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Cruzes em frente à Primeira Igreja Batista de Sutherland Springs lembram a morte de 26 pessoas | Scott Olson/AFP
Cruzes em frente à Primeira Igreja Batista de Sutherland Springs lembram a morte de 26 pessoas| Foto: Scott Olson/AFP

O assassinato de 26 pessoas durante o culto na igreja de Sutherland Springs, Texas, no domingo, não foi a maior chacina cometida por um único autor na história dos EUA. Esse título vai para o massacre de Las Vegas, ocorrido pouco mais de um mês antes, no qual 59 pessoas foram mortas e mais de 400 ficaram feridas. Porém, matou mais gente em um templo religioso que qualquer outro, resultando também no maior número de vítimas entre crianças desde a tragédia da Escola Primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, em dezembro de 2012, quando 20 menores perderam a vida. A polícia confirmou que quase metade das vítimas em Sutherland era menor de 16 anos, sendo a mais nova uma menina de um ano e seis meses.

Nos EUA, nossa reação a chacinas em geral, e principalmente àquelas que envolvem crianças, é saturada de uma retórica teológica. Os políticos pedem orações e lamentam o mal e a insensatez; os críticos denunciam seus apelos, chamando-os de cínicos e apontando sua cumplicidade hipócrita. As crianças são descritas como anjos, roubadas deste mundo cedo demais, deixando para trás um fardo insuportável para os que as amam. O sofrimento infantil há muito é visto como termômetro para a forma que indivíduos e culturas estabelecem seus valores – como, por exemplo, os poemas de William Blake, ou “O Grande Inquisidor” em “Os Irmãos Karamazov” –, e essas mortes brutais não são exceção. As crianças mortas em Sutherland, como as de Sandy Hook, são paradoxalmente consideradas inocentes; já a sociedade em que morreram, em que foram abatidas, é corrupta.

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Permeando tudo isso está a lógica do sacrifício. Essa lógica está presente tanto nos “textões” contra a cultura de armas nos EUA como na idolatria “dos machos” que a aprovam. Ela se vê presente na comparação poderosa do escritor Garry Wills, que coloca os EUA armados no mesmo nível que o deus Moloch, a quem os antigos cartagineses deveriam oferecer seus filhos, e condena “o sacrifício que nós, enquanto cultura, fizemos e continuamos fazendo, ao nosso deus demoníaco”. E também nas vozes que defendem o armamento, como a do ex-presidente da Associação Nacional de Rifles (NRA), Harlon Carter, que descreve as armas nas mãos daqueles cuja intenção é cometer atos violentos como “o preço a se pagar pela liberdade”. De uma forma ou de outra, a lógica do sacrifício exorta os norte-americanos a aceitar ou rejeitar a presença de armas como compensação, para o bem e para o mal.

Não é de se admirar que os tiroteios em massa sejam cometidos, na esmagadora maioria das vezes, por homens que têm histórico de violência doméstica e agressão a pessoas mais próximas.

Só que quando se trata da realidade da violência armada no país – da qual os massacres são só uma parte –, o sacrifício enquanto conceito é insuficiente e a própria noção de inocência, suspeita. Nossa compaixão é ativada prontamente pela ideia de inocentes assassinados, mas, como observa o jornalista Gary Younge, enfatizar a inocência pode ser um “atalho empático”, uma forma de aceitar implicitamente a premissa de que há momentos em que outros merecem esse fim. A verdade, porém, é que ninguém merece, em idade nenhuma, ter a vida encurtada por uma bala, seja no banco de uma igreja ou em uma viela escura.

O sacrifício é, estritamente falando, um conceito de negócio, transação. Algo é abandonado em troca de outra coisa. O paradigma implícito aqui é da perda que leva à redenção, um confisco que purifica. Mas não há nada redimindo, ou que poderia redimir, uma dúzia de crianças mortas.

Em vez de usar a lente do sacrifício, devemos encarar o resultado da violência armada como desperdício, puro e simples. É desperdício sob vários aspectos – de vidas abreviadas, de potencial não aproveitado, de um futuro roubado. É perda absoluta, uma carnificina irreversível que só gera mais destruição.

Não é de se admirar que os tiroteios em massa sejam cometidos, na esmagadora maioria das vezes, por homens que, mais do que qualquer outra característica definidora, têm histórico de violência doméstica e agressão a pessoas mais próximas. Não basta “surtarem”, pois são homens coléricos que alimentam rancores, atormentados por um sentimento de insuficiência, de serem enganados e explorados. Em outras palavras, são homens que veem as próprias vidas como desperdício e se dispõem a espalhá-lo nas vidas dos outros à sua volta, em uma conflagração autodestrutiva. É o oposto do sacrifício, de qualquer lógica de troca; é o desejo de aniquilação pura e simples, de si mesmo, do outro, de seu mundo inteiro, em um gesto grandioso de destruição. É desperdício, total e absoluto, até o fim mais amargo.

A conquista de posto de nação mais poderosa em termos armamentistas do mundo foi obtida, sem nenhum exagero, à custa da morte de milhões de pessoas

O que ganhamos ao encararmos esse pesadelo em câmera lenta como desperdício? Entre outras coisas, podemos entendê-lo como a continuação natural de alguns dos sonhos americanos mais básicos e fundamentais. Como a historiadora Nancy Isenberg registra, os arquitetos dos primórdios da empreitada colonial americana viam o “novo” continente como uma “terra deserta” – uma paisagem não desenvolvida a ser povoada e movida pela mão de obra de pessoas perdidas, ou seja, o detrito social da incipiente economia moderna britânica.

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Esses indivíduos marginalizados eram considerados, literalmente, fertilizante humano descartável para tornar rentáveis os recursos naturais locais, apenas uma faceta da exploração cruel do regime de assentamento colonial e da extinção de vidas humanas, que passou do trabalho forçado para a escravidão, para a limpeza étnica e daí por diante. O mesmo vale para a concretização do nosso desejo manifesto e nossa ascensão ao posto de nação mais poderosa em termos armamentistas do mundo – conquista obtida, sem nenhum exagero, à custa da morte de milhões de pessoas.

Falar desta história em termos de “legado” é relegar ao passado uma realidade que continua valendo no tempo presente. É também alimentar o sonho ingênuo de que, já que é uma coisa distante de nós, em termos temporais, podemos redimi-lo genuinamente no agora. Só que nossa lógica de desperdício se desenrola nos meandros esmagadores de uma sociedade abrutalhada na qual nenhuma vida desperdiçada – e aí não importa a inocência nominal nem a violência de sua destruição – parece ter condição de galvanizar a mudança em nosso status quo homicida.

Nenhuma transação será capaz de redimir esse cenário – e da mesma forma que continuamos atados à lógica do sacrifício, permanecemos presos em um círculo vicioso eterno, esperando por algo que nos liberte. Porém, somente quando virmos quem realmente somos podemos esperar alguma mudança.

* Patrick Blanchfield é membro do Instituto Brooklyn para Pesquisa Social.

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