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| Foto: VALTERCI SANTOSVALTERCI SANTOS

O parlamento alemão aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, no último dia 30, por 393 contra 226 votos. A chanceler Angela Merkel, embora tenha liberado o voto de seus correligionários, foi enfática ao pronunciar-se contra a lei: “Para mim, casamento é um homem e uma mulher vivendo juntos”. Em maio, por decisão de sua Suprema Corte, Taiwan tornou-se o primeiro país asiático a legalizar esse tipo de união. No mesmo mês, a Colômbia, cuja corte constitucional havia aprovado o casamento homoafetivo em 2016, registrou suas primeiras uniões poliafetivas. O registro civil das uniões poligâmicas já vem ocorrendo no Brasil à revelia da Justiça, mas ainda aguarda manifestação definitiva do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

O reconhecimento de uniões homoafetivas atingiu o Ocidente como uma onda e é hoje uma das principais diferenças culturais entre ocidentais e orientais e africanos. Em 1979, a Holanda tornou-se o primeiro país a reconhecer alguns direitos para casais homossexuais na legislação civil. Em 2001, foi o primeiro a aprovar o casamento homoafetivo pleno e dar direitos de adoção a casais homossexuais. Nos últimos 16 anos, dezenas de países, incluindo o Brasil, equipararam esse tipo de união ao casamento ou reconheceram uniões civis entre homossexuais, em geral apelando a noção de igualdade de tratamento dos cidadãos (veja o mapa). 

Embora seja consenso, entre os ocidentais, que os homossexuais não devem ser presos, punidos ou discriminados por suas práticas e afetos, a controvérsia sobre a possibilidade do casamento homoafetivo persiste. Muitos juristas e filósofos morais, para quem a noção tradicional de matrimônio e seu status jurídico especial estão sendo abandonados muito rapidamente, sem maiores reflexões, vêm tentando mostrar por que, afinal, faz sentido estabelecer um regime jurídico distinto para regrar a união conjugal entre um homem e uma mulher. Reformadores políticos e juízes ativistas, porém, não têm prestado muita atenção nesse debate. 

Dois argumentos se destacam entre os defensores das uniões homoafetiva – e das poliafetivas também, como está ficando claro. Primeiro, se a escolha de quem amar e com quem se casar é tão íntima, ela deveria ficar fora do poder de regulação do Estado e, portanto, todo tipo de relação conjugal deveria ficar submetida somente ao direito contratual. Quem quer casar ou juntar as escovas de dente, que faça um contrato e escolha as regras que vão reger sua vida privada. Essa posição, defendida por exemplo pela filósofa Martha Nussbaum e por libertários, está fora do radar político. Por enquanto, as pessoas parecem querer não apenas viver juntas, mas ter reconhecido o status de sua união como um casamento. 

Por isso, o argumento que mais aparece nas discussões públicas e nas decisões judiciais é o seguinte: se todos são iguais perante a lei, o Estado estaria discriminando injustamente grupos de pessoas se determinasse que apenas alguns possam ter direito ao regime especial do matrimônio. Esse raciocínio está na base da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que igualou o regramento da herança no casamento e na união estável. 

Os conservadores costumam responder que, por sua natureza, a união conjugal entre um homem e uma mulher, além de ser a mais profunda parceria de vida entre dois seres humanos, é a única capaz de gerar filhos e, por isso, carrega consigo um aspecto que tem consequências para o bem comum. A união conjugal não existe apenas para gerar filhos, mas é a única capaz disso e, por tabela, a célula da qual depende o futuro da sociedade.

Números

Nos Estados Unidos, onde há mais pesquisas sobre o tema, o agregado de dados das últimas décadas mostra que crianças criadas em famílias tradicionais se saem melhor na escola, têm melhor empregabilidade, se envolvem menos em crimes, têm menos depressão e menor envolvimento com drogas, quando comparadas com aquelas criadas em arranjos familiares alternativos. Mães e pais solteiros, ou divorciados que se casam várias vezes, carregando os filhos de casa em casa, podem até estar buscando a felicidade pessoal, mas estão aumentando as probabilidades de seus filhos sofrerem no futuro. 

“O propósito legal de reconhecer e apoiar o casamento como uma instituição – objetivo que dá ao Estado um interesse legítimo no casamento – é assegurar que o maior número possível de crianças sejam criadas por seu pai e sua mãe em um vínculo matrimonial” Robert P. George, filósofo 

O estudo mais recente e abrangente sobre as consequências psicológicas e sociais dos arranjos familiares alternativos, que despertou intensa controvérsia na sociologia de língua inglesa, é o New Family Structures Study (NFSS), da Universidade do Texas, publicado em 2012. Um dos objetivos da pesquisa era pôr à prova estudos divulgados pela American Psychological Association, em 2005, e pela American Sociological Review, em 2001, que concluíam não haver desvantagem significativa entre filhos de pais homossexuais e filhos de pais heterossexuais. Esses estudos foram amplamente divulgados e acabaram por mudar as convicções de muitos americanos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2015, a Suprema Corte dos Estados Unidos legalizou o casamento homoafetivo no país. 

