninguém está acima da lei, nem o Lula, nem os ministros, que são funcionários públicos”. 

Na visão do professor da FGV-Rio, a mudança deve ocorrer por meio da lei, seja para prever, efetivamente, a prisão após a decisão condenatória em segunda instância, seja para mexer em aspectos do Direito Penal que são constantemente alvo de críticas, como os prazos para prescrição do crime e a ampla possibilidade de recursos. “Hoje, o processo criminal é muito alongado, parece não ter fim”, complementa o desembargador do TJ-SP. 

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