O NFSS comparou respostas de 2988 pessoas entre 18 e 39 anos que foram criadas em diversos arranjos familiares: (i) “famílias biológicas intactas” – isto é, casamento sem divórcio entre um homem e uma mulher; (ii) famílias nas quais houve divórcio; (iii) pai ou (iv) mãe que tenham tido relações homossexuais; (v) pais adotivos; (v) pais solteiros; e (vi) pais que se casaram novamente. Os questionamentos envolviam desde a percepção de segurança pessoal dos entrevistados, passando por taxa de desemprego, depressão, abuso sexual na infância, envolvimento com álcool e maconha, passagem pela Justiça e qualidade da atual relação conjugal do entrevistado. Quem cresceu em famílias biológicas intactas invariavelmente pontuou melhor. 

O sociólogo Mark Regnerus, que coordenou a pesquisa, publicou um artigo avaliando os dados coletados, especialmente em relação a pais homossexuais. “Embora seja certo afirmar que a orientação sexual ou o comportamento sexual dos pais não tenha, necessariamente, relação com a habilidade de ser um pai bom ou eficaz, os dados avaliados no estudo (...) sugerem que isso pode afetar a realidade das experiências familiares de um número significativo [de jovens americanos]”, escreveu na conclusão. 

Mas essas conclusões têm sido questionadas por outros sociólogos, como Michael Rosenfeld, da Universidade de Standford. Os críticos de Regnerus argumentam que a instabilidade dos arranjos familiares, e não a orientação sexual dos pais, é a variável determinante para a piora na qualidade de vida dos filhos. Trocando em miúdos, esses estudiosos afirmam que os dados de 2012 não trazem conclusões sobre como seria a vida de crianças criadas por casais homossexuais que permanecessem fieis um ao outro e em uma relação estável no tempo. Para esses sociólogos, mais do que a estrutura da família, é a estabilidade do arranjo familiar a chave para a criação de crianças saudáveis. 

Seja como for, as estatísticas mostram que, nos Estados Unidos, as pessoas estão se casando menos desde a década de 1960 e cada vez menos crianças estão sendo criadas por ambos os pais: eram 88% em 1960 e 69% em 2016. As taxas de divórcio vêm caindo, mas ainda estão acima do padrão da década de 1960, quando explodiu a “revolução sexual” que acabou por levar o afeto ao centro do direito de família. Os dados também mostram que os estratos mais pobres da sociedade americana sofrem mais as consequências desse desarranjo. No Brasil, desde que a lei permitiu o divórcio em 1977, a taxa de separações saltou de 0,44 por mil habitantes (maiores de 20 anos) em 1984 para 2,4 por mil habitantes em 2014. 

Desagregação dos laços familiares

O filósofo americano Robert P. George, um dos mais destacados defensores da concepção tradicional de casamento, reconheceu, no livro What Is Marriage and Why It Matters, publicado em parceria com Patrick Lee em 2014, que os dados sobre o desempenho de filhos de homossexuais são ainda inconclusivos. Mas, para os dois, mesmo se crianças adotadas por casais homossexuais tivessem um desempenho ainda melhor que os filhos de casais heterossexuais, isso não seria razão para esgarçar o conceito de matrimônio. 

A razão disso é simples. Quando se deixa de discutir o que é o casamento – e por que ele merece um regramento jurídico especial – e se começa a discutir quem pode se casar se assim o desejar, já se aceitou tacitamente a premissa que está na raiz da instabilidade familiar: a de que o matrimônio é um vínculo puramente afetivo. Essa ideia, que é também a bandeira de grande parte da esquerda –  e de muitos liberais, diga-se de passagem – é, na visão dos filósofos, o que vem permitindo a desagregação dos laços familiares e, consequentemente, o dano às crianças que crescem sem apoio de uma família que perdura no tempo. “As leis e políticas do Estado conformam parcialmente a cultura. Se o Estado dispõe de uma visão distorcida do casamento, ele vai minar e debilitar a capacidade de seus membros de participar desse aspecto central da prosperidade humana”, escrevem George e Lee. 

Não escapa à lógica elementar, nem à vontade de alguns brasileiros e colombianos que já o estão pedindo, que se o casamento não passa de um selo de aprovação que o Estado é obrigado a dar a todos aqueles que queiram, por afeto, viver juntos, então não haverá mesmo razão para impedir uniões poligâmicas e a ida e vinda dos cônjuges. O próprio Regnerus, em seu trabalho de 2012, resume as consequências da instabilidade familiar, quer se aceite ou não o caráter intrinsecamente instável de famílias de homossexuais: “Elevada dependência de organizações de saúde pública, de assistência social estatal, de recursos psicoterápicos, de programas para dependentes de drogas e do sistema de justiça criminal”. 

Em suma, a instabilidade familiar parece estar no cerne do aumento dos custos de manutenção de uma sociedade minimamente coesa. Para esses pensadores, as rápidas mudanças em regramentos sociais seculares – como a monogamia heterossexual – não estão levando em conta os deveres de investigar, com prudência política, os desdobramentos dessas decisões para as gerações futuras.

